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O sensível mundo de Halla

Halla sequer entendia a vida quando a morte apareceu para levar sua irmã gêmea. A protagonista do romance A desumanização, de Valter Hugo Mãe, de repente, se viu refém de um choque que a obrigou a encarar o que havia de mais profundo em si e ao seu redor.

Nessa passagem, o sofrimento, bem como a autodescoberta que o seguiu, pouco a pouco, a desumanizaram para humaniza-la. Nas palavras do autor, desumanizar-se é “perder sensibilidade, robustecer, não permitir a vulnerabilidade para persistir sendo gente. Para não perecer”. E foi isso o que aconteceu à garotinha.

A partir de uma escrita dinâmica, o autor angolano retrata em seu romance publicado no Brasil no ano passado pela Cosac Naify a história de uma menina que se perde frente a uma perda e precisa reconstruir o sentido da sua realidade tentando equilibrar o peso da ausência e a descoberta do mundo real ao fim da infância.

Contado em primeira pessoa por uma pré-adolescente, o livro tem um ritmo psicológico que movimenta a atenção do leitor conforme a personagem vai construindo novas perspectivas sobre tudo. Como se fôssemos convidados a aprender o mundo com ela.

Com a irmã, Halla passou seus dias encarando a vida sob um aspecto lúdico. Tudo era brincadeira, tudo era pretexto para uma parceria sincera, alegre e infantil. Entre as duas, Sigridur parecia ser a líder, a que ditava as regras do jogo e legitimava o significado de qualquer verdade, mesmo que inventada.

Quando uma delas morre, toda a lógica estruturada ao longo de uma infância inteira se dissolve em meio à loucura da mãe, que não aceita a perda de uma das filhas e desconta sua revolta em Halla; aos poemas do pai, que, sensível, tenta escapar da angústia escrevendo para se compreender; ao desatinado impacto do fim; e, claro, à saudade perturbadora da menina que se foi.

Tamanho caos faz com que Halla se sinta distante de seu frágil conceito de vida. A faz se sentir fraca, vazia e menos morta, mas nunca viva. Para nascer de novo, ela percorre uma trajetória psicológica traçada pelos cacos deixados pela irmã. É essa caminhada sublime que arrebata de vez o leitor para o interior da Islândia, onde a história acontece. Mais cedo ou mais tarde, a gente começa a suspeitar que aquele lugar mágico tenha uma passagem secreta para dentro de nós. A desumanização é uma verdadeira surra na maneira superficial com a qual a gente se acostuma a encarar a existência.

Linguagem

Halla é uma criança que descobre o mundo. Esse processo de construção se alinha a uma linguagem delicada, que redefine a essência de sensações e conceitos por meio de metáforas que beiram o onírico.

Tal qual Manoel de Barros, poeta brasileiro que foi, inclusive, editado por Valter Hugo Mãe, o angolano consegue reinventar as palavras para aderi-las a um universo cujo significado ainda não é tão claro quanto parece.

Quando, por exemplo, Sigridur morre, Halla tenta imaginar como seria essa coisa à qual chamamos de morrer e lamenta saber que a irmã enterrada não poderia brotar. Inconformada com a morte e talvez por não aceitar que uma vida tão importante se encerrasse sem ao menos se tornar semente, a protagonista questiona o pai, que, docemente, sugere que a história de Sigridur não acabava ali. Ela era apenas uma criança bonsai.

A filha se desespera pensando no conflito vida/morte que a diferenciaria da irmã para sempre. Então pede para ser aparada a fim de que nunca crescesse para ficar igual à garota falecida. “Faz de mim um bonsai. Peço-te. Corta o meu corpo, impede-o de mudar. (…) Se os bichos na terra não a deixam ser maior, se é verdade que a levam por inteiro, que fique ao menos eu, pelas duas, a ser igual, para não morrermos”.

Maiúsculas

A desumanização não tem apenas letras minúsculas, como grande parte das obras do angolano. O autor, que antes só escrevia em caixa baixa, influenciado pelo pintor e poeta luso Al Berto, compôs a história de Halla sem investir nesta fórmula.

Pouco antes de o trabalho chegar ao Brasil, o escritor explicou em uma entrevista à revista Cult que resolveu deixar esse estilo para não ser reduzido ao romancista que escreve em letras pequenas. Achou que estava na hora de mudar.

Sendo um dos livros que representam bem essa transição do autor, A desumanização se despede das minúsculas e reforça em linhas ainda mais robustas a grandiosidade de uma densa produção literária. A propósito, para quem ainda não leu nada de Valter Hugo Mãe, começar por esse livro é uma forma apaixonante de ingressar em sua obra. E pela porta da frente.

A desumanização
Valter Hugo Mãe
Editora: Cosac Naify
páginas
2014

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