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Roberto Motta

Roberto Motta

O hábito do erro: a pergunta que ninguém faz sobre fuga de Mossoró

Presídio Federal de Mossoró de onde fugiram dois detentos (Foto: Depen / Divulgação)

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Dois criminosos que cumpriam pena fugiram de um presídio federal em Mossoró, no Rio Grande do Norte. O presídio era um dos cinco administrados pelo governo federal, considerados de “segurança máxima”. Ao comentar o corrido, autoridades desfilaram uma sequência de declarações inusitadas, como a de que “a fuga ocorreu em uma terça-feira de carnaval, onde eventualmente, as pessoas estão mais relaxadas”.

Não se espera muitas surpresas de uma investigação sobre fuga de presos. Os criminosos podem ter recebido ajuda de fora – eles pertencem a uma facção – ou de alguém do próprio presídio. Não será difícil descobrir o que aconteceu e os criminosos provavelmente serão recapturados. Cumpridas essas etapas, restará uma pergunta importante, que precisa ser respondida se um dia quisermos voltar a viver sem medo do crime.

Nenhum criminoso brasileiro cumprirá toda a sua sentença dentro de uma cela, não importa a selvageria do ato que tenha cometido.

Há muito tempo o discurso das autoridades brasileiras é o de compaixão com os criminosos, especialmente os que estão presos. Autoridades e personalidades públicas já afirmaram que “prender não adianta porque não ressocializa”, que “o Brasil prende demais” e que certos crimes – como roubo de celular – “não merecem prisão” (embora, frequentemente, o roubo do celular resulte no assassinato do dono do aparelho, como aconteceu essa semana, no Rio de Janeiro, com o estudante de odontologia Lucas Carneiro Monteiro Meirelles, de 27 anos). Já ouvimos até que “o assalto tem uma lógica”. Os criminosos também assistem televisão, leem jornais e acessam a internet. Como será que eles se sentem ao ouvir tantas expressões de encorajamento e tantas justificativas intelectuais para seus crimes?

Há uma questão importante escondida na profusão de detalhes sobre a fuga de Mossoró, que precisa ser colocada na mesa. É uma questão que deveria mobilizar o país. Não existe mais, em nosso sistema de Justiça criminal, a convicção de que o criminoso é o único culpado pelo crime e que ele deve ser punido de forma proporcional à gravidade da ofensa – o que deve significar necessariamente, nos casos de alguns crimes graves, isolamento permanente da sociedade. É o que acontece em todas as democracias ocidentais. Penas muito longas de prisão, ou mesmo a prisão por toda a vida, existem em todas essas democracias. Muitas delas adotam também a pena de morte.

Mas como o debate moral sobre criminalidade e punição está praticamente interditado no Brasil, quem aponta esse absurdo – como eu faço constantemente – corre o risco – como já aconteceu comigo – de ser acusado de querer “exterminar os criminosos”. Logo eu, que sou contra a pena de morte (mas a favor, isso sim, de penas longas o suficiente para efetivamente neutralizar criminosos perigosos).

Crime sempre existiu em todas as épocas e em todos os países. O crime jamais vai acabar. Mas a crise de criminalidade do Brasil pode ter um fim. Para isso é necessário um mínimo de bom senso e coragem moral, principalmente para afirmar que determinados criminosos são irrecuperáveis e que outros, mesmo que pudessem ser “reabilitados”, não podem jamais retornar ao convívio social devido à depravação dos crimes que cometeram. É assim que demonstramos apreço pela vida humana e respeito pelas 40 mil vítimas que são mortas, todos os anos, pelos criminosos brasileiros.

A progressão de regime e as saidinhas são oportunidades para a prática de crimes ou para fuga, oficialmente concedida pelo Estado brasileiro.

Entretanto, no Brasil de hoje, afirmar isso é cometer uma heresia. O Sistema Judicial brasileiro trata todos os criminosos como recuperáveis, e se recusa a condená-los a penas compatíveis com a gravidade de seus crimes (explico essa situação em detalhes no meu livro A Construção da Maldade).

Os dois criminosos que fugiram do presídio federal foram descritos pelas autoridades como “altamente perigosos”. Centenas de policiais estão em seu encalço. Entretanto, esses dois criminosos, em algum ponto do cumprimento de suas sentenças, passarão para o chamado “regime semiaberto”, no qual o preso apenas dorme na prisão e tem o direito de passar o dia fora – teoricamente “trabalhando” mas, na prática, sujeito a pouco ou nenhum controle. Todo preso brasileiro tem esse direito, independente do crime que cometeu.

Vamos repetir essa informação: os dois criminosos, considerados altamente perigosos, e por isso mantidos em um presídio de segurança máxima, em certo momento no futuro, serão transferidos para outro presídio e passarão a ter o direito de passar o dia fora da prisão. Qual será o mecanismo que fará com que esses presos, que hoje são altamente perigosos, se tornem menos ameaçadores ou até inofensivos, a ponto de serem autorizados a andar pelas mesmas ruas e frequentar os mesmos locais que eu, você e nossas famílias? Que método, tecnologia ou mágica será usada para operar essa transformação?

Quem fizer essa pergunta não receberá nenhuma resposta. Provavelmente, pela minha experiência, ouvirá apenas ofensas, que virão junto com uma sopa ideológica rala na qual flutuam conceitos de alta flacidez moral e intelectual, como a tal da “ressocialização”– uma farsa que já foi totalmente desmascarada por autores como Theodore Dalrymple em seu livro A Faca Entrou, pelo psiquiatra forense Stanton Samenow no seu clássico A Mente Criminosa e pelo detalhado, mas ainda largamente desconhecido, trabalho de pesquisa do professor brasileiro Pery Shikida.

O legislador brasileiro, movido por desconhecimento da realidade do crime, por despreparo moral e pela repulsa ideológica ao que lhe parece um instrumento autoritário, decidiu que, no Brasil, a prisão para criminosos violentos será sempre temporária. Nenhum criminoso brasileiro cumprirá toda a sua sentença dentro de uma cela, não importa a selvageria do ato que tenha cometido. Todos terão, em algum momento, direito ao “benefício” da progressão de regime. Pense no absurdo que isso significa.

É preciso retirar a neblina moral e ideológica que encobre os eventos de Mossoró e perguntar: se esses dois criminosos são altamente perigosos a ponto de causar essa comoção, como é possível que eles, um dia, tenham direito à progressão de regime e a “saidinhas”? Nenhuma autoridade ou governo pode, ao mesmo tempo, defender progressão de regime e aparentar preocupação com a fuga de criminosos perigosos. Basta um momento de reflexão para perceber que a progressão de regime e as saidinhas são oportunidades para a prática de crimes ou para fuga, oficialmente concedida pelo Estado brasileiro.

Isso já aconteceu em um número incontável de casos. Talvez o mais famoso tenha sido o dos assassinos de Tim Lopes, que apesar de condenados a décadas de prisão, tiveram direito à progressão de regime e fugiram. Um deles estava preso havia apenas 5 anos, o outro sete anos. Essas foram, efetivamente, as penas impostas pelo bárbaro sequestro, tortura e assassinato de um jornalista. A questão importante no caso de Mossoró não é como os criminosos fugiram. A questão é porque criminosos como esses terão direito a “benefícios” como progressão de regime e saidinha.

Senhores repórteres, essa é a pergunta que tem de ser feita ao novo ministro da Justiça: “Senhor ministro, em algum momento no futuro esses dois criminosos perigosos passarão para o regime semiaberto. O senhor acha que nesse momento eles deixarão de ser criminosos perigosos e se tornarão cidadãos de bem?”.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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