O encanto das palavras. Fascínio que vem atraindo gente ao longo do tempo, de Jean-Paul Sartre a Millôr Fernandes, para ficar em dois exemplos. Essa presença hipnótica leva até a um exercício muito pessoal: como num toque de mágica, fazer surgir uma palavra a partir das frias e burocráticas placas de carros.
Como? O embrião são as letras. Aí, promove-se a substituição dos números. Maluquice? Não, exercício mental. De ALE-6061 pode-se chegar a ALE-crim.
Vocabulário em trânsito
Depois que leu, em alguma biografia ou depoimento, que Millôr não perdia uma placa de carro para dar-lhe vida, criando palavras, Natureza Morta passou a fazer o mesmo.
– Uma espécie de “enriqueça seu vocabulário” ambulante – explicou para o professor Afronsius, vizinho de cerca (viva).
Em recente passeio pelas redondezas, o solitário da Vila Piroquinha colheu mais exemplos:
– SAL-3427= SALgado. Ou SALitre.
– CAP-7866= CAPitão.
– ABA-1433= ABAcate. Ou ABAlado.
– ALP-7532= ALPiste.
Beronha gostou da brincadeira. E não é que conseguiu formar algumas palavras?
– XAL-2344= XALxixo.
– ASP-4432= ASPones
– CER-8754= CERveja (!)
– BER-1313= BERonha (!!)
– BAR-3199= BARbado (argh!)
– ABO-2111= ABOnado (oba!)
– CHI-2424= CHIfres (epa!)
A graça de uma vírgula
Em As Palavras, Jean-Paul Sartre revela que ainda não sabia ler “mas já era bastante esnobe para exigir os meus livros”. Assim, nas “cerimônias de apropriação”, pegou dois volumes de contos e “cheirei-os, apalpei-os, abri-os negligentemente na ‘página certa’, fazendo-os estalar. Debalde: eu não tinha a sensação de possuí-los. Tentei sem maior êxito tratá-los como bonecas, acalentá-los, beijá-los, surrá-los”.
Até que compreendeu: era o livro que falava. “Dele saíam frases que me causavam medo: eram verdadeiras centopéias, formigavam de sílabas e letras, estiravam seus ditongos, faziam vibrar as consoantes duplas: cantantes, nasais, entrecortadas de pausas e suspiros, ricas em palavras desconhecidas, encantavam-se por si próprias e com seus meandros, sem se preocupar comigo: às vezes desapareciam antes que eu pudesse compreendê-las, outras vezes eu compreendia de antemão e elas continuavam a rolar nobremente para o seu fim sem me conceder a graça de uma vírgula”.
Se os livros falam, por que não as também silenciosas placas?
Afinal, é mais instrutivo do que ficar olhando as barbeiragens do cotidiano.
Pegadinhas beronhísticas
E lá veio ele de novo. Interrompendo o papo do professor Afronsius com Natureza Morta, Beronha arregaçou a manga (como se ninguém notasse o gesto) e leu alguma coisa anotada no pulso (como se ninguém notasse a cola):
– O que é o que é abichornado?
Rápido no gatilho, deu (ou melhor, leu) a resposta:
– Não é o que vocês estão pensando. É quente, abafado, triste, vexado, envergonhado…
Isto posto, bateu em retirada. Ao dobrar a esquina, berrou:
– Bando de incultos!
ENQUANTO ISSO…