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Dizem que foi Søren Kierkegaard, o filósofo dinamarquês considerado o primeiro existencialista, quem narrou esta história, mas é mais provável que tenham atribuído a ele uma anedota sem dono, ou, quem sabe, uma história real.
Um jovem europeu do fim do século 19, lá com os seus vinte e tantos anos, viaja para o Oriente, para conhecer o mundo e se aventurar em meio a inauditas excentricidades. Viaja sozinho, mochila nas costas, cantil dependurado. Um dia, está numa estação de trem, à espera do comboio, quando depara com uma moça chinesa, e é arrebatado de encantamento. A delicadeza daqueles traços, a pureza de sua pele tão branca e a lisura dos cabelos negros, fizeram o jovem se apaixonar instantaneamente, e sonhar, transportado, com uma vida inteira ao lado de sua princesa de jade. Os olhares se cruzaram, e o sorriso tímido da jovem valeu como uma permissão para que ele se aproximasse, e sentasse ao seu lado. Entretanto – fato fatídico – não podiam comunicar-se. Ele não sabia sequer uma sílaba de chinês, tampouco ela sabia qualquer coisa em sua língua europeia (seria francês? Cada um imagine o que quiser). Face a face, assim tão próximos um do outro que respiravam o mesmo ar, havia entre eles um abismo intransponível, uma muralha da China. Num lance de perspicácia, ela lhe pediu papel, e nele traçou algumas linhas ininteligíveis, e com gestos o fez compreender que se tratava do seu endereço.
De volta ao seu país, o rapaz não mediu esforços para avançar na direção de seu objetivo, de se comunicar com sua amada do Oriente, de se aproximar de seu coração, movido como estava pelo fascínio e pela paixão. Procurou um lugar onde pudesse aprender chinês, e meteu-se de cabeça nos estudos, abandonando para isso outros planos, outros caminhos, outros projetos de futuro que antes tinha. Via menos os seus amigos, não dava bola para as garotas do seu círculo: estudava chinês, e nisso punha sua energia e seu empenho, os olhos voltados para a sua prometida da estação de trem.
Se nas próprias atividades domésticas ou de trabalho, tantas vezes nos distraímos e nos perdemos no caminho, tantas vezes paramos e dizemos “o que é mesmo que eu estou fazendo?”, que dirá ao longo dos meses e dos anos?
Dentro de alguns meses de trabalho tão intenso, conseguiu enfim escrever um bilhete pequeno à amada, e então pôs-se a esperar meses por uma resposta – será que viria? Veio, e ele passou a noite em claro traduzindo-a, e desde então empenhou-se cada vez mais nos estudos, para conseguir decifrar o que ela dizia, e expressar-lhe mais e melhor os seus sentimentos. E assim, de meses e meses entre uma carta e outra, passaram-se anos, e, nesses anos de aprendizagem e aprofundamento, o nosso jovem tornou-se um homem maduro, um acadêmico, um eminente sinólogo respeitado e requisitado para dar conferências por toda a Europa sobre a língua e a cultura chinesas.
A frequência das cartas foi, aos poucos, sendo prejudicada pela quantidade de viagens e compromissos. Sua paixão arrefeceu, a imagem daqueles pequenos olhos negros, o apito do trem estridente ao fundo, foi aos poucos evanescendo de sua memória, e a moça chinesa foi ficando no passado, como um sonho. O seu trabalho como estudioso e professor, tão concreto, tão constante, tomou conta de toda a sua vida, e o sinólogo esqueceu da causa pela qual se movera, no primeiro momento, a aprender chinês.
Não é difícil notar que, tenha essa história ou não um lastro real, tenha sido ou não contada por Kierkegaard, ela é cheia de sentido, e serve como uma verdadeira parábola, como um símbolo poderoso para todos nós que, como o personagem, podemos trocar o meio pelos fins. Se nas próprias atividades domésticas ou de trabalho, nos comércios corriqueiros do dia a dia, tantas vezes nos distraímos e nos perdemos no caminho, tantas vezes paramos e dizemos “o que é mesmo que eu estou fazendo?”, nos esquecemos do que fôramos fazer, envolvidos com as demandas do processo – em árabe a própria palavra para “homem”, insan, significa “aquele que esquece” –, que dirá ao longo dos meses e dos anos? Que dirá num projeto de fôlego, numa empreitada de muitas e intrincadas fases, como não esquecer “do que se trata”, o que “estamos fazendo mesmo”? Facilmente nos envolvemos demais com os meios, com as dificuldades e desafios de uma ou outra das sucessivas etapas da nossa jornada, e esquecemo-nos do nosso “primeiro amor” (Ap 2, 4), da moça chinesa por quem nos apaixonamos na estação, o encanto que motivou a escolha de nossa vida, o ideal, a vocação, e nos desviamos para os instrumentos – ficamos com os meios, abandonamos o fim.
Aristóteles deixa tudo muito claro quando explica a sua famosa teoria das “quatro causas” – das quatro causas ou fatores que devem necessariamente concorrer para que algo aconteça, para que alguma coisa exista. Para quem nunca ouviu falar, resumo brevemente: são elas causa material, causa formal, causa eficiente e causa final. A causa material é a matéria da qual a coisa vai ser feita. Tomemos logo um exemplo, uma cadeira. Uma cadeira pode ser feita de madeira, ou de alumínio, ou de plástico, mas tem necessariamente de ser feita de alguma matéria, quer dizer, para que ela venha a existir de fato, é preciso que concorra uma causa material. Causa formal é a ideia da cadeira, é o seu princípio de composição, o germe ou a essência do seu projeto – aquele que está na mente do artesão quando ele se põe a trabalhar sobre a matéria, e eis aqui a terceira causa, a causa eficiente: é quem executa a ação de colocar a coisa na existência; no caso, o marceneiro que fará a cadeira. Enfim, a causa final, a mais importante de todas, aquela que, embora aparente vir por último, é a primeira e, lá do fim, como um alvo a ser atingido, atrai todas as outras três causas, e as põe em movimento. Para que uma cadeira? Qual o seu objetivo? Ora, precisamos de um lugar para sentar. A necessidade de sentar nalgum lugar é o que faz alguém procurar um marceneiro, que toma então um pedaço de pinho, e se põe a trabalhar. A cadeira, então, vem a existir, e existe tão somente para que alguém nela descanse os quadris – a sua causa final.
Alguém buscando um lugar para sentar-se por acaso voltaria satisfeito da marcenaria com um bom serrote ou um bom martelo, com umas toras de lenha, ou então com o próprio marceneiro, convidado para almoçar? “Se não se importa em comer de pé...” Tampouco é possível sentar-se na ideia da cadeira. Tudo isso é patentemente absurdo, mas com certeza é mais fácil pensar com cadeiras do que com outros objetos mais complexos e aparentemente menos palpáveis – como, por exemplo, o casamento e a família.
Muita gente se casa e tem filhos um pouco às tontas, porque “é o que se faz”, levados talvez por medos ou anseios inconscientes, sem nenhuma clareza sobre a motivação que os leva a fazer isso; ou então com uma ideia muito errada dessas coisas, buscando nelas algo que não podem oferecer. Então, quando se deparam com determinadas exigências, quando são cobrados de atitudes que se espera que tomem, com certas renúncias e mudanças nas prioridades, ou então quando vêm as primeiras dificuldades, interpretam tudo isso como erros, imprevistos, como um fracasso do projeto – e desanimam, e se desesperam, e se divorciam, delegam a educação dos filhos, ou mesmo os abandonam.
Um homem e uma mulher se casam para serem felizes, e para conduzir o maior número de pessoas, seus filhos, à felicidade. Todas as nossas ações e escolhas na vida familiar devem, portanto, estar orientadas para esse fim
Como dizia o mesmo velho Aristóteles, todo ser humano busca a felicidade, e na felicidade está a nossa causa final. O problema é ter clareza sobre em que consiste, exatamente, a felicidade do ser humano. Muitos pensam poder encontrá-la nos prazeres, no atendimento ilimitado de todos os desejos do corpo e caprichos do humor; outros acreditam que a encontrarão na produção e no acúmulo de riquezas, na prosperidade material, e na suposta liberdade que isso traz; outros, ainda, põem sua felicidade no poder, na fama, no controle e na obediência do maior número de pessoas ao seu redor. Bem se vê que todos esses três ideais de felicidade são um “fundo falso”, que não preenchem de verdade; eles têm uma data para acabar, um coeficiente, maior ou menor, de ilusão, pois não pode ser verdadeira felicidade uma que esteja assim tão sujeita aos reveses da sorte e à inconstância das coisas humanas. Podem satisfazer por um instante, mas logo decepcionam – decepcionarão, pelo menos, na inescapável hora da morte. Nossa felicidade, verdadeira felicidade, só pode estar em algo que transcenda este mundo e a sua transitoriedade e, atravessando-nos como uma flecha, nos aponte para o alto.
Eu precisaria de muitas mais páginas para meditar e esclarecer este pensamento, mas que seja ao menos enunciado, assim, sucintamente: a causa final do matrimônio e da família é a felicidade de seus membros, e a felicidade do ser humano está, não pode ser diferente, na vida eterna. Portanto o matrimônio e a família estão ordenados para o bem e a ajuda mútua dos esposos em sua realização completa como seres humanos, e para a geração e a orientação dos filhos a esse mesmo fim. Em suma, um homem e uma mulher se casam para serem felizes, e para conduzir o maior número de pessoas, seus filhos, à felicidade. Todas as nossas ações e escolhas na vida familiar devem, portanto, estar orientadas para um mesmo fim, serem vetores menores de uma grande busca, a da felicidade verdadeira, perene. O primeiro passo é, pois, ter uma ideia mais adequada de felicidade...
Mas ainda assim, ainda que nos casemos, não somente apaixonados e decididos a passar, marido e mulher, a vida inteira juntos, mas também com um claro ideal de “para sempre”, quero dizer, sabendo que esse nosso amor humano pode ser transmutar em amor divino e vida eterna, ainda assim pode nos acontecer, seres humanos que somos, esquecidos, de pararmos no meio do caminho a nos perguntar “que é mesmo que estamos fazendo?”, de nos esquecermos completamente de nossa linda chinesa e nos tornarmos palestrantes sinólogos.
Querendo o bem de sua família, quantos pais não põem todo o seu empenho no trabalho e no dinheiro e, assim sugados por um fluxo ininterrupto, perdem sua família?... Quantas mães, querendo o bem de sua família, não põem toda sua atenção na ordem e na rotina e, sem perceber, perdem de vista a razão daquilo tudo, e importunam os filhos e o marido, e atrapalham bons momentos de convivência, destroem a leveza da vida e a espontaneidade infantil?... Querendo o melhor para os filhos, quantos pais e mães não os sufocam de coisas, de brinquedos, eletrônicos, roupas? Ou não os esmagam com aulas, atividades, compromissos? Ou então com lazeres, passeios, viagens, diversões, estímulos de toda sorte? Como somos distraídos... Trocamos, às vezes, uma invisível riqueza perene, uma joia do tesouro da felicidade, por um sofá limpo, uma parede sem risco, um copo não entornado, por cinco minutos de atraso – tudo isto que só veio a existir e só está ali por conta daquilo! Ah, como metemos os pés pelas mãos, como somos esquecidos a ponto de enfiar, por semanas a fio, a cara no livro de chinês, e esquecer a moça bonita que nos sorri! Pai e mãe, Marta, Marta, preocupados com tantas coisas, deveríamos todos os dias parar e nos perguntar: “O que é mesmo que estamos fazendo?” Antes que sejamos confundidos, enganados pelas aparências e enredados pelas demandas dos meios, e entremos numa verdadeira crise.
Cito, com prazer, um trechinho de Mariolina C. Migliarese, no livro O alfabeto dos afetos:
“a realidade se encarrega de introduzir variáveis não previstas que transformam esse caminho em um percurso cheio de obstáculos: às vezes, são as dificuldades econômicas, em outras, a necessidade de afastar-se demais um do outro por conta do trabalho, e quando chegam os filhos, mesmo que desejados, muitas vezes encontram-se esmagados sob um ritmo que não permite mais estarem juntos com serenidade, transformando o dia a dia em uma contínua aflição.
“Cada um dos esposos encontra-se, então, absorvido pela urgência das tarefas individuais e, às vezes, chega a experimentar um crescente sentimento de distanciamento e estranheza. A frustração se faz palpável: qual é o sentido de tanto esforço, no qual cada um pensa carregar o maior peso e sente-se incompreendido pelo outro, pouco amado e pouco conhecido? O projeto original – com sua perspectiva de alegria – parece ter sido perdido ao dar lugar a experiências de cansaço, solidão e, por vezes, também de rancor. E até a fé vacila: por que Deus não mantém a sua promessa de felicidade?
“É o momento da crise, em que parece ter dado tudo errado...”
É o esmagamento do fim sob os meios. Aquele nosso fim, nossa causa final, nossa paixão, tão bela e tão nobre, parece ter se perdido, evanescido como um sonho, sumido lá em cima no alto do céu, enquanto nós, cá embaixo, no exílio e no vale de lágrimas, padecemos a desilusão, e sofremos. Quem poderia saber que a felicidade tem, como causa material, tantas dores, tantos sacrifícios, tantos momentos de escuridão, de dúvida, de medo, de abandono? De solidão, de tristeza, de desespero? E, como causa eficiente, alguém que espera contra toda esperança, que ama mesmo com o coração apertado, que padece, que suporta, que aguenta. Onde estávamos com a cabeça? O que é que estou fazendo mesmo? Haverá de fato um sublime fim? – Vem a ressurreição após a cruz?...
Nosso esforço deve ser, nesta vida, e muito mais em tempos de crise e de dificuldade, fazer memória, relembrar, fechar os olhos e reavivar a face delicada daquela linda jovem chinesa, nosso primeiro amor, e nela pensar todos os dias, não!, em todos os instantes
Há uma frase que, jogando com as palavras em latim, diz: Ad augusta per angusta. É de Victor Hugo e, traduzindo livremente, quer dizer: para a glória por meio da angústia, para a vitória através da dificuldade, rumo aos cumes por caminhos estreitos. É nisso que devemos crer, e é nisso que devemos pôr a nossa esperança. Nosso esforço deve ser, nesta vida, e muito mais em tempos de crise e de dificuldade, fazer memória, relembrar, fechar os olhos e reavivar, com toda a cor e todo o brilho possíveis, a face delicada daquela linda jovem chinesa, nosso primeiro amor, e nela pensar todos os dias, não!, em todos os instantes, sempre e sem cessar, amar o ideal a cada ideograma decifrado, e se empenhar e labutar com vistas a escrever-lhe, e a declarar-lhe o nosso inabalável amor.
“Somos chamados a redescobrir no outro exatamente ele: aquele marido, aquela esposa — a pessoa ‘única’ que (...), com seus defeitos e suas limitações, é exatamente quem tem em mãos a chave para que a nossa vida se realize plenamente. (...) É possível, portanto, tentar se reerguer, não para aceitar uma história acabada com resignação masoquista, mas usando a imaginação e a criatividade para dar uma nova oportunidade à nossa história de amor. Muitas vezes, descobriremos de forma tangível uma verdade importante: a de que nunca nos arrependeremos de ter continuado a amar.”
Durante esta vida, pode ser que só troquemos cartas com a nossa musa oriental, cartas difíceis de ler e ainda mais difíceis de escrever com correção. Mas é certo que, ao fim, nós a veremos de novo, e estará tão bela quanto antes, mais bela do que nunca, e então não mais teremos de labutar: falaremos a mesma língua, e inclusive pegaremos o mesmo trem, e nele sentaremos lado a lado, e ele dará logo o seu apito sibilante, e partiremos... rumo à eternidade.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos