Imagine estar sozinho sob um implacável sol ardente, cujos raios, antes de atingirem sua cabeça descoberta, cruzam um ar seco e sufocante, sua vista embaçada e trêmula, e, para qualquer lado que olhe, apenas dunas de areia.
Em quantas histórias do Oriente já não vimos algum personagem perdido no deserto, ou impelido a atravessá-lo por uma necessidade premente, por falta de alternativa? Quantos, agoniados pelo calor e pela sede, e à beira do desespero, não se imaginaram próximos de um oásis ou de um poço d’água, e até mesmo obrigaram seus cérebros a vê-lo, a criar uma miragem? Considere bem o que não representa, para o beduíno solitário ou para a caravana unida no silêncio, um poço encontrado no deserto! Como não deve ser inebriante, para eles, o som da roldana que traz, das profundezas da secura, a água que revitaliza – como Saint-Exupéry gostava tanto de fazer lembrar, em seus livros...
No Evangelho, Jesus chega cansado a Sicar por volta do meio-dia – a poeira da estrada toda pegada ao suor do seu rosto divino, e seca a boca que proferiu todas as parábolas. Enquanto os discípulos iam à cidade comprar comida, Ele vai sentar-se à beira de um poço, donde tirava água uma mulher samaritana. “Dá-me de beber”, diz; e em seguida acrescenta que, se ela soubesse quem Ele é, e qual o dom de Deus, ela é que lhe pediria de beber, duma água viva. A mulher quer saber como tiraria Ele a água, se não tem com o que colhê-la do poço fundo. “Todo aquele que bebe desta água tornará a ter sede”, responde Jesus, “mas o que beber da água que eu lhe der jamais terá sede: a água que eu lhe der virá a ser nele uma fonte de água que salte para a vida eterna”. E a mulher samaritana, que entrou para a história sem nome, de modo que pudéssemos todos tomar o seu lugar nesta prece, pede então ao Senhor: “Dá-me dessa água, para eu não ter mais sede”.
Ora, esta água que Jesus promete dar a quem pedir é a sua graça, a sua força, sua paz, é o benefício do Espírito Santo. Mas, “conhecendo o dom de Deus” e sabendo quem Ele é, nós devemos pedir que nos dê de beber dessa água – e esse pedir é a oração. É a oração que vai refrescar a nossa sede de sentido, depois de vagarmos, talvez o dia todo, pelo deserto do mundo, na aridez das contrariedades e sem termos com quem de fato conversar. É na oração que vamos lavar do nosso rosto a poeira da estrada, para que possamos de novo nos reconhecer, lembrar quem somos. A oração restaura as nossas forças do cansaço – do cansaço que sentimos com relação aos nossos próprios defeitos, muitas vezes. Ela é, como dizem os escritores espirituais, a respiração da alma, ou então o alimento da alma, e, assim como o corpo não vive sem respirar nem sem comer, também a vida da alma não pode perdurar sem a oração.
O exemplo dos cristãos, o testemunho que dão com sua vida, antes daquele que podem dar com as palavras, sempre foi o melhor apostolado de todos – e não será diferente com nossos próprios filhos
Tal como a respiração, há uma oração que deve ser ininterrupta, à qual Jesus se refere no Evangelho de Lucas, capítulo 18: “É preciso orar sempre, e não cessar de o fazer”. Trata-se de um viver continuamente na presença de Deus, sempre sob o olhar onisciente do Criador que nos ama e nos sustenta na existência, seja lá o que estivermos fazendo. É o cultivo, paralelo ao da nossa vida exterior, de uma vida interior. Diz a mística Gabrielle Bossis: “Que a tua vida seja um contínuo recolhimento, uma ininterrupta conversa com o teu Senhor”. E, tal como a alimentação, deve haver momentos privilegiados de oração, assim como quando paramos nossas demais atividades para sentar à mesa. Nestes momentos, ou neste momento único do dia, que seja – desde que haja ao menos um, pois ninguém passa bem o dia inteiro sem comer –, nós nos recolhemos especialmente, para intensificarmos a nossa atenção sobre esse interlocutor onisciente, e dialogarmos com Ele sem que haja, simultaneamente, nenhuma outra atividade exterior.
Garrigou-Lagrange diz que a oração consiste em “converter o monólogo interior em diálogo com Deus”, e Santa Teresa de Ávila, a grande mestra da oração, lembra sempre em seus escritos que a oração deve ser mesmo um diálogo, um trato de amizade com quem sabemos que nos ama. É quando estamos “solos con el Solo”, a sós com nosso único amor. Quando entramos no quarto para orar, e fechamos a porta, sozinhos, a primeira coisa que devemos fazer, segundo a mesma Teresa, é muito simples: buscar companhia. E, embora as palavras sejam bem-vindas nesse colóquio afável, sabemos que as boas amizades também se compõem de longos silêncios partilhados no amor.
Esse momento forte de oração, portanto, é quando chegamos cansados e empoeirados à beira do poço e, assim como fez Jesus com a samaritana, fazemos nós com Ele: “conhecendo o dom de Deus e sabendo quem Ele é”, pedimos “dá-me de beber da água viva, para que eu nunca mais tenha sede”. É o próprio Jesus a água, que já reside, e nos aguarda, no fundo do nosso mesmo coração. Buscá-Lo em oração é, pois, descer com o balde até o fundo do poço, operação esta que exige alguma preparação, e equipamentos adequados. Do contrário, pode valer para nós o que disse a mulher: “Tu não tens com que a tirar, e o poço é fundo”.
É preciso uma boa corda, isto é, a capacidade de alcançar a profundidade. Há de haver coragem para nos aprofundarmos dentro de nós mesmos, nos recônditos que nos são escuros, afastando-nos, para isso, de nossas visões superficiais, das opiniões e convicções que temos a nosso respeito e a respeito dos outros. É preciso, também, um bom balde, e que esteja limpo. Se, mesmo enviado às profundezas, ele levar consigo as impurezas da superfície, a poeira e a areia do deserto, a água que trouxer será adulterada, perdida. O balde limpo é um coração purificado das paixões grosseiras e das mesquinharias, é o coração capaz de ouvir uma palavra nova. E o balde não pode estar esburacado, isto é, devemos ter na oração uma atenção constante, suficientemente capaz de trazer, desde o fundo até nossa boca sedenta, a água que vai refrescar. De pouco vai servir uma corda que nos faça tocar a profundidade se, pelos furos de uma atenção erodida – por exemplo, pelo uso do celular, por conversas fiadas, zombarias desordeiras, ou qualquer uma das demais distrações possíveis –, escapar toda a substância.
Um coração purificado, coragem, profundidade. Um diálogo com Aquele que nos ama. Assim tiraremos do poço, assim lavaremos nosso rosto dia após dia, saciaremos nossa sede de sentido, sim, e nossa alma será refrescada, alimentada. Mas... nossa felicidade não estará completa.
A maioria dos que agora leem estas linhas creio que não sejam monges cistercienses nem freiras carmelitas, e sim gente que, embora não seja do mundo (do contrário, já teria se desinteressado pelo tema antes de chegar até aqui), esteja no mundo – e não sozinho, mas com sua família. Nós queremos trazer para cima o balde da água viva, mas não apenas para nós: queremos dar de beber aos nossos filhos. Queremos transmitir-lhes a fé. E muita gente se questiona sobre como fazer isso, desde que idade, e por que meios...
Bem, creio que a primeira e mais fundamental coisa a se fazer, neste assunto, seja batizar a criança. Há igrejas que discordam dessa prática, sei disso, mas a verdade é que o sacramento do batismo efetivamente enxerta na alma daquela criança a natureza divina, e inicia nela a vida sobrenatural. A água do batismo nos lava verdadeiramente da mancha do pecado original, adota-nos como filhos de Deus, e nos abre as portas do Céu. É claro que as potências da vida sobrenatural só serão atualizadas, por regra geral, conforme as potências da vida natural se desenvolvam na criança, ou seja, à medida que ela cresça e tome posse de suas faculdades. E por isso é costume no Ocidente que o jovem ou o adulto assuma em primeira pessoa a sua fé no sacramento da confirmação, na crisma. Mas o batismo, que é o primeiro sacramento, deve ser recebido como herança, assim como a fé dos pais é uma herança, e a herança é um direito. Tão logo uma criança nasce dentro de uma família cristã, são os pais, os padrinhos e toda a comunidade quem devem proferir, por ela, o Credo dos apóstolos – assim como farão por ela todas as coisas e a ensinarão tudo o mais, por um bom tempo! – e acolhê-la como membro da Igreja.
Mas convenhamos que isso não é difícil de fazer. Os problemas e as grandes dúvidas começam daí em diante, em como ensinar aos filhos uma prática de fé, um cultivo da amizade com Deus, da oração e das obras de piedade. Então, se a primeira coisa que mencionei foi batismo, a segunda deve ser o exemplo. O exemplo dos cristãos, o testemunho que dão com sua vida, antes daquele que podem dar com as palavras, sempre foi o melhor apostolado de todos, nas mais diversas circunstâncias – e não será diferente com nossos próprios filhos. O que não quer dizer, de modo algum, que a fé se transmita fazendo, propositalmente, práticas de piedade na frente deles, como que teatralmente, representando um tartufo. Isto não é verdadeiro exemplo, ou pior, pode ser um exemplo de hipocrisia. As crianças são as melhores observadoras de seus pais, e esse quê de falsidade teria apenas consequências negativas. Trata-se de ter, de verdade, e na justa medida da verdade, uma sincera busca pela vida interior e pelo progresso na virtude e no bem, sem falsear nossas falhas e imperfeições. É essa coerência de vida, ou essa busca de coerência com a fé que se professa, o que vai marcar a criança como um bom exemplo.
Mais que dar aos filhos aulas de catequese antes do tempo ou fora de hora, ou de tentar incutir neles gestos e práticas religiosas que vão lhes parecer obrigações chatas, o que precisamos fazer é orientar o seu olhar constantemente para o mundo interior
Algo semelhante vale para a expressão verbal, para as explicações doutrinais ou teológicas. De pouco adianta falar de Deus toda hora, e tentar fazer a criança entender racionalmente algo que, francamente, continua sendo um mistério para todos. O que vale para as crianças, cujo principal órgão de compreensão é a imaginação, é a imagem certa – e entendo “imagem” no sentido amplo, quer dizer, não falo apenas das imagens pictóricas, mas também das imagens sonoras, e inclusive das imagens verbais. Quando a criança faz uma pergunta sobre Deus, sobre os anjos ou sobre a criação do mundo, teologia escolástica não serve: o que serve para uma pergunta de criança é uma boa resposta de criança, é poesia. E posso afirmá-lo amparada, inclusive, pelo maior teólogo escolástico, pois quando um camponês mandou perguntar a São Tomás de Aquino se era verdade que no Céu existia de fato um grande livro, onde eram escritas as nossas boas ações e também nossos pecados, o Aquinate respondeu: “Parece que não é exatamente assim, mas não há mal nenhum em acreditar nisso”. Então não há mal nenhum em servir-se de uma boa imagem para transmitir a fé às crianças – e a Bíblia nos oferece muitas delas, as mais adequadas.
O problema das imagens para simbolizar o mistério divino é um tema bastante grave e longo para se tratar aqui, mas vale mencionar que ele afeta a todos nós, que não somos assim tão diferentes das crianças. Uma arquitetura desastrosa, que não inspire nenhuma reverência, ou uma música feia, ou que apenas instigue nosso corpo a dançar e nossa atenção a se exteriorizar, e nunca a “um contínuo recolhimento, uma ininterrupta conversa com o teu Senhor”, são coisas bastante contraproducentes. O mesmo vale para as imagens pictóricas, e os iconoclastas que creem que destruir todas as imagens seja a solução estão bastante longe de sequer começar a compreender o problema. Basta lembrar que nós próprios fomos criados à imagem de Deus (cf. Gn 1, 26), e que o Cristo “é a imagem do Deus invisível” (Cl 1, 15). Portanto, não é tão simples assim.
Enfim, mais que lhes dar aulas de catequese antes do tempo ou fora de hora, ou de tentar incutir neles gestos e práticas religiosas que vão lhes parecer obrigações chatas, o que precisamos fazer é orientar o seu olhar constantemente para o mundo interior, e, desde o mundo interior, para os sofrimentos do próximo. Nós temos de verdadeiramente tirar água do poço diante deles, para que vão, aos poucos, aprendendo a buscá-la por si mesmos, cada vez com menos ajuda nossa. Devemos cravejar a rotina deles com poucas orações, mas constantes, assim como devemos dispor em nossa casa poucos e bons objetos religiosos, para que preservem seu valor, e não se misturem com a paisagem.
Ao acordar, por exemplo, podemos fazer com as crianças uma oração breve, em que oferecemos nosso dia a Jesus e nos encomendamos à proteção da Virgem, fazendo um sinal da cruz ou dando um beijo no crucifixo.
No momento das refeições, devemos agradecer juntos pelo alimento, pedir a bênção sobre eles, e quem sabe também sobre aqueles que o prepararam. Também se pode pedir que o pão não falte a quem tem fome, ou à mesa de nenhuma família. Ou, como também é tradicional, que aqueles que estão unidos em torno da mesa material estejam juntos depois, no banquete celestial.
Do mesmo modo, antes de dormir, pode-se agradecer pelo dia, relembrar com as crianças aquilo de bom que viveram, rezar pelos amigos ou familiares com quem estiveram juntos, ou pelos que estejam precisando especialmente, por conta de alguma dificuldade. Pode-se pedir inclusive por alguma dificuldade pela qual a própria criança esteja passando. Podemos recitar as preces tradicionais: um Pai-Nosso, uma Ave-Maria, um Santo Anjo.
Além do mais, é importante que a família tenha algum momento de oração em conjunto, ainda que muito simples, de modo a ser um sinal de amor e de união, e de submissão daquela casa ao seu verdadeiro Senhor: de subordinação, de todas as labutas e cansaços daquela família, e de todas as suas relações, desafios e superações, ao seu objetivo final, àquilo, e Àquele, que lhe confere o sentido e o ser. Ao fim de um dia, a família orante retorna, assim, à sua origem, e volta-se novamente para o seu fim.
Para além dos momentos fortes de oração, que pontuam a rotina, como os momentos em que se vai ao poço beber água, a família também pode orar como quem respira, e podemos fazer orações espontâneas com nossos filhos, sempre que nos ocorra o pensamento e a necessidade: agradecer, louvar, interceder por quem esteja precisando, ou pelas causas que sejam importantes e façam parte do mundo da criança. Vamos, desse modo, muito naturalmente, inserindo nossos filhos numa vida de oração. Assim nós damos exemplo, e os orientamos para um “contínuo recolhimento, uma ininterrupta conversa”, para que estejam sempre convertendo “o monólogo interior em diálogo com Deus”.
E sobretudo, pais, é preciso que nós rezemos pelos nossos filhos. Se soubéssemos o poder que tem, sobre as crianças, a bênção de seus pais! Não negligenciemos esse poder, e essa responsabilidade. Com amor e delicadeza, demos a eles o melhor exemplo que pudermos, o exemplo de quem não desiste de amar, mesmo sendo pecador, e que, para isso, pede auxílio, buscando a água viva na oração. Seguindo nossos passos, também nossos filhos passarão a orar, e logo faremos da nossa família uma família orante. E, pela nossa perseverança na oração, brotará em todos nós uma fonte que jorre para a vida eterna – e juntos, no Céu, nunca mais teremos sede.
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