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4 faces de Eduardo Galeano


Se eu disser que a morte do Galeano foi uma perda do tamanho da luta que ele travou contra a desigualdade vou chover no molhado, destrinchar o óbvio. E ele não gostava quando obviedades gastavam o espaço da palavra densa e certeira. Mas não vou ligar pra isso agora. E quero fazer mais do que lamentar sua partida. Resolvi destacar aqui algumas das várias faces de um escritor que conquistava o coração e a razão das pessoas, sem o menor esforço, com uma escrita inteligente, inspiradora e mágica.

O intelectual

Em 2009, durante um encontro entre chefes de estado, Hugo Chavez presenteou Barack Obama, com As veias abertas da América Latina. O mundo inteiro se voltou para a obra, que, em tom provocativo, caiu nas mãos do presidente dos Estados Unidos. Tratava-se de um livro histórico, no qual o escritor uruguaio Eduardo Galeano expunha a maneira como o território latino-americano foi dominado, sem o menor vestígio de piedade ou cautela.

Uma das principais referências para a esquerda, o livro trouxe grandes análises sobre a formação do panorama econômico e social da América Latina e se tornou um símbolo de resistência à exploração das nossas riquezas, apesar do aspecto passional e quase novelesco. ”Ele tenta mostrar que não tem riqueza que seja inocente. Toda riqueza nasce de alguma pobreza”, disse o escritor em entrevista ao Programa Entrelinhas, da TV Cultura, há seis anos.

O honesto

Na Bienal do Livro de Brasília do ano passado, Galeano deu uma lição de honestidade que surpreendeu muitos leitores. Ele confessou não se sentir à vontade com sua mais famosa obra. O autor revelou que, quando escreveu As veias abertas da América Latina, era muito jovem e não conhecia o tema do trabalho como deveria. “A realidade mudou muito. Eu mudei muito. Meus espaços de penetração na realidade cresceram tanto fora, quanto dentro de mim. Dentro de mim, eles cresceram na medida em que eu ia escrevendo novos livros, me redescobrindo, vendo que a realidade não é só aquela em que eu acreditava”, explicou durante o evento.

O conciso

A cada livro publicado, Galeano se tornava mais conciso, leve e profundo. E foram mais de 40 obras lapidando a qualidade do gênio bolivariano. Em coleções lançadas recentemente, o autor retrata a América Latina em crônicas breves e deliciosas, que apresentam uma capacidade incrível de síntese e leveza. Uma das que mais me marcaram está no Bocas do tempo, que ganhei do meu namorado há uns três anos. O texto conta que Libertad Lamarque – sim, a Vovó Piedade, de A usurpadora -, depois de ser agredida pelo marido, decide pular do apartamento onde morava, no quarto andar. A senhora cai sobre um toldo, que cai sobre um dentista que, por sua vez, estava visitando a mãe. No fim das contas, o homem acaba salvando da morte a mulher da sua vida.

Essas histórias contadas de um jeito divertido e sem muita enrolação são uma boa amostra da veia jornalística do escritor e a prova de que não é preciso ser prolixo para ser denso. Certa vez, em uma entrevista, ele chegou a justificar, com a frase do amigo Juan Carlos Onetti, seu apreço pela precisão:“As únicas palavras que merecem existir são as palavras melhores que o silêncio”. E, antes disso, brincou: “Temos que tomar cuidado. Na América Latina, a inflação palavrária é muito mais perigosa do que a inflação monetária”.

O sábio

Talvez por essa capacidade de dizer tanto em linhas curtas, o uruguaio era uma máquina de fazer aforismos. Sobre futebol, política, cotidiano, economia. Para cada questão ele tinha uma maneira de ser enfático, pontual e transbordar sensibilidade. Coisa digna de grandes sábios. Basta ler ou assistir algumas de suas entrevistas para notar essa capacidade de fazer poesia até com o mais banal dos diálogos. O que a gente encontra nos livros não é diferente.

A propósito, uma de suas pérolas dizia que “a memória guardará o que valer a pena” e que “ela não perde o que merece ser salvo.”.  As tantas homenagens rendidas ao ícone latino-americano nas últimas horas confirma essa tese: o mundo não esquecerá o escritor porque a memória tem razão. E Galeano também tinha.

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