“Depois da historinha, hora de dormir” é o tipo de regra que ajuda as crianças a formar bons hábitos.| Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney
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Reparem que coisa estranha: nas últimas décadas, os pais vêm gastando cada vez mais dinheiro e se estressando muito mais com a criação dos filhos, mas os resulta­dos parecem mostrar que as coisas estão piorando em vez de melhorar. Hoje em dia, as crianças têm muito mais probabilidade de serem diagnosticadas com algum distúrbio de atenção ou outros transtornos psiquiátricos que há 30 anos, e tam­bém há muito mais crianças obesas e fora de forma que naquela época. Outras pesquisas suge­rem que as crianças atuais são bem menos resilientes, muitíssimo mais frágeis que as do passado. O que está havendo?

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Ora, nas últimas três décadas, houve uma gigantesca transferência de autoridade dos pais para os filhos. Mudou a maneira de avaliar as opiniões das crianças, mudou o peso que se dá aos desejos e preferências dos filhos. Hoje há muitas famí­lias onde o que os filhos pensam, aquilo de que os filhos gostam e o que os filhos querem passou a importar mais do que o que os pais pensam, gostam e querem. “Deixe as crianças escolherem!” tornou­-se um mantra da “boa educação”, da educação libertária, que quer livrar as crianças da autoridade e dar-lhes... liberdade. Por que, então, os resultados desastrosos?

A cultura contemporânea nos oprime de todos os lados, ela é a água onde temos de nadar. Mas, além de vir pelas vozes dos nossos pares, pela mídia e pelas instituições, seus valores nos vêm, muito especialmente, por meio das narrativas que nos são apresentadas como vidas possíveis, como roteiros que podemos interpretar. Essas narrativas estão, hoje em dia, nos filmes e nas séries, mais que, como em outros tempos, nos livros. Ora, nessas narrativas lançadas contra os nossos olhos, e contra os olhos de nossos filhos, uma espécie de liberdade individual é o valor mais amplamente celebrado, uma emancipação ou empoderamento do prazer próprio, seja ele qual for. Nesse contexto, a ideia de introduzir hábitos na vida de uma criança pode parecer, para alguns, uma coisa antiquada, retrógrada, uma forma de autoritarismo, de limite à sua autonomia. No entanto, quando compreendemos a natureza dos hábitos e seu papel na formação do caráter, percebemos que, longe de restringir – na verdade, muito ao contrário –, eles oferecem um caminho seguro para o crescimento e a maturidade. Eles são, a meu ver, os pilares da primeira educação.

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O hábito pode ser entendido como a repetição de atos bons até que se tornem uma parte conatural do comportamento. Ele funciona como os trilhos de um trem, permitindo que a criança caminhe com segurança e previsibilidade, evitando desgastes desnecessários e facilitando a execução de boas práticas. Estabelecer hábitos saudáveis na infância – como uma rotina de sono adequada, uma alimentação equilibrada, a higiene pessoal e a organização de seus pertences – é preparar o terreno para que essas práticas se tornem escolhas naturais na vida adulta.

Um dos receios comuns entre os pais é a possibilidade de que a formação de hábitos reduza a liberdade de seus filhos. Essa preocupação, no entanto, parte de um equívoco. Ser livre não significa fazer qualquer coisa a qualquer momento, mas sim ter a capacidade de escolher o bem com facilidade. A verdadeira liberdade está em dominar as próprias inclinações e agir com discernimento, e é precisamente isso que os hábitos proporcionam. Uma criança que aprende a dormir no horário adequado pode, em algum momento, escolher dormir mais tarde, mas fará isso de forma consciente e não por mero descontrole.

Pais que compreendem a importância dos hábitos e os introduzem desde cedo na vida dos filhos colhem frutos preciosos

Por outro lado, a ausência de bons hábitos na infância torna a vida adulta muito mais difícil. Um jovem que nunca aprendeu a se organizar, a ser pontual ou a cumprir suas responsabilidades com constância terá um grande desafio ao tentar adquirir essas práticas por conta própria. Isso ocorre porque é muito mais complicado modificar um padrão de comportamento arraigado do que seguir um caminho que já foi bem trilhado.

O estabelecimento de hábitos também evita um dos grandes desafios da vida familiar: a transformação de pequenas tarefas diárias em lutas constantes. Se uma criança sabe que, ao voltar da escola, toma banho e depois faz a lição, não haverá discussões diárias sobre isso, nem aquele clima de estresse e gritos que mancha tantos lares. Quando não há uma rotina bem definida – e uma rotina nada mais é do que uma estrutura fixa de hábitos –, cada atividade se torna uma batalha, pois a criança passa a questionar a necessidade de cada gesto a todo momento.

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Criar um hábito exige perseverança, é claro. Muitos estudos indicam que, para que uma prática se torne automática, são necessárias de 6 a 8 semanas de repetição contínua. Isso significa que os pais precisam insistir e manter a constância, mesmo quando as primeiras tentativas parecerem fracassar. Muitas vezes, o erro está em desistir cedo demais, mudando o método antes que o novo padrão se estabeleça de fato. Ora, a persistência na criação de hábitos saudáveis prepara a criança para uma vida mais organizada e harmoniosa. Ao evitar o caos gerado pela falta de rotina e ensinar desde cedo a responsabilidade por pequenos atos diários, os pais contribuem para o desenvolvimento de adultos mais conscientes e equilibrados. Afinal, a verdadeira formação não está em permitir que a criança faça tudo o que quer, mas em capacitá-la para querer e escolher o que é melhor para ela.

Agora me ocorre um estudo, que li num livro de Leonard Sax, médico americano. Ele relembra ali uma maneira de analisar a personalidade humana, compreendida em cinco dimensões: conscienciosidade, aber­tura, extroversão, docilidade e estabilidade emocional. Depois de analisarem grupos com as mais variadas características, como inteligência, etnia, classe social, grau de instrução, etc., foi possível chegar a uma resposta para a pergunta: Qual, desses cinco grandes traços, é capaz de indicar previamente a felicidade, prosperidade ou satisfação com a própria vida? E apenas um deles é a resposta: a conscienciosidade. E qual a característica mais emblemática da tal conscienciosidade? O autocontrole. E o autocontrole se ensina por meio da repetição, das trilhas dos bons hábitos. É o que dizia Benjamin Franklin: “Early to bed, early to rise, makes a man healthy, wealthy, and wise” (sem a rima e sem a métrica, “Deitar-se e levantar-se cedo são hábitos que tornam o homem saudável, rico e sábio”).

A difícil tarefa de educar os filhos passa, inevitavelmente, pela formação de hábitos. No entanto, muitos pais hesitam diante dessa responsabilidade, receosos de impor regras que possam tolher a liberdade das crianças. Na tentativa de respeitar a individualidade dos filhos, acabam delegando a eles decisões para as quais não estão preparados, gerando um cenário de caos e estresse tanto para os pequenos quanto para a família. É preciso compreender que a infância não é o momento de tomar decisões complexas, mas de aprender a viver dentro de uma estrutura ordenada. Cabe aos pais fornecer esse referencial, estabelecendo com clareza os trilhos sobre os quais seus filhos deverão caminhar. Se cada noite a criança precisa decidir se vai ou não dormir, se cada refeição se torna uma batalha sobre o que será ingerido, se estudar ou organizar o próprio espaço são atos deixados ao arbítrio infantil, a vida familiar se transforma num campo de tensões constantes.

Quando os pais se furtam ao dever de guiar, deixam seus filhos desorientados. Essas crianças, em vez de desenvolverem autonomia, acabam se tornando inquietas e ansiosas, vivendo sob uma carga de estresse para a qual não possuem recursos emocionais suficientes – elas não adquirem conscienciosidade. A obediência, frequentemente mal compreendida, não é uma submissão cega, mas uma iluminação da inteligência. Ensinar a criança a obedecer não significa cercear sua liberdade, mas, ao contrário, proporcionar-lhe um ambiente de segurança e previsibilidade, onde ela pode crescer sem a angústia de tomar decisões para as quais não está pronta.

O resultado mais imediato de uma educação sem hábitos bem estabelecidos, ainda sem tocar no futuro incerto, é a convivência difícil. Crianças que dormem mal, que comem mal, que não possuem noção de rotina ou disciplina tornam-se desagradáveis até mesmo para os próprios pais, que passam a buscar subterfúgios para evitar o convívio. Muitas vezes, a fuga se dá na terceirização da criação: é preferível deixá-las mais tempo na escola, na casa dos avós ou diante das telas, pois cada momento de interação se converte em uma nova batalha.

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Mas o caso é que essa realidade não é inevitável. Pais que compreendem a importância dos hábitos e os introduzem desde cedo na vida dos filhos colhem frutos preciosos. As crianças bem-educadas não apenas se tornam mais fáceis de conviver, mas desenvolvem uma harmonia interior que as acompanhará por toda a vida. Um hábito bem formado não é um grilhão, mas uma libertação: ao internalizar padrões de conduta saudáveis, a criança ganha liberdade para direcionar sua energia a aspectos mais elevados do seu crescimento pessoal e moral.

Portanto, a grande questão que os pais devem se colocar não é se os filhos devem ou não ter “liberdade”, mas como prepará-los para exercê-la de forma sábia. Essa preparação exige esforço, paciência e constância. Formar um hábito leva tempo e requer perseverança, mas a recompensa é duradoura: um ambiente familiar mais sereno, filhos mais felizes e uma vida em que a educação se dá não pela imposição de regras arbitrárias, mas pela orientação firme e amorosa rumo ao verdadeiro bem — healthy, wealthy, and wise, mas reforcemos, sobretudo wise.

Mas é preciso atenção a um ponto de possível confusão: A formação de um hábito não consiste apenas em transmitir informações ou em forçar a criança a cumprir determinadas ações. No primeiro caso, trata-se a criança como se ela fosse mais velha (como é o subtítulo daquele livro de Sax que citei, How we hurt our kids when we treat them like grown-ups, isto é, como ferimos nossos filhos ao tratá-los como adultos), colocando sobre o pequeno a obrigação de compreender um raciocínio que está além da sua capacidade de abstração e fora de suas referências, e ainda por cima que atenda com a ação à veracidade do raciocínio! No segundo caso, trata-se a criança não como humana, mas como animal a ser domesticado ou treinado. Nenhum dos dois extremos está correto: nossos filhos pequenos são crianças, crianças humanas. Nosso trabalho é, para usar de novo uma palavra de Sax, “enculturá-la”, quero dizer, oferecer a elas um repertório de possibilidades e conduzi-la, com paciência e constância, a reconhecer o valor daquilo que é bom.

Educar não é apenas ensinar informações ou corrigir comportamentos pontuais. É, antes de tudo, formar uma mentalidade, criar um ambiente em que as boas escolhas se tornem naturais e previsíveis

Esse processo deve ser guiado, não por um controle rígido, mas por uma autoridade firme e serena, que inspire segurança. A elegância na condução dessa formação consiste em escolher sempre o melhor, mostrando à criança, com naturalidade, que aquele caminho é desejável.

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Muitos pais se desesperam diante do choro e da resistência dos filhos ao introduzir um novo hábito. Mas essa relutância inicial não significa necessariamente que o caminho seja outro, ou que a criança tenha algum distúrbio clínico, ou que você esteja fazendo algo errado. Qualquer mudança exige esforço – e não é diferente com os pequenos. O mesmo incômodo que um adulto sente ao tentar acordar mais cedo, organizar melhor seu tempo ou mudar sua alimentação, a criança sentirá ao se habituar a dormir no horário correto, a fazer suas refeições sem distrações ou a manter seus pertences organizados. Cabe aos pais resistirem à tentação de ceder ao menor sinal de contrariedade.

A introdução de um hábito precisa ser consistente. Enquanto ele não estiver estabelecido, é fundamental evitar exceções. Crianças pequenas, sobretudo, não compreendem regras maleáveis; qualquer brecha na rotina é interpretada como uma nova possibilidade, abrindo espaço para questionamentos e negociações constantes. A previsibilidade, ao contrário do que se possa imaginar, não oprime, mas tranquiliza. Saber o que vem depois evita desgastes desnecessários e reduz as disputas diárias.

Além da firmeza, os pais podem adotar estratégias inteligentes para tornar esse processo mais fluido. Criar gatilhos – como associar uma atividade a outra – ajuda a consolidar hábitos sem que a criança precise ser constantemente lembrada. Estabelecer frases-guia, como “Nesta casa sempre se diz a verdade” ou “Depois da historinha, é hora de dormir”, dá um tom definitivo às regras, reduzindo a margem para contestação. A aplicação de consequências naturais, e não de punições arbitrárias, também é essencial: se os brinquedos não forem guardados, não poderão ser usados no dia seguinte; se a criança não jantar no horário, terá de esperar até a próxima refeição. Assim, ela aprende que suas ações têm efeitos concretos, e não apenas uma resposta imposta pelos pais.

Quando bem conduzido, o processo de formação de hábitos torna-se um presente para a vida da criança. A resistência inicial dá lugar a um senso de ordem interior, que se traduz em uma personalidade mais equilibrada e em um convívio familiar mais harmonioso. A educação, afinal, não é um jogo de forças, mas um convite à excelência – e cabe aos pais a arte de torná-la, ao mesmo tempo, firme e encantadora.

Educar não é apenas ensinar informações ou corrigir comportamentos pontuais. É, antes de tudo, formar uma mentalidade, criar um ambiente em que as boas escolhas se tornem naturais e previsíveis. E, para isso, os hábitos são essenciais, são os alicerces dessa construção. Quando uma criança tem clareza sobre o que precisa fazer e em que momento, sua vida, e a de toda a família, torna-se mais tranquila. Por isso a rotina é um grande aliado na educação infantil. Quando os pais estabelecem uma ordem clara – “antes de dormir, guardamos os brinquedos” –, a criança aprende, de maneira intuitiva, o que se espera dela. Esse tipo de estruturação evita a necessidade de constantes lembretes e discussões, pois é como se o próprio ambiente ensinasse. Mais do que uma regra imposta, o hábito torna-se uma expectativa internalizada, e a criança passa a agir com naturalidade.

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Por isso mesmo, é fundamental que os pais mantenham a coerência. Quando uma ordem é dada, ela precisa ser cumprida. Se a mãe diz que não haverá historinha antes de dormir caso os brinquedos não sejam guardados, essa consequência deve ser mantida. Não se trata de punição, mas de um aprendizado natural: as ações têm efeitos concretos. Ceder aos apelos insistentes da criança apenas a ensina que basta insistir o suficiente para mudar as regras.

Esse princípio vale para qualquer hábito que se queira estabelecer. Se a intenção é que a criança coma de tudo, o processo deve ser conduzido com firmeza e constância. Pequenos passos podem ser dados – um pedaço mínimo de legume por dia, por exemplo –, mas o caminho não pode ser abandonado ao primeiro sinal de resistência. A mesma lógica se aplica ao tempo de refeição: se uma criança demora uma hora para jantar, cabe aos pais ajudá-la a reduzir esse tempo sem transformar a mesa em um campo de batalha. Mais uma vez, criar gatilhos – como associar uma ação à outra – é um recurso valioso nesse processo. Se a rotina for sempre a mesma, a criança saberá o que vem depois sem precisar ser lembrada repetidamente. Frases-guia como “nesta casa, comemos sem enrolar” ou “antes de dormir, guardamos os brinquedos” reforçam essa previsibilidade e ajudam a evitar desgastes.

A verdade é que a vida familiar não precisa ser uma sucessão de conflitos e desgastes. Uma casa com crianças não precisa ser sinônimo de caos. Quando os pais assumem a responsabilidade de guiar, de ensinar com paciência e constância, o ambiente se transforma. A maternidade e a paternidade deixam de ser fontes de estresse e passam a ser, de fato, uma experiência de formação e crescimento mútuo.

Ao estruturar bons hábitos, os pais não apenas ensinam disciplina, mas pavimentam o caminho para as virtudes, logo para uma vida adulta de verdadeira liberdade, pois feita de verdadeiras escolhas. Quando assumem, com responsabilidade, o seu papel de autoridade nessa condução, os pais oferecem aos filhos um presente que os acompanhará por toda a vida: o autodomínio, a capacidade de agir com a valiosa conscienciosidade.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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