Morei alguns anos nos Estados Unidos. Quando resolvi voltar, fui ao consulado brasileiro em Washington DC e me informaram que eu teria direito a trazer, sem pagar impostos, minha mobília e objetos de casa. Era a lei. Havia certa burocracia, é claro. Era o consulado brasileiro.
Eu precisaria fazer uma lista detalhada de todos os itens, em papel tamanho A3, em várias vias, segundo o formato exigido pelas autoridades consulares. Cumpri com as determinações e levei a papelada ao consulado para os indispensáveis carimbos. Despachei a mobília de navio e viajei.
Leis e regulamentos detalhados existem até em potências econômicas como os EUA e a Alemanha. O que torna o Brasil um caso especial é o poder dessa regulação, seu grau de interferência em nossas vidas
Meses depois, no Rio de Janeiro, fui ao porto liberar a mudança. Um fiscal da Receita Federal fez a conferência da carga. Não era muita coisa – eu não trouxe nenhum móvel propriamente dito; eram apenas objetos pessoais e eletrodomésticos. O fiscal examinou tudo com cuidado: bicicleta, televisão, computador, videocassete (isso foi em 1994). Sem aviso, ele parou na frente de um forno de micro-ondas. “Esse forno é novo”, declarou, “vai ter que pagar imposto”.
“Não é novo, não. Mas e se fosse?”, perguntei. “A lei diz que posso trazê-lo, morei cinco anos nos Estados Unidos. Ele faz parte da minha mobília”.
"O forno é novo, paga imposto".
"Mas ele está declarado aqui”, eu disse, mostrando todos os formulários preenchidos, carimbados e protocolados no consulado. “Eu fiz tudo de acordo com as regras. Tenho direito a trazer minha mobília. É a lei”.
Ele olhou para mim.“A lei aqui sou eu”, respondeu.
Nos segundos que se seguiram muita coisa passou pela minha cabeça. Pensei em dizer e fazer coisas que, ao final, não fiz nem disse. O que eu disse foi: “Pode fazer a guia que eu pago”.
Paguei trezentos dólares de imposto por um forno de micro-ondas que era meu e que eu tinha direito de trazer com isenção de impostos, de acordo com a lei do meu país.
Por que isso aconteceu? Leis e regulamentos existem em todos os países. Por que a situação é muito pior no Brasil?
Leis e regulamentos detalhados existem até em potências econômicas como os EUA e a Alemanha. O que torna o Brasil um caso especial é o poder dessa regulação, seu grau de interferência em nossas vidas, a forma como essa regulação é determinada e seu objetivo último.
Praticamente nenhuma atividade econômica é possível no Brasil sem múltiplas autorizações e permissões das várias esferas do governo.
A maior parte dessas licenças e alvarás não tem como objetivo servir à sociedade – ou seja, não aumentam a segurança do consumidor, nem melhoram a qualidade dos produtos, nem reduzem os preços, nem geram maior eficiência para a economia. Nada disso. São apenas instrumentos de coleta de tributos ou pura burocracia, com o único objetivo de permitir o jeitinho brasileiro.
Criar uma enorme burocracia baseada em atestados, pareceres e fiscalizações só serve para criar dificuldades negociáveis, que nada têm a ver com o interesse público. Já está demonstrado que quanto mais burocrático é o governo, maior é a corrupção no país. Como diz Thomas Sowell em Economia Básica (2):
Burocracias lentas são uma reclamação comum ao redor do mundo, não apenas porque os burocratas costumam ganhar a mesma coisa independentemente de sua produtividade, mas também porque em alguns países os burocratas corruptos aumentam substancialmente a sua renda aceitando suborno para apressar processos. Quanto maior o poder do governo e o escopo de suas funções, e quanto mais burocracia é necessária, maiores são os custos que podem ser impostos atrasando-se processos e mais lucrativas são as propinas que podem ser obtidas.
Há muitos anos um remédio importante que meu filho precisava tomar regularmente sumiu das farmácias. Razão: greve da Anvisa. Como assim? O remédio já era vendido antes da greve. A Anvisa precisa fiscalizar cada caixa de medicamento que entra no país? E se ela entra em greve, os remédios não podem mais ser importados?
Uma pequena parte da minha mudança dos EUA veio de avião. Fui desembaraçá-la em um depósito da alfândega no aeroporto do Galeão. Encontrei uma senhora que tentava há dois dias liberar sua mudança (ela também havia morado nos EUA). Naquela altura ela já tinha passado os dois dias preenchendo formulários, pagando taxas, mostrando comprovantes, entrando em filas e enfrentando estoicamente o descaso e a indiferença da burocracia. Na última fase do processo, durante a inspeção final de sua mobília, o fiscal abriu um armário de banheiro e achou medicamentos.
"Para tudo", ele ordenou. "Vamos ter que chamar a Vigilância Sanitária".
A senhora teve uma crise nervosa.