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O amontoado de mentiras construído por Jair Bolsonaro em seu discurso na ONU serve para coroar uma viagem desastrosa que, do começo ao fim, envergonhou seu governo e o Brasil. A delegação de paspalhos, mais preocupada em fazer compras e curtir as mordomias, não conseguia esconder sua jequice; do ministro sanfoneiro com a cueca por cima das calças, até Eduardo Bolsonaro comprando IPhone 13 com seu dinheiro, os sintomas da nossa desgraça estavam todos lá.
Percebam: a breve turnê americana foi construída como resposta política, interna, à famigerada carta de Michel Temer, banho de água fria na militância que clamava por golpe. Foi a construção de um palco internacional para que o presidente desmoralizado acenasse não ao mundo, nem mesmo ao seu país: a Assembléia da ONU fez-se uma live gigante, em que Bolsonaro espalhava mentiras para suas hostes mais fanatizadas sem se importar com o mundo real que havia ao seu redor.
Há um entendimento na sua base política de que o presidente não pára de acumular derrotas. A CPI já alcança seus familiares e aliados mais próximos; o Senado barra tudo o que chega da Câmara; o STF — Alexandre à frente — continua acossando o presidente. O governo naufraga e vê uma crise econômica gestada pelo fiasco Guedes se agravar com a nova gripe (esta econômica) vinda da China. Não há respiro para Jair. Num cenário desses, qualquer oportunidade de fugir do trivial torna-se importante. Eis aí sua missão internacional.
Construir um espetáculo ridículo, na lógica bolsonarista, era a resposta possível diante de um quadro de constante agravamento da sua situação. Não haviam outros instrumentos, posto que a margem de manobra do presidente é mínima. Restava a ele operar seu populismo através da pizza na calçada — muito mais uma adaptação por conta da vacina que não tomou — e imaginar que “chocaria o mundo” com declarações “poderosas” sobre o passaporte de vacina.
O plano fracassou em todos os sentidos. O populismo pizzaiolo soou ridículo; Eduardo foi humilhado na Apple Store; Bolsonaro não podia sair às ruas posto que seu hotel foi cercado por manifestantes. A tentativa de gravar vídeo em frente aos protestos soou desesperada, coisa de um homem que, despido de seu aparato de segurança, é apenas um fraco narcisista. Bolsonaro sentiu.
O drama se fez mais agudo quando, na reunião do G-20, o premier britânico Boris Johnson resolveu fazer Bolsonaro de palhaço ao questioná-lo sobre ter-se vacinado ou não para, depois, promover sua AstraZeneca, vacina exportada pela Inglaterra. Percebam: intencionalmente, um chefe de estado usa Bolsonaro de escada para se promover através do humor. Bolsonaro não é sequer “temido” como “ameaça fascista”: ele é o bobo na sala.
Terminou aí? Não. À noite, regressando ao hotel — não sem antes comer uma picanha BEM PASSADA (traição nacional) — Bolsonaro e os seus são novamente alvo de protestos, no que o indigníssimo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, responde com dedos do meio e gestos próprios de um adolescente. A percepção geral foi de descontrole e desespero. Era como se o presidente experimentasse, pela primeira vez, como seria andar nas ruas do Brasil sem as comitivas de puxa-sacos, sem as centenas de seguranças, sem as infindáveis viaturas. Fora de sua redoma, Bolsonaro é uma presa fácil.
Na manhã desta terça-feira, ele realizou seu discurso. A altivez palerma estava lá: falava com dificuldades, franzindo a testa para soar rigoroso enquanto dizia ter promovido o “tratamento inicial” — vulgo cloroquina — como alternativa à vacina que sabotou. Afirmou que preserva a Amazônia, provocando risos dentre os diplomatas presentes; que o país estava “à beira do socialismo” quando assumiu — como se o governo Temer, que sucedeu, não promovesse reformas de cunho liberal naquele período; comemorou privatizações feitas pelo governo estadual do Rio de Janeiro, enquanto atacava prefeitos e governadores; afirmou não haver “corrupção em seu governo”, ignorando laranjais, superfaturamentos em vacinas, tratores, rachadinhas, tráficos de influência e nomeações suspeitas na PF para acobertar crimes e investigações.
Coroou o nonsense geral com uma ode ao próprio governo, afirmando que “as maiores manifestações da história do Brasil” ocorreram em prol da democracia e dele próprio, Jair, aquele que lia um texto fraco em meio a diplomatas e chefes de estado. Único a não se vacinar, era figura exótica, quase incompreendida, peça ridícula num enredo que o mundo olha com certo sarcasmo e desdém — talvez alguma pena, por conta das vítimas de tal piada. O Brasil, encerrado num debate político absurdo, já não é sequer compreendido pelos seus pares numa Assembléia de nações.
Jair talvez não saiba disso. Seus formuladores de “estratégia política”, como Filipe G. Martins, acham incrível que ele tenha acenado aos manifestantes anti-vacina que pipocam aqui e acolá no mundo desenvolvido. É seu passaporte insanitário para a alt-right européia, nada além disso. De resto, vomitou mentiras para seus malucos, que repetirão, com ar triunfal, que seu presidente “foi na ONU contar o que a Globo não mostra”.
Terminada a esquete, embarcam num avião e retornam ao Brasil para tentar o calote nos precatórios ou suspender a investigação sobre uma de suas ex-esposas. Gravarão alguns vídeos, se refastelarão nas doçuras da mamata e do poder. Mas o presidente, em sua cabine presidencial, não consegue descansar. Pouco dorme.
O Brasil para além do seu discurso está amargo demais para Jair. Ainda pior para todos nós…