A semana da Páscoa foi de polêmica em Curitiba por conta do projeto de segurança alimentar enviado pelo prefeito Rafael Greca (DEM) à Câmara Municipal. O projeto que propõe a oficialização do programa Mesa Solidária, em que a prefeitura coordena a ação voluntária de distribuição de refeições à população em situação de rua, repercutiu negativamente ao determinar que o programa fosse o único organizador de distribuição de alimentos na cidade, prevendo advertência e até multa a pessoas e instituições que doassem comida sem estar vinculadas ao projeto.
Após severas críticas de vereadores, Ministério Público, Defensoria Pública, instituições de assistência social e da sociedade como um todo, a prefeitura enviou um substitutivo à Câmara, retirando do texto qualquer sanção a ações fora do programa.
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Mas, afinal, qual a intenção da Prefeitura com essa proposição? Em entrevista à Gazeta do Povo, o secretário municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, Luiz Gusi, explica a ideia.
Qual é o objetivo deste projeto de segurança alimentar, que cria o Mesa Solidária?
O objetivo é cumprir um direito constitucional que é o direito humano à alimentação adequada. Claro que focado a uma população em extrema vulnerabilidade social, que são as pessoas em situação de rua. O processo é, justamente, para criar um marco regulatório para que a gente possa conhecer mais todo o ecossistema social. A gente já trabalha há 14 meses com o Mesa Solidária, em três espaços, com 40 organizações, entre igrejas, organizações sociais, grupos voluntários, num trabalho de segunda a segunda, com mais de 280 mil refeições servidas. Então, já existe essa troca de experiências. Nesse trabalho, a gente começou a observar que há pontos da cidade em que se tem a distribuição do alimento pronto para consumo em excesso, porque não há uma organização, não se compartilha uma agenda. Então, muitas vezes, falta em alguns pontos e tem em excesso em outros, com desperdício e criação de condições para pragas urbanas, como ratos e baratas. Então, conhecer todo esse ecossistema social é importante e é só um marco regulatório que define esse processo.
Na prática, então, o projeto visa que o município coordene toda a distribuição de alimentos na cidade?
A gente já tem cerca de 40 instituições trabalhando conosco. Eu posso, conhecendo a estrutura dela, saber no que precisa ser aperfeiçoada, aportar recursos, fornecer equipamentos. Mas, hoje, eu estou impedido de fazer isso porque não tenho um dispositivo legal que me permita fazer isso. Temos o banco de alimentos, que é o banco oficial que recebe alimentos de todas as formas. E, a partir do banco de alimentos eu destino insumos para essas entidades poderem produzir o alimento, reduzindo o custo delas. O objetivo do projeto de lei é que o poder público, e isso é papel do poder público, possa ordenar esse processo, para aqueles que tiverem interesse em trabalhar em parceria com a prefeitura.
Mas o projeto impede outras iniciativas voluntárias, independentes do poder público? Quem quiser doar refeições precisa, obrigatoriamente, se vincular à prefeitura?
Quando a gente fez a apresentação do projeto, e a gora a gente tem um substitutivo lá, toda a repercussão acabou gerando uma série de informações, de questões e de discussões, até mesmo nas redes sociais. Isso chamou a atenção para que a gente fizesse o substitutivo. E todo o caráter de multa, de sanção, foi retirado. Então, quem quiser fazer um atendimento individual, pode fazer. Mas existe uma preocupação: como é uma população que está exposta aos agravos de saúde, isso tem uma responsabilização social. É preciso atenção sobre as boas práticas de manipulação de alimentos. Se eu não tiver atendendo isso, posso estar submetendo essa pessoa a um risco de intoxicação. A nossa preocupação é de que sejam observadas essas boas práticas. É em cima disso que a lei observa algumas questões. Porque nós podemos capacitar, podemos trazer mais informações. Agora, quando eu não sei quem é, por mais que seja uma ação voluntária, individual, eu não consigo chegar a essas pessoas.
E como a prefeitura pretende regulamentar isso?
Se eu vou lá, sirvo, fiz minha ação social, mas não me preocupei se teve um excedente, se antes de mim alguém já doou refeição para aquelas mesmas pessoas, se depois de mim, mais alguém doará, gera um desperdício, e ainda o risco ambiental, e o custo público para limpar. Se não há o ordenamento disso, não tem uma ação responsável. E, a mesma coisa, é quanto à qualidade do que está sendo servido, atender as boas práticas, ter a distribuição correta de nutrientes, a temperatura correta, a boa condição do alimento, uma questão de qualidade, o que o Poder Público está se dispondo a garantir com o Mesa Solidária, que já trabalha neste sentido. A partir do momento que um grupo voluntário vai lá no Mesa, ele já tem um contato social. Nos primeiros meses, houve uma aversão, um receio de trabalhar com o Poder Público. Hoje, está muito mais natural. Temos 28 técnicos da secretaria se revezando neste trabalho de orientação de boas práticas. Isso é uma questão de responsabilidade no processo. Não adianta só fazer o ato social, eu tenho que ter responsabilidade porque quem vai consumir essa comida é uma população sujeita a agravo de saúde. Além disso, oferecemos o espaço adequado para a alimentação, não no logradouro público, gerando lixo, sujeira, que a gente observa na prática. Toda essa polêmica está servindo para colocar luz neste processo. Por isso que foi retirado multa, sanção, porque esse não é o objetivo maior.
Com a retirada da proibição de distribuições fora do programa, a prefeitura vai elaborar alguma ação para garantir essas boas práticas mesmo fora do programa?
O projeto vai ter uma audiência pública, acreditamos que virão outras contribuições, mas já existem dispositivos legais específicos da Vigilância Sanitária, específicos da questão ambiental, o código de postura do município. É um trabalho complexo conscientizar as pessoas desse processo. O que percebemos é que não existe falta. Tem muita gente fazendo ação voluntária, empresas, instituições. O que existe é um desordenamento. Estamos colocando uma luz neste processo e as pessoas vão começar a perceber que é necessário trabalhar nestas questões de boas práticas, de desperdício. Quem quiser trabalhar com o Mesa Solidária, terá orientação sobre tudo isso. Estamos estruturando cozinhas comunitárias, com toda a estrutura para as entidades utilizarem, dentro das regras da vigilância sanitária, para dotar de infraestrutura essa ação de voluntariado. Mas, para isso, a gente precisa de um credenciamento. Trabalhei muito com as feiras livres. Criamos esse trabalho de gestão da qualidade nas feiras livres. Em um primeiro momento, foi uma confusão, muita reclamação. Hoje, é notório como as feiras evoluíram na questão das boas práticas, desde o corte de unha do feirante, à temperatura dos alimentos, a rotulagem. Com o Mesa Solidária, queremos fazer isso, uma referência sobre como deve ser o fornecimento de alimentos a essa população. Não quer aderir, não quer atuar junto com o Poder Público, ao menos observe nossas referências de dignidade de sentar à mesa, de integração, de segurança, higiene. Bem diferente de se servir em um logradouro público.
Outra crítica que se fez foi ao timing do projeto. Ele foi enviado à Câmara, em regime de urgência, durante o lockdown, com Curitiba em bandeira vermelha, no auge da pandemia, com muita gente sem renda e passando fome...
A gente está há 14 meses trabalhando no Mesa Solidária. Começamos em 23 de dezembro de 2019, no Restaurante Popular do Capanema, no contraturno. De lá para cá só vem crescendo. No que entrou a pandemia, observamos a diminuição do trabalho voluntariado, das doações, o que nos preocupou. Ao mesmo tempo, como são pessoas com risco de agravo de saúde, tínhamos que pensar como atendê-los, tínhamos algum recurso para ser liberado, mas impeditivos legais para investir nessas entidades, acabamos agindo de uma maneira natural, apresentar o projeto e pedir a urgência para conseguir iniciar logo o atendimento do jeito que planejamos, fazer o contato com as entidades, dar os espaços adequados, as informações e, quem sabe, algum apoio estrutural. Ninguém seria irresponsável de, num momento em que se tem fome na cidade, criar uma polêmica. Tanto que logo que percebemos, a prefeitura tirou o estado de urgência, apresentou o substitutivo, vamos participar da audiência pública. O grande objetivo é uma visão proativa. Em nenhum momento a intenção foi de punir, proibir ou dificultar. Vamos compor, buscar novas vozes, incentivar a iniciativa, mas nosso papel é mostrar que isso tem que ser uma ação responsável.
O senhor citou a disponibilidade de recursos para as ações. O projeto tem um Orçamento definido. Tem um planejamento de estruturação?
A gente tem um fundo de segurança alimentar, tem um banco de alimentos, que recebe doações. Temos investido recursos próprios da secretaria neste projeto. Mas, muitas vezes, eu sou impedido legalmente de apoiar uma iniciativa que não seja no espaço da prefeitura, mesmo que atenda o protocolo sanitário. Tivemos uma crescente de emendas parlamentares para segurança alimentar, estamos com um edital pronto de captação de patrocínio, o setor privado tem interesse em investir nisso. A participação voluntária no programa pode ser, inclusive, com a doação em recursos financeiros, que subsidiarão essas entidades na produção de alimentos. Vamos construir todos os mecanismos de participação para quem quiser participar da forma como quiser. O projeto nos dará o marco legal para isso.
A gente já tem, nos nossos três pontos, dois que servem jantar. Um que tem almoço e jantar. Temos o restaurante popular da matriz que tem um lanche da tarde. A gente vai adequando à medida que a gente conheça melhor esse ecossistema social. Ao invés de servir na rua, servir em espaços adequados. Já estamos com o nosso radar para abrir novos espaços. Mas, se não tem um credenciamento, a gente não tem ideia do tamanho disso, onde precisa buscar novos espaços.
Estamos em trabalho avançado para instalar três cozinhas comunitárias, queremos chegar a 10, porque a pandemia está levando muita gente para baixo da linha da pobreza. Então, nosso público alvo passa a ser muito além da população em situação de rua, que hoje supera as três mil pessoas na cidade. Temos que pensar, também, nas pessoas que têm um teto, mas não estão conseguindo acesso à alimentação adequada por estarem sem renda.
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