| Foto: Mircea Iancu/Pixabay
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Quem sabe as razões pelas quais lembramos algumas coisas e esquecemos outras? Quase tudo que vivemos acaba se apagando da memória. Por que alguns eventos, aparentemente triviais, nunca são esquecidos?

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Era um sábado de outono quando o motorista do carro cinza parou no sinal de trânsito da Lagoa Rodrigo de Freitas, bem em frente à Sociedade Hípica. No banco de trás estava a filha muito amada, que avançava pela adolescência sob a proteção e os cuidados do pai. Seguiam, pai e filha, rumo a uma festa de aniversário.

Parado no sinal vermelho ele viu, ao longe, um barco que deslizava na lagoa, emoldurado por duas acácias. Ele então se lembrou do mendigo.

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Onde ficam guardadas essas memórias? Em que canto escondido elas repousam, para um dia retornar, sem aviso?

Acontecera há 40 anos. Era 1980 e ele tinha 18 anos. Tinha também toda a inocência, vitalidade e alegria do mundo. Todas as portas se abriam.

Ele havia sido aprovado nos vestibulares mais difíceis para as melhores universidades. Assim que tirou a carteira de motorista o pai compartilhou com ele um carro novo – um Volkswagen Passat a álcool de primeira geração. Ele ainda se lembrava do cheiro adocicado do escapamento. No Passat ele dirigia até a casa da sua primeira namorada. Aquela palavra o fez sorrir: namorada.

Era um trajeto que começava em Botafogo, onde ele morava, passava pela Lagoa e ia até o início de Ipanema. No meio do caminho estava aquele sinal – o mesmo sinal onde, naquele dia, 40 anos depois, ele estava parado, sua filha no banco de trás do carro.

Quarenta anos antes: o vigor interminável da juventude, a satisfação pelas conquistas acadêmicas e o mistério do primeiro amor produziram nele uma alegria de viver que ele experimentaria de novo apenas em poucas ocasiões, ainda no futuro: quando foi contratado para trabalhar em um banco nos Estados Unidos, no dia do seu casamento e nos dias em que nasceram seu menino e sua menina. Mas em 1980 tudo aquilo ainda estava por vir.

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Em 1980 sua rotina era frequentar as aulas na faculdade e, à noite, dirigindo o Passat, visitar a namorada.

A família jantava por volta das 7 da noite. Depois do jantar ele pegava as chaves do carro, esquentava o motor do Passat e tomava o rumo da namorada. No caminho, o sinal da lagoa. No sinal, um mendigo pedindo esmola.

O mendigo tinha um defeito de nascença que deformara sua coluna vertebral. Ele caminhava com dificuldade entre os carros, a mão estendida.

Ninguém é verdadeiramente jovem se não se revolta com as injustiças e assimetrias do mundo. É fácil perceber que, enquanto alguns desfrutam de segurança e amor, outros parecem condenados a uma vida sem esperança. Era aquilo que passava na cabeça dele todas as vezes em que parava no sinal e encontrava o mendigo.

Um dia, antes de se levantar da mesa, ele abriu um pão francês ao meio, passou manteiga e colocou um dos bifes que sobraram do jantar. Juntou alguns guardanapos e colocou tudo, com cuidado, em um saco plástico.

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Quando parou no sinal da lagoa ele entregou o sanduíche ao mendigo. Pelo espelho retrovisor, enquanto partia rumo à namorada, ele conseguiu ver o mendigo sorrindo e agradecendo com as mãos.

Passou a fazer isso todos os dias. Algumas vezes o mendigo não estava lá. Muitas vezes estava, o reconhecia e agradecia sorrindo.

Então chegou o inverno. Era necessário deixar o Passat esquentando quase meia hora antes de sair. Chovia e fazia frio.

Em um daqueles dias, além do sanduíche, ele levou outra coisa: um casaco vermelho, estofado. Era um casaco bonito.

Porque nenhum homem que tem o vigor dos 18 anos, o amor de uma jovem mulher e a segurança de uma família pode assistir impassível enquanto outro ser humano passa fome e frio.

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“Não se eu puder fazer alguma coisa“ ele pensou.

Por isso, naquele dia de inverno de 1980, junto com um sanduíche de carne assada com queijo e maionese, o mendigo, cujo nome ele nunca soube, cujo nome ele nunca teve a coragem de perguntar, recebeu outra sacola. Na segunda sacola estava o casaco vermelho.

Por que nos lembramos de algumas coisas e esquecemos outras? Por que, nos milhares de dias de nossas vidas, algumas memórias ficam gravadas, inapagáveis, no meio da neblina da existência?

Alguns dias depois, quando ele parou no sinal, o mendigo vestia o casaco vermelho.

Ele nunca esqueceria a imagem, vista pelo retrovisor do carro, do homem curvado sob o peso do destino, lutando pela sobrevivência, usando o casaco que tinha sido seu.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]