Não era a primeira vez que ela passava pelo país. Em uma de suas viagens mais recentes como repórter do O Estado de S. Paulo, Adriana cobriu o atentado à adolescente que viria ser a mais jovem ganhadora do Premio Nobel da Paz. Depois de ler a matéria no jornal, o editor-executivo da Companhia das Letras, Matinas Suzuki, convidou a correspondente para escrever um livro sobre a menina. E o desafio foi aceito.
As três semanas na terra de Malala foram intensas e emocionantes. Adriana passou uma tarde no quarto da ativista, olhando seus objetos, seus desenhos e, durante dias, visitou a Khushal, escola fundada pelo pai da garota, Ziauddin Yousafzai. Malala cresceu ali. E a jornalista fez questão de levar isso em conta ao longo de sua pesquisa. Por isso, não poupou esforços para falar com a diretora, os professores e os colegas de turma.
Do contato com a meninada do Vale, nasceu a ideia de elaborar um livro-reportagem para crianças sobre a trajetória da paquistanesa. Para dar continuidade ao projeto, Adriana estudou literatura infantil por um ano no intuito de contar de maneira lúdica e clara uma das histórias mais bonitas que os noticiarios internacionais já nos trouxeram. A ideia deu certo. Malala: a menina que queria ir para a escola foi lançado recentemente e já é sucesso.
Em entrevista ao Rodapé, Adriana Carranca, que é correspondente internacional do Estadão e uma das maiores referências do jornalismo brasileiro ligado aos direitos humanos e à condição social das mulheres, falou sobre a experiência de revelar para crianças uma realidade tão diferente da nossa e mostrar como a coragem de Malala têm ajudado a alavancar a esperança do mundo.
Qual foi o ponto de partida para sua pesquisa assim que você chegou ao Vale do Swat?
O ponto de partida foram as meninas baleadas com Malala, porque elas eram testemunhas do que ocorrera, e depois a escola, onde Malala literalmente nasceu,em um puxadinho anexo construído por seu pai. Foi ali que uma menina no início pobre – o pai dela então desempregado abriu a escola no ano de seu nascimento- se tornou a Malala que conhecemos hoje. Eu queria saber como uma escola, em uma zona tribal, tinha transformado uma menina na mais jovem Nobel da Paz.
O que mudou e tem mudado naquele distrito após a repercussão internacional da história de Malala Yousafzai?
São lentas as mudanças, mas acho que o principal ganho foi disseminar a ideia de que é inaceitável, no século 21, que meninas e meninos estejam fora da escola. Ninguém mais duvida disso. Não pode haver concessões em relação a isso. E o caso Malala tornou muito mais difícil para qualquer pessoa ou grupo defender o contrário. Os talibãs acharam que iriam calar Malala, mas o que fizeram com o atentado foi dar a ele um megafone e ampliar o alcance da sua voz. O seu exemplo também motiva outros a fazer o mesmo.
Alguém ali ainda vê a jovem de forma negativa?
Muitos, infelizmente, principalmente no cinturão tribal, onde vivem os pashtuns, etnia da Malala e também dos talibãs. Os pashtuns tem uma tradição milenar que se mantém até hoje, porque nunca se deixaram conquistar como um povo, então, vivem da mesma forma, em um sistema tribal e com os mesmos costumes, há milênios. Esse histórico de aversão a influências estrangeiras torna muito difícil as relações com outras culturas. Ao mesmo tempo, o analfabetismo ainda é baixo na região e as condições de vida são precárias, o que faz com que parte da população esteja isolada e isso, é claro, os torna mais suscetíveis à manipulação de grupos locais mal intencionados como os talibãs. Soma-se a isso a tradição oral do povo pashtun, em que as histórias (e lendas) se espalham como fogo na floresta e os talibãs sabem disso. O chefe do grupo, Mulá Fazlullah, acusado de ordenar o atentado contra Malala, tinha o apelido de Mulá Rádio. Ele se tornou conhecido por seus sermões em canais locais clandestinos. Usava a tradição oral dos pashtuns para influenciar a população e continuou fazendo isso depois, espalhando inverdades sobre Malala depois do atentado, como por exemplo, a de que ela era uma agente dos EUA e da Grã-Bretanha. Muitas mentiras foram espalhadas e, é claro, que sua história foi usada por atores dos dois lados desse conflito, depois do atentado. Mas não podemos perder de vista o fato de que ela era só uma menina que queria ir para a escola e levou um tiro por isso.
Por que optou por escrever um livro-reportagem para crianças e que referências você utilizou para se adequar a esse gênero?
Quando tive a ideia de contar essa história às crianças, eu fui estudar literatura infantil. Estudei durante um ano, entre uma oficina e aulas particulares com o professor Claudio Fragata. Eu tinha nas mãos uma história incrível e queria ter certeza de que a transmitiria de forma atraente, sensível e adequada às crianças. A inspiração veio da convivência com outras crianças do Vale do Swat. Durante a apuração fui percebendo como essa história tinha elementos da literatura infantil: o Swat parece um vale encantado, habitando por um povo guerreiro, cobiçado pelos maiores conquistadores da História, personagens sobre os quais as crianças aprendem na escola, como Alexandre, o Grande. Mais recentemente, o vale se torna um principado e ganha seus reis e rainhas, príncipes e princesas – eu entrevistei o Príncipe do Swat. Toda essa história até chegar em Malala é muito rica. E, então,surge essa menina do cinturão tribal que ousa levantar a voz contra vilões que invadiram sua cidade e proibiram as meninas de estudar.Malala é uma heroína contemporânea, uma anti-Cinderella. Não queria encontrar um príncipe e se realizar pelo casamento, mas ir para a escola e se tornar alguém por si própria, através da educação. Essa é uma ode à educação. É também a história de um pai e de uma escola que deram a essa menina todas as ferramentas para que se desenvolvesse e se tornasse a mais jovem Nobel da Paz.
Você é reconhecida como uma das jornalistas brasileiras que mais lutam pelos direitos das mulheres por todo o mundo. Como foi que você escolheu esse caminho?
Eu realmente não escolhi, aconteceu. A notícia se impôs. Eu fui a lugares onde havia violações contra as mulheres e, como jornalista, eu estava atenta a elas e simplesmente fiz o meu trabalho, que é o de reportar. Talvez tenha testemunhado essas violações porque cobri muitos conflitos e sempre tive interesse maior no impacto deles na população civil. Para reportar sobre isso, procurei sempre me hospedar com famílias locais para observar ver isso de perto e, naturalmente, nas casas,a convivência com as mulheres é sempre maior. Até porque os homens estão na guerra. Na maioria dos conflitos, os homens estão no front e são as mulheres que tocam a vida, garantem que as coisas continuem funcionando, que o país não pare. Mas eu não me coloco como uma ativista. Eu sou jornalista. Às vezes essas duas coisas se misturam porque, é claro, os direitos humanos de sobrepõem a outras regras e, como jornalista, tenho a obrigação de reportar as violações que testemunho. Não existe jornalismo totalmente isento. Somos, antes de tudo, humanos.
Você se considera feminista?
Não gosto de rótulos, acho que podem reforçar mais as diferenças do que ajuda a nos vermos como iguais: seres humanos com os mesmos direitos. Isso deveria bastar hoje. Mas acho que o movimento feminista foi muito importante num momento específico da história numa sociedade específica. Fazia sentido para aquelas mulheres daquela época. De qualquer forma, não sou ativista, mas jornalista. Meu foco está nos direitos humanos universais e minha obrigação em trazer à luz e à discussão da sociedade qualquer ameaça a esses direitos ou, pelo lado positivo, iniciativas transformadoras que ajudam no cumprimento desses direitos e inspirem, como a história da Malala.
Malala: a menina que queria ir para a escola
Adriana Carranca
Ilustrações: Bruna Assis Brasil
Editora: Companhia das Letrinhas
96 páginas
2015
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