A aparição do rapper Emicida, no Roda Viva da última segunda feira, foi sintomática. O artista é mais um na série de comunicadores e influenciadores de esquerda a ocupar o eixo da tradicional roda de debates da TV Cultura. É, por ora, uma ocupação ideológica; Emicida, assim como Silvio Almeida, Felipe Neto e Tabata Amaral, se propõe — gostemos ou não — a serem intelectuais públicos de uma esquerda em reconstrução.
É um alento para o setor. Não é de hoje a agonia da esquerda brasileira. Construída sob bases arcaicas, é animal desajeitado perdendo função na fauna política. O brizolismo pedetista, o centralismo democrático do PCdoB, o socialismo do PT — todos! — são incapazes de propor um caminho para além dos chavões desgastados e fórmulas do século passado.
Sindicalismo, confronto entre capital e trabalho, estética antiquada, negação da economia de mercado... poderíamos discorrer por horas sobre as falhas estruturais no campo progressista. A insistência nos métodos que os alçaram o poder — e que agora os condena — é não apenas fé cega em sua tese: é também questão geracional.
A velha esquerda brasileira é filha da luta contra a ditadura e dos movimentos de contra-cultura surgidos nos anos 60. É natural que seu referencial esteja centrado neste período histórico, sorte de ponto inaugural de uma história brasileira muito particular que narraram em verso e prosa. Não esperam desta turma — que chegou ao poder e lá se lambuzou — um abandono de sua linguagem e utopias. É perda de tempo.
Num fenômeno que encontra eco em outros campos da vida humana, a geração baby-boomer, a mesma desta esquerda que descrevi, tem dificuldades em entregar o bastão para seus sucessores. No Brasil, terra de vacas sagradas, o fenômeno é ainda mais presente. Caetano, Chico e os seus ainda dão as cartas na cultura popular — intocáveis —, e funcionam como validadores de quem pode ou não ascender ao olimpo cultural brasileiro.
Não haveria de ser diferente na política. A esquerda perdeu vitalidade ao optar pela fé bovina na liderança de Lula. Mesmo o PSOL, que ensaia um crescimento junto ao público mais jovem, vive de pagar pedágio ao irmão mais velho. Boulos, durante suas participações no debate presidencial, costumava iniciar suas falas com um sonoro “Boa noite, Lula!”, trazendo pra si parte do prestígio — e o descrédito — do ex-presidente em cana. Não funcionou. Em busca de Lula, o eleitor procurou seu candidato oficial (Haddad) e relegou Boulos aos auspícios de uma pequena burguesia gauche. É pouco.
A chegada de Felipe Neto e sua patota iniciam um novo capítulo para essa história. O youtuber obteve credibilidade na grande imprensa ao comprar solenemente a agenda mainstream do progressismo. É retuitado por Freixo, respeitado por jornalistas; carimbaram seu passaporte no debate público com a pompa e circustância devidas. Junto a ele chegaram Gabriela Prioli e Augusto Botelho, advogados que deixaram seu garantismo de lado para darem suas coças bastante punitivas em Caio Copolla, outrora “mito” dos debates nas redes.
Prioli aproximou-se de Anitta; suas aulas de política para a cantora tornaram-se hit durante a pandemia. Cresceram — e foram validados —, também, outros youtubers como Nilce Moretto e Castanhari. E não só eles. Na mesma plataforma, território ocupado por bolsonaristas, vicejam Henry Bugalho, o Canal Meteoro e até Gregório Duvivier, cujas piadas políticas voltaram a fazer sentido diante de um Bolsonaro cada vez mais absurdo.
O fenômeno Black Lives Matter foi apropriado com categoria; Silvio Almeida e Emicida trouxeram o tema à baila, novamente no Roda Viva, e impuseram suas teses no debate com pouca ou nenhuma oposição. A direita, aparelhada pelo bolsonarismo, foi incapaz de reagir. A perda de espaço em discussão tão importante é sintomática, e deveria acender um alerta. Passou batido.
Tal massa de influenciadores e artistas atuando de forma articulada, com discurso mais “redondo”, precipita uma mudança de ares num jogo outrora viciado. Havia a esquerda tradicional, arcaica e corrupta, a apanhar de todos os lados; a direita, tal qual invasão bárbara, a ocupar espaço na marra; e a imprensa, desconfortável com ambos, procurando uma turma pra se encontrar. Parece que achou.
Uma esquerda que não vive de cultuar Lula, e tributária do progressismo dos dias de hoje, é o mais próximo que podemos ter do que é produzido neste campo na Europa e nos Estados Unidos. Felipe Neto e os seus querem trilhar o caminho de Ocasio-Cortez e Greta Thunberg, articulando o caminho para a insurgência do pensamento esquerdista junto às classes médias e à juventude.
Possuem público próprio, não dependem de gabinetes nem estruturas sindicais e tem dinheiro de sobra pra se manter. Os pressupostos para o desenvolvimento de uma nova alternativa estão dados, e garantem independência — ao menos temporária — do que é ditado pelas estruturas partidárias do setor. Mais: passam a ser cortejados, como noivas com belo dote, por PCdoB, PDT, PT e PSOL, cujas figuras públicas tentam associar sua imagem à dos influenciadores que chegaram no pedaço.
O sucesso de sua empreitada dependerá de muitos fatores, curiosamente advindos de seus principais adversários. Será a esquerda tradicional, lutando por sobrevivência, e a direita bolsonarista, traidora de seus ideais, a ditar a velocidade de sua expansão. Julgando pelo histórico recente, a nova-esquerda pode comemorar: a quantidade de trapalhadas de seus antagonistas representa céu de brigadeiro para os novos-vermelhos que ascendem aos céus.
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