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Roberto Motta

Roberto Motta

Estou ficando surdo

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Estou ficando surdo. É verdade. Minha mulher quer que eu use um aparelho auditivo. Primeiro, naturalmente, fingi que não ouvi. Depois respondi: nem morto. Surdez até que tem suas vantagens, eu disse. Serve como filtro contra bobagens e coisas sem importância. Quando o assunto é mesmo importante as pessoas repetem o que eu não ouvi. Quando é bobagem, elas mesmo admitem: “Não foi nada, besteira, esquece”.

Quando alguém resmunga alguma coisa, sentado no sofá do outro lado da sala, eu não ouço. É preciso falar alto e claro. Quando a moça do caixa do supermercado faz um comentário qualquer, e não estou olhando para ela, não entendo o que ela diz. Não tem problema. Sorrio e digo: “Pois é”. Funciona sempre. Nas conversas, de vez em quando, perco uma frase ou outra. Raramente faz muita diferença. Quando faz, eu digo: “Desculpe, estou ficando surdo. O que você disse mesmo?”.

A surdez me livra da obrigação de ouvir as pessoas que defendem a censura em nome da liberdade, o arbítrio em nome da democracia e a impunidade em nome da “justiça social”

Minha surdez não me impede de ouvir o barulho do mar. Curiosamente, é um som que a maioria das pessoas parece ignorar. Também ouço o canto dos pássaros que quase ninguém escuta: os bem-te-vis na janela do apartamento, os quero-queros que fizeram um ninho na areia da praia e muitas outras aves que não sei nomear. Minha surdez não me impede de ouvir o vento sudoeste sacudindo os ramos das árvores.

Estou ficando surdo, mas qualquer ruído me acorda de noite: uma porta batendo em um apartamento distante, a conversa de dois mendigos na rua lá embaixo, uma torneira pingando. Durma-se com um barulho desses. Mas a surdez é uma realidade: não consigo mais conversar em restaurantes barulhentos ou em ambientes onde as conversas se misturam. Na recepção de um hospital é impossível entender o que a recepcionista, que usa máscara, está dizendo.

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Mas, como tudo na vida, a surdez tem outro lado. Ficou fácil ignorar comentários tolos ou triviais. Se meu interlocutor não tem nada a dizer eu agora não tenho nada a ouvir. A surdez me livra da obrigação de ouvir as pessoas que defendem a censura em nome da liberdade, o arbítrio em nome da democracia e a impunidade em nome da “justiça social”. Posso fingir que não ouvi a opinião daquela personalidade importante que, não faz muito tempo, pensava exatamente o contrário do que afirma hoje.

Deixando de ouvir as palavras eu presto atenção aos gestos e às fisionomias, que revelam as verdadeiras intenções. Em um mundo onde as palavras perderam seu significado, e a linguagem é usada como instrumento de fraude e traição, surdez funciona como um manto protetor.

Porque, se estou ficando surdo, o mundo está ficando louco.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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