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O Brasil chorou o drama de Suzy. Nascida Rafael, Suzy é uma travesti abandonada, relegada à sombra de um sistema carcerário desumano que a impede de amar e ser feliz. Há oito anos não recebe uma visita sequer; trabalha na prisão e está separada do marido. Suzy, retratada pelo Fantástico em comovente matéria, virou símbolo de uma causa.
O povo, porém, veio em socorro da travesti. Após Dráuzio Varella contar seu drama, a Penitenciária José Parada Neto, em Guarulhos, onde Suzy está recolhida, recebeu 16 livros, duas bíblias, maquiagens, chocolate, envelopes, canetas e centenas de cartas, algumas delas de grupos religiosos. Todo material estava endereçado à travesti. Além disso, a vaquinha criada pela advogada Camila Ribeiro, com o objetivo de ajudá-la, ganhou força e conseguiu recolher pouco mais de R$ 6 mil. O brasileiro, por vezes, surpreende.
Mas alto lá caro amigo! Em terra de Ronaldinho preso com passaporte falso, nem tudo que reluz é ouro. Bastante que o passado de Rafael Tadeu de Oliveira dos Santos — verdadeiro nome de Suzy — viesse à tona, a bela narrativa de transfobia contra a moça veio ao chão.
Suzy está presa pois em 2010 matou uma criança. Não me estenderei pelos detalhes do crime — estão todos expostos no processo —, mas, em resumo, nossa heroína estuprou e assassinou, com requintes de crueldade, um jovem de nove anos, vizinho de onde morava. Caso raro em um país que reza a cartilha da impunidade, Suzy fui pega, presa e condenada.
Não é preciso dizer que a descoberta de seu passado tomou conta das redes sociais. É o grande tema deste domingo (8). O mesmo brasileiro que assistiu de sua casa a solidão de Suzy, agora percebe, traído, que abriu seu coração para alguém cujo crime só encontrará perdão na religião — mas nem por isso em qualquer religião. Perdão, nesse caso, é moeda cara. Mais cara que o dólar na última semana.
Suzy se tornou um problema. O escândalo com seu passado, sucedendo o espetáculo sobre sua dor e solidão, tornou-se, naturalmente, potencializado. O cidadão comum percebe o descompasso entre a dramatização construída pelo Fantástico e a realidade cruel por trás do criminoso. Encontra aí, nesse paradoxo, uma perfídia. Fareja manipulação, percebe-se vítima de um “esquema”, de um jogo, de uma troça.
A autoridade da imprensa, constantemente questionada por agentes políticos — a começar pelo próprio presidente da República, em lamentável campanha — é novamente manchada pela falta de sensibilidade na produção de conteúdos que soam, por vezes, mais "lacração" que informação. Ouso dizer: é impossível que uma equipe como a do Fantástico, tarimbada e experiente, não tenha tido a delicadeza de pesquisar o passado da travesti antes de transformá-la em heroína da solidão carcerária. É uma questão de bom senso.
Mas o que é o bom senso em tempos de “cancelamento” e lacração? A vaca foi pro brejo faz tempo. Sensatez virou material escasso; senso de proporção virou “insensibilidade”. A Globo colhe a tempestade que plantou. E pagamos todos nós quer queremos — demandamos! — uma imprensa forte e atuante, em compasso com a sociedade que retrata.
Pois não nos enganemos: após Rafael vir à tona, Suzy será símbolo de uma "imprensa que mente". E ninguém além dos adversários da própria imprensa ganha com isso. Veremos demagogia nos próximos dias; veremos programas policiais — devidamente contemplados com dinheiro da SECOM — espetacularizando os crimes da travesti. E veremos o brasileiro, com justa indignação, participando do festival de denúncias sobre o drama insustentável de alguém que merece sua pena, dor e solidão.
Eu não sou solidário à Suzy, Rafael ou o nome que ela preferir. Essa pessoa é um monstro. Mas me preocupo com o país que vivo. A cada “barrigada” jornalística, a cada “lacrada” contra o bom senso, nasce um demagogo. E ele virá, barulhento e espalhafatoso, pronto para denunciar “tudo isso que está aí” — boa imprensa incluso. Sua vítima, esquecida convenientemente pela matéria do Fantástico, será sempre a verdade. E ela, tal qual a vítima da travesti, continuará sendo estuprada e asfixiada, em nome do espetáculo da ocasião.