| Foto: Jocelaine Santos/ DALL·E 3
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Há muitas coisas que poderíamos escolher como símbolo da decadência da civilização. Eu escolho a caixa de som do juízo final.

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Certamente você já viu uma delas. À primeira vista, parece uma mala, daquelas que a gente coloca no compartimento superior do avião, só que bem mais volumosa e com uma alça comprida. Mas logo se vê que não é uma mala: aquele objeto assombroso que o grupo arrasta a caminho da praia é uma caixa de som.

É exatamente isso: uma caixa de som do tamanho de uma mala. Um objeto demoníaco e portátil, que pode ser levado de um lado para o outro – mas que é levado principalmente para a praia, para a beira do mar.

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O sujeito chega com amigos e família trazendo cadeira, guarda-sol, isopor cheio de gelo com bebidas – que ele já vem bebendo, mesmo que ainda seja 7 horas da manhã – e, invariavelmente, a caixa de som do juízo final. Quando ele liga a caixa, sempre no volume máximo, desaparece qualquer outro som ao redor. Conversar se torna impossível.

A caixa de som do juízo final é o símbolo do desprezo pelo convívio social, da desconsideração pelo sossego alheio.

Na minha investigação pessoal e não científica, o gosto musical dos proprietários dessas caixas está sempre muito abaixo da pior expectativa. Esse gosto é imposto em cima de todos os banhistas em volta.

Reclamações não costumam surtir efeito. Afinal, o indivíduo que arrastou aquele trambolho de algum lugar distante – do quinto dos infernos? – até a beira da praia não vai deixar de usá-lo só porque alguém quer um pouco de silêncio. Mas foi para isso que você foi à praia: para ouvir o barulho das ondas – um dos ruídos mais relaxantes que a natureza produz – ou para ler um livro e conversar.

Não vai rolar. Em vez disso, você vai ouvir uma seleção de baladas, pagodes ou funks feita pelo próprio capiroto em um dia de mau humor. E no volume máximo.

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Um dos episódios mais bizarros que já presenciei foi protagonizado por um homem alto, robustíssimo e com cara de quem procurava confusão. Ele se instalou na pedra do Arpoador com a mãe de todas as caixas de som – o maior equipamento que já vi. Na tarde de um dia de semana, quando a praia estava cheia de mães com crianças pequenas, o sujeito começou a tocar – no volume máximo, claro – a sequência de músicas mais pornográficas que já ouvi. Estou sendo caridoso chamando aquilo de música. Era apenas uma sequência de expressões grosseiras e misóginas, de baixo calão, que faziam fronteira com a apologia de violência sexual.

Entrei no mar para nadar e, por muito tempo, na água e já distante da pedra, eu ainda escutava o lixo sonoro despejado por aquele sujeito.

A caixa de som do juízo final é o símbolo do desprezo pelo convívio social, da desconsideração pelo sossego alheio e da falta de compreensão de uma das regras mais importantes: antes de fazer alguma coisa pense no que aconteceria se todo mundo fizesse o mesmo que você.

Confesso que tenho vontade de adquirir uma caixa apocalíptica só para contra-atacar esses embaixadores das trevas. Quando o sujeito ligar sua caixa, eu ligarei a minha em volume máximo disparando Every Breath You Take, da banda The Police, ou a balada Kiss Me, do grupo Sixpence None The Richer, ou As Quatro Estações de Vivaldi ou – o que seria talvez o melhor contra-ataque, o mais poderoso e o mais sutil – Lígia, de Tom Jobim, provavelmente minha música preferida nessa vida.

Mas, se eu perder a paciência, mando logo Smells Like Teen Spirit, do Nirvana, e ai acabará a discussão.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]