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Farrapo humano

A grande viagem – em todos os sentidos – de J. A. Sutter. Epílogo. Nova Helvétia prosperava rapidamente. A terra, “que não necessitava ser arada”, recebe as sementes. Armazéns são construídos, cavam-se poços. Há muito o que fazer. Como relata Stefan Zweig, “numerosos colonos das regiões vizinhas, das missões abandonadas, acodem a engrossar a nascente colônia”.
“O êxito é gigantesco. As sementes produzem um benefício de quinhentos por cento. Os depósitos estão abarrotados e as cabeças de gado se contam por milhares”. Sutter decide plantar árvores frutíferas, “as hoje famosas frutas da Califórnia”. Manda trazer vinhas da França e do Reno. Apesar dos repetidos ataques dos indígenas, Nova Helvétia “vai adquirindo proporções fantásticas”.

Um dia após o outro

Belo dia, e que belo, um tal de James W. Marshall, o carpinteiro que instalava uma nova serra mecânica na granja Coloma, chega, excitadíssimo, à casa de Sutter.
“Tira do bolso um punhado de areia entre a qual brilham uns tantos grãos amarelos. Na véspera, cavando, encontrara aquele metal tão estranho”. Acredita ser ouro, mas os outros acharam graça.
“Sutter põe a areia na sua mão e analisa. É ouro”. No dia seguinte, esvazia o canal em Coloma e explora a areia do leito. Bastava peneirar um pouco e “as brilhantes pepitas de ouro se destacam sobre a tela metálica”, descreve Zweig. “Jamais o ouro se tinha apresentado em tal abundância, de um modo tão fácil de obtê-lo. Nunca tinha aparecido assim na superfície da terra, e essa terra de ouro é sua propriedade. É de Sutter! Numa única noite passaram dez anos. Sutter já é o homem mais rico do mundo”.
Firma-se um pacto entre Sutter e “os homens brancos que convivem com ele”: manter em segredo a descoberta, sob palavra de honra, até terminar a instalação da serra mecânica.
Em menos de oito dias, porém, o segredo se desfaz. Todo mundo (inclusive e principalmente os funcionários de Sutter) abandona o trabalho e vai catar o ouro abundante. Instala-se o caos. Largado à própria sorte (mais uma vez), ele vê ruir a sua nova Helvética.

Mais um dia

1850 – O território da Califórnia é anexado pelos Estados Unidos. Sutter recorre à Justiça. “Começa então um processo de tais dimensões como jamais a humanidade tivera oportunidade de ver”, conta Zweig.
O desbravador acusa 17.221 colonos (sic) que ocuparam as suas terras lavradas; exige a reintegração de posse e reclama do Estado da Califórnia 25 milhões de dólares a título de indenização por caminhos, canais, pontes, represas e moinhos de sua propriedade e dos quais se apropriou o Estado.
Quer mais: outros 25 milhões de dólares (sic) como reparação pelos bens adquiridos e reclama “uma parte do outro extraído”.
No dia 15 de março de 1855, o juiz Thimson, “incorruptível”, primeiro magistrado da Califórnia, reconhece os direitos de Sutter e declara “as suas pretensões plenamente justificadas e indiscutíveis”. Zweig destaca: “J. A. Sutter conseguira o seu objetivo – é o homem mais rico do mundo”.

O destino, outra vez

Mais rico do mundo? “Não. O mais pobre dos mortais, o ser humano mais desgraçado. Novamente o Destino lhe dá uma pancada mortal e esta o aniquilará definitivamente”.
Com a notícia da sentença, “estala em San Francisco e em todo o país um imponente motim”. O palácio da Justiça é incendiado, a massa tenta linchar o juiz Thimson, o incorruptível, e depois segue para a casa de Sutter. Seu filho mais velho suicida-se, o segundo é assassinado. O terceiro morre afogado ao empreender fuga. A destruição das propriedades é total.
Zweig traça o retrato de Sutter: “um homem acabado, um imbecil, andrajoso, que vaga, constantemente, em Washington, em torno do Palácio da Justiça. E isso durante 25 anos. Todos os funcionários judiciais conhecem o ‘general’ de sobrecasaca suja e de sapatos rotos que reclama os seus milhões”.

No bolso, a sentença

17 de julho de 1880: “O hóspede permanente da antessala do Congresso” sofre um ataque cardíaco e morre numa das escadarias do prédio. Como um mendigo.
Em seu bolso, a sentença na qual “se lhe reconhece, a ele e aos seus herdeiros, a possessão do mais rico e vasto patrimônio que a história da humanidade já conheceu”.
Ninguém, até hoje, reclamou a herança de Sutter: “A cidade de San Francisco e toda a sua extensa comarca prosseguem construídas e localizadas sobre domínios alheios. Ainda não se fez justiça”, finaliza Stefan Zweig.
– Alguém se habilita? – bota a colher Beronha.
– The end – arrisca Natureza Morta.
The end? – duvida Beronha, desta vez sabiamente.

ENQUANTO ISSO…


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