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A busca pelo poder é tão antiga quanto a humanidade. Nessa busca vale tudo. Nada interessa tanto aos poderosos quanto a manutenção e a ampliação do seu poder.
Nada.
No ano 63 antes de Cristo, Roma já era um Estado consolidado, que exercia seu domínio da Espanha até a Síria. Roma era uma república, com poderes executivo, legislativo e judiciário, embora eles não fossem completamente separados. O poder legislativo era representado pelo Senado. Com aproximadamente 600 membros, o Senado podia emitir decretos, que eram recomendações sem força de lei. Através desses decretos, o Senado aconselhava e orientava o poder executivo no cumprimento de sua função.
O poder executivo era exercido por dois cônsules. Os cônsules, eleitos para um mandato de um ano, governavam juntos. A eleição para o cargo de cônsul era muito disputada e envolvia grandes somas de dinheiro usadas para influenciar os eleitores. Essa influência era feita, frequentemente, através da compra de votos. Isso já acontecia no ano 63 antes de Cristo.
Idealizamos a república romana. Dela vem uma significativa parte da nossa herança cultural. Mas é um fato bem documentado que, naquela época, muitos buscavam - ou compravam - a eleição para cônsul com a finalidade de usufruir das vantagens materiais que o cargo proporcionava. Eram inúmeras as oportunidades de acumular patrimônio usando o poder do Estado, realizando negócios escusos ou extorquindo as populações dominadas por Roma.
Naquela época, exatamente como agora, candidatos gastavam fortunas em suas campanhas eleitorais. Quando venciam as eleições essas fortunas eram repostas e aumentadas. Mas, quando um candidato perdia a eleição, ele ficava em situação complicada. Esse foi o caso de Sérgio Catilina, membro de uma família nobre que tentou várias vezes, sem sucesso, se eleger cônsul.
No ano de 63 a.C. um dos cargos de cônsul foi conquistado por Cícero, que além de político era poeta, filósofo, cientista, advogado e grande orador. Catilina não se conformou com a derrota e começou a se movimentar para contestar o resultado da eleição e tomar o poder.
Um dia, Cícero convoca uma sessão do Senado com a presença de todos os membros, incluindo Catilina. Cícero faz, então, um de seus mais brilhantes discursos, denunciando a conspiração liderada por Catilina para tomar de forma violenta o poder, massacrar todos os políticos romanos e destruir a cidade. Alguns dizem que a motivação principal de Catilina para destruir Roma seria eliminar todos os registros de suas dívidas, que eram grandes (curiosamente, essa foi a mesma razão que moveria, quase dois mil anos depois, alguns dos conspiradores da Inconfidência Mineira: apagar os registros de suas dívidas com a Coroa portuguesa).
O discurso em que Cícero denuncia a conspiração se tornou um dos mais famosos da Antiguidade. Ele e outros discursos sobre o mesmo tema se tornariam conhecidos como as Catilinárias e serviriam de modelo para o ensino da oratória e do latim por mais de mil anos.
Cícero apresentou todas as evidências da conspiração, inclusive cartas trocadas pelos conspiradores com planos detalhados. Surpreendido, Catilina foge da cidade. Cícero então recebe do Senado poderes especiais para lidar com a ameaça de insurreição. É o uso desses poderes que selará o destino, não só dos conspiradores, mas também do próprio Cícero.
Seus recursos não são inteligência e oratória, mas ideologia, radicalismo, corrupção e violência
Na Antiguidade clássica as punições tradicionais eram multas, exílio ou morte. Não existia pena de prisão como a concebemos hoje. As prisões eram apenas lugares onde se colocavam os réus temporariamente até que a sua sorte fosse decidida.
Segundo a lei e a tradição, nenhum cidadão romano podia ser punido sem que fosse submetido a um julgamento. Herdamos essa tradição. Mas, tendo recebido autorização especial do Senado para lidar com a ameaça à república, Cícero ordenou a execução imediata dos conspiradores. Liderando suas tropas rebeldes, Catilina caiu em combate contra as regiões de Roma em uma batalha ao norte da cidade.
Com Catilina e seus conspiradores eliminados, Cícero retomou suas funções de cônsul. Mas suas decisões lhe custaram caro. Algum tempo depois, Roma aprovou uma lei punindo com banimento qualquer um que ordenasse a morte de um cidadão romano sem o devido julgamento. A lei foi aplicada retroativamente a Cícero. Por ter ordenado a execução dos conspiradores sem um julgamento - ainda que autorizado pelos poderes especiais conferidos pelo Senado - Cícero foi exilado para Grécia, onde viveu vários anos em amargura, como ficou registrado em centenas de cartas.
No ano 59 a.C. os romanos votaram para trazê-lo de volta do exílio. Ao chegar em Roma, Cícero descobriu que sua casa havia sido demolida e no terreno havia sido construído um templo à deusa Liberdade. A vida de Cícero nunca mais foi a mesma.
Saltam aos olhos as semelhanças desse episódio com eventos da política moderna. Essa história se passou há mais de dois mil anos; hoje enfrentamos o mesmo desafio de aperfeiçoar instituições até que justiça e liberdade sejam garantidas.
O mais provável é que continuemos a testemunhar o duelo entre o certo e o errado, a justiça e a injustiça, o bem e o mal, a corrupção e a virtude. Em vez de ansiar por uma perfeição que jamais atingiremos, e de produzir legislação cada vez mais complexa, cuja aplicação é sempre subjetiva e enviesada, deveríamos - quem sabe - empregar nossos esforços na preparação de homens mais virtuosos, cujo senso de moral e de justiça não dependa da autorização ou do comando daqueles que dominam o Estado.
As lições de Catilina e Cícero são diretamente aplicáveis ao mundo de hoje. A primeira lição é que a história é cíclica. Ela se repete. Não há nada de novo sob o sol quando se trata de relações humanas, especialmente quando se trata de poder.
A segunda lição é que, embora muitos tiranos escapem impunes, outros são forçados a arcar com todas as consequências de suas ações, mesmo quando essas ações são autorizadas e até aplaudidas pela maioria dos seus pares e da população.
Cícero foi um dos maiores oradores da história. Ficou imortalizada uma frase em que ele pergunta: “por quanto tempo mais continuarás a abusar da nossa paciência, Catilina?”
Os tiranos de hoje não seriam dignos de beijar a barra da toga de Cícero. São caricaturas de estadistas e de juristas. Seus recursos não são inteligência e oratória, mas ideologia, radicalismo, corrupção e violência.
Esses encontrarão igualmente, um dia, o caminho do exílio. E quando voltarem - se voltarem - encontrarão também um templo dedicado à liberdade erguido sobre as ruínas de suas casas.