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Roberto Motta

Roberto Motta

Só os surfistas são felizes

(Foto: Unsplash)

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Estou aprendendo a surfar. Há 40 anos. Meus problemas são muitos. Meu fôlego é limitado. Tenho medo de ondas grandes. Não consigo ficar muito tempo submerso. É impossível me equilibrar em cima da prancha. Eu tento há 40 anos, mas subo na prancha e logo caio.

Surfar significa se equilibrar em cima de uma massa de água em movimento. Parece difícil. É muito mais difícil do que parece. Surfar é como esquiar uma avalanche.

O surfista precisa encontrar equilíbrio em um ambiente onde tudo é instável. Quem assiste da praia não se dá conta disso mas, no mar, nada é estático.Tudo está sempre em movimento, na superfície e embaixo.

A principal característica de um bom surfista é a percepção espacial. Ele conhece a exata localização de cada parte do seu corpo, em todos os momentos, enquanto se move em três dimensões em um mundo líquido que desaba ao redor. É a habilidade de um bailarino.

A mágica do surfe é rápida demais para os olhos. Só câmeras conseguem capturar o que o surfista realmente faz, especialmente em ondas grandes, especialmente em tubos dentro dos quais caberia facilmente uma casa. O que os vídeos e fotos revelam é claramente impossível; nenhum ser humano pode fazer aquilo. Ninguém tem reflexos tão ágeis. Ninguém suportaria uma queda debaixo das massas de água de Pe'ahi, Teahupoo ou Nazaré.

Mas é isso mesmo que acontece.

Só a câmera lenta consegue mostrar, na onda colossal, a prancha entalhando uma trilha de espuma que, lentamente, se transforma em um arco. O surfista como um escultor.

O fato é que, enquanto escrevo, o mar subiu no Arpoador. Minha covardia e minha inaptidão me obrigam a ser espectador. Me junto aos outros que assistem da praia.

Surfistas despencam de ondas enormes. Sua coragem é um desafio ao resto da humanidade. É como se perguntassem “Onde estão vocês agora? Por que não estão aqui?”. Eles também parecem perguntar: o que pode haver de mais importante do que ser jovem e voar sobre o mar?

Eu não sei responder.

Hoje há escolinhas de surfe e vídeos que ensinam tudo. Na minha época, você arranjava uma prancha e se virava sozinho. Surfe era visto como atividade de vagabundos. Quando passei no vestibular, em 1979, meu pai me levou à loja da Sears Roebuck, que ocupava todo o prédio onde hoje é o Botafogo Praia Shopping. Comi um cachorro-quente na lanchonete e comprei uma prancha amarela, feia, da K&K – era o que eles tinham para vender. Nenhum surfista comprava pranchas em lojas de departamento. A galera do surfe encomendava suas pranchas de shapers, feitas sob medida. Comecei mal. Minha prancha era feia e o cachorro-quente me rendeu uma infecção intestinal. Foram cinco dias em um hospital.

Meu primeiro ídolo no surfe foi Pepê, que evoluiu para o voo livre e morreu em um acidente em uma competição no Japão. Meu segundo ídolo foi Laird Hamilton, um dos primeiros a descer Jaws de windsurfe (Laird é um waterman; ele pratica todos os esportes aquáticos). Meu ídolo atual é Lucas Chumbo, que desce as montanhas de água de Nazaré como se estivesse brincando no quintal, fazendo coisas que acreditávamos impossíveis. Como se achasse pouco se arriscar em Nazaré, Chumbo foi arriscar a vida com o amigo Pedro Scooby resgatando pessoas na enchente do sul. Deveria mudar o nome para Lucas Anjo.

Uma grossa camada de nuvens agora cobre o Arpoador.

A primeira vez que tentei subir em uma prancha foi no final dos anos 1970. Antenor, filho de pescadores, fazia parte da nossa turma em Barra de Maxaranguape, perto de Natal, onde passávamos os verões. Ele guardava a prancha de um surfista que raramente aparecia por lá. No último dia de férias, incentivado por uns trocados, Antenor trouxe a prancha para experimentarmos: era linda, grande, branca e com desenhos de flores. No final da tarde daquele último dia, cada um de nós teve sua chance de tentar ficar em pé em cima daquela coisa linda.

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Mas agora observo o mar do Arpoador. Arpex para os íntimos.

Picachu, surfista local e dos melhores, desce um monstro em forma de onda, faz a curva no fundo, sobe na velocidade máxima e decola rumo ao sol. Lá em cima, em pleno ar, ele faz uma manobra que não consigo descrever, mistura de acrobacia e dança: ele gira do ar uma, duas ou três vezes, depois cai de novo na onda e continua a surfar como se nada tivesse acontecido. Vejo Guilherminho, Chalita, Gugu, todos os locais estão na água. O professor Alexandre Pretão me vê e faz um gesto com os braços, as palmas das mãos viradas para cima, como quem pergunta: desistiu?

Estou aprendendo a surfar há 40 anos. Meu tempo provavelmente passou. É uma frustração que levarei comigo. Será que ainda dá tempo? Meu amigo Antônio Paulo tem mais idade do que eu e cai em mares gigantes – e surfa bem.

Surfar é organizar o karma. É a maior mobilização de energia que já experimentei. A vida é muito curta para não surfar – mas e eu, faço o que agora?

(Nota do autor: a trilha sonora dessa crônica é De Repente, Califórnia, de Lulu Santos)

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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