Todo mundo conhece alguém que fala muita besteira. Todos têm um amigo que exagera em tudo o que diz, ou que distorce os fatos de acordo com a conveniência – às vezes, apenas para apimentar uma narrativa. Há pessoas, como dizia o jornalista Cristopher Hitchens a respeito do ex-presidente americano Bill Clinton, com uma compulsão tão forte para a mentira que mentem até quando não ganham nenhum benefício com isso.
Todo mundo conhece alguém assim. Nossa reação, em geral, é passar a desconsiderar tudo o que a pessoa diz. A pergunta é: por que não temos a mesma atitude em relação a veículos de mídia?
O trabalho de um veículo de mídia de qualidade é uma luta permanente contra o tempo e a favor da verdade.
Todos nós conhecemos bem um assunto ou outro. Há sempre alguma coisa sobre a qual sabemos mais do que a maioria. Pode ser que você entenda de mercado financeiro, de nutrição ou de mecânica de automóveis. Você pode ser um especialista, por exemplo, em Direito Constitucional. No meu caso, devido a uma sequência de incidentes e à minha curiosidade, passei a entender um pouco melhor como funciona – ou não funciona – nosso Sistema de Justiça Criminal. Me tornei um “especialista” em segurança pública (a razão das aspas é que os verdadeiros especialistas em segurança pública são os policiais, eu sou um mero curioso mesmo).
Quase todas as matérias sobre criminalidade que encontro na mídia me deixam espantado com a quantidade de erros e distorções, e com a decisão de não usar lógica ou bom senso para conectar causa e consequência. Na verdade, a maior parte dos artigos sobre segurança inverte a relação entre causas e consequências. Esses artigos sobre criminalidade são escritos – ou seria melhor dizer produzidos? – seguindo o mesmo roteiro. É uma narrativa, pré-estabelecida antes mesmo de qualquer apuração dos fatos, que o brasileiro conhece bem: o criminoso é um pobre coitado, que não teve oportunidade, que foi oprimido pelo sistema e agora, depois de ser forçado a cometer um crime, será duplamente injustiçado ao ser preso pela polícia e punido pela lei.
Ficamos chocados com a incapacidade da mídia de entender e falar sobre aquilo que conhecemos, mas viramos a página e passamos a ler as outras matérias.
Você provavelmente sente a mesma coisa quando encontra na mídia uma matéria sobre um assunto que domina, e constata que o jornalista não tem nenhuma compreensão dos fatos ou das questões envolvidas. E aí vem o paradoxo: ficamos chocados com a incapacidade da mídia de entender e falar sobre aquilo que conhecemos, mas viramos a página e passamos a ler as outras matérias – sobre assuntos que não dominamos como economia, política ou ciência – como se as outras matérias fossem, de alguma forma, mais bem escritas do que as bobagens que acabamos de ler.
Você, que trabalha com transporte, fica revoltado ao ler uma matéria em defesa da “regulamentação” da sua profissão, cheia de informações inverídicas – de mentiras – mas confia no mesmo jornal para te informar sobre a tal “reforma tributária”.
Você, que é especialista em geração de energia, acaba de ler uma matéria totalmente errada sobre usinas termoelétricas – tão errada que te dá vontade de ligar para o jornalista – mas agora acredita que o mesmo jornal tem condições de te informar o que está acontecendo em Israel. Ou na Argentina. Ou no Congresso Nacional.
Não fui o primeiro a me dar conta desse paradoxo. Na verdade, ele já foi descrito pelo autor americano Michael Crichton – o que mostra que ele não é, de forma alguma, restrito à mídia nacional. Na verdade, o fenômeno pode ser observado na maioria dos veículos de comunicação do mundo, especialmente depois da criação do ciclo de 24 horas de notícias em que todos precisam falar, o tempo todo, sobre todos os assuntos, mesmo aqueles sobre os quais não têm qualquer conhecimento.
Os melhores amigos do espectador e leitor continuam sendo seu senso crítico e sua capacidade de comparar e avaliar as diferentes versões.
Um exemplo é a revista The Economist da qual fui, durante o tempo em que morava no exterior, fiel leitor e assinante. Quando retornei ao Brasil, passei a perceber o quanto eram equivocadas as matérias da revista sobre meu país. Dá um calafrio imaginar que milhares de pessoas podem estar formando a sua opinião sobre o Brasil com base nessas matérias.
Isso acontece, provavelmente, porque veículos como a The Economist cobrem uma enorme variedade de países e tópicos. Seus leitores – como eu era – gostam dela exatamente por essa razão: seus artigos trazem informações sobre eventos, locais e pessoas que, normalmente, nem saberíamos que existiam, como a república de Nagorno-Karabakh ou o rapper americano Young Thug (para citar assuntos da edição mais recente).
O problema é que, para escrever com fidelidade e conhecimento sobre dezenas de países e temas numa única edição, seria preciso contar com uma formidável equipe de especialistas ou com jornalistas que moram em cada um desses países, para produzir matérias a partir de fontes primárias ou de pesquisa apurada. Mas quantos veículos de mídia têm recursos, tempo e determinação suficiente para fazer isso?
O trabalho de um veículo de mídia de qualidade – e tenho orgulho de dizer que contribuo para vários deles, inclusive esse aqui – é uma luta permanente contra o tempo e a favor da verdade. Mas os melhores amigos do espectador e leitor continuam sendo seu senso crítico e sua capacidade de comparar e avaliar as diferentes versões da realidade que nos são servidas todos os dias.
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