– Sabe com quem está falando?
– Nananão… Com o doutor delegado?
– Não, que nada… Está falando com um pacato cidadão, fiel seguidor da lei e cumpridor de seus deveres.
O diálogo foi breve, mas o suficiente para deixar Beronha trêmulo. E, enquanto nosso anti-herói de plantão refazia-se do susto, o professor Afronsius tratou de explicar.
– Foi só para dar um susto e confirmar o que todos sabem. No país da casa grande e muitas senzalas, vale-tudo para intimar e intimidar a turma debaixo. Dos porões do navio negreiro.
De velhos carnavais
Natureza Morta a tudo acompanhou, quieto em seu canto, embora também postado junto à cerca (viva) da mansão da Vila Piroquinha para o dedo de prosa da manhã.
Afinal, conhece o professor Afronsius de “muitos e velhos carnavais”. A brincadeira – que quase colocou Beronha a nocaute – serviu de gancho para a conversa sobre o carteiraço, uma prática que persiste.
– Tem carteiraço de todos os tipos. O da carteira de identificação profissional propriamente dito, o dos decalques com o brasão da República, do governo do Estado ou de algum órgão do Poder Judiciário ou Poder Legislativo, devidamente afixados no para-brisa do automóvel. Passando pelo crachá ou o colete que parece bradar “imprensa”.
– Sem esquecer o igualmente intimidador “eu sou filho do doutor beltrano”… Ou sobrinho do pajé, compadre do síndico.
Tiro pela culatra
São tantos os casos de carteiraço que o solitário da Vila Piroquinha fez questão de pinçar um. Altamente emblemático. Ocorreu no aceso do caso do sequestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burk Elbrick, ocorrido no Rio de Janeiro, no dia 4 de setembro de 1969. Em troca, o grupo exigia “a libertação de 15 presos políticos, a serem enviados ao exílio no México, Chile ou Argélia”. O que, de fato, ocorreu.
Libertado, Elbrick não fez carga contra os sequestradores, e comentaria que tinha sido bem tratado. Em carta à esposa, com data do dia 6, assegura: “I am all right, e pede que a polícia não se meta”.
No livro “Memórias do Esquecimento – Os segredos dos porões da ditadura”, de Flávio Tavares, 2005, o jornalista (um dos integrantes do grupo libertado em troca do embaixador), conta o episódio envolvendo Jorge de Miranda Jordão, que, em São Paulo, tinha dirigido a Última Hora e a Folha da Tarde.
O bisneto de Caxias
Jordão estava no Uruguai quando foi sequestrado em um hotel de Montevidéu pelo policial Otero (“famoso como policial matador de Tupamaros”). Levado até a fronteira, nas proximidades da cidade gaúcha de Jaguarão foi oficialmente “solto”. Cruzou a ponte a pé e, do lado brasileiro, tinha gente à espera. Foi preso.
Levado para o Rio de Janeiro, ao chegar ao quartel sentiu o clima tétrico e foi logo dizendo ao major:
– Não me bote a mão que eu sou bisneto do Duque de Caxias!
O militar quis saber sobre o parentesco. Jorge “explicou que o pai era Lima e Silva pelo lado materno e, assim, o nome do patrono do Exército o salvou da tortura”, revela Flávio Tavares no capítulo IX, sob o título “O compadre com fuzil”.
Natureza decide baixar uma ordem.
Dispensar. Pano rápido.
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