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Samia Marsili

Samia Marsili

Andar na verdade

(Foto: Bigstock)

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Se nós nos deixarmos guiar pelas vozes de comando da cultura de hoje, que soam na mídia, nas universidades, e — é preciso dizer — também nas escolas, rapidamente estaremos curvados, transformados em súditos de um império da trivialidade”. Eu disse isso recentemente, e nunca será demais repetir. Todos nós, desde as crianças até os idosos, somos convidados, pelas muitas luzes e sons e links, a nos acostumarmos à satisfação fácil, a cedermos sempre e, para que isso se perpetue, a subordinarmos nossos esforços à conquista de mais e mais facilidades — em suma, apenas a ambições vis, jamais a um ideal refletido, substancialmente exigente. Vive-se uma vida sem sentido num curto-circuito existencial, em que se trabalha para o prazer, e se tem prazer para suportar o trabalho, o que se torna, muito logo, uma depressiva espiral descendente. Contra tudo isso, eu fazia lembrar a virtude esquecida da magnanimidade, a grandeza de alma ou de coração, que tem a ver com saber-se digno de grandes coisas, e buscá-las, sem medo de abrir-se à vida que nos transcende. Mas acontece que, como em quase todas as questões da vida humana, é preciso cuidar para não descambar para um dos lados, e manter o constante equilíbrio dos opostos. Como Pascal nos lembra repetidas vezes nos seus Pensamentos, não se deve lembrar ao homem sua grandeza sem lembrar-lhe ao mesmo tempo sua pequenez, e vice-versa. Por isso eu gostaria de chamar a atenção, nas laudas que seguem, para o verso desse problema: para a necessidade da humildade.

Se o coração pequeno, amesquinhado, nada tem de virtuoso, e pode ser entendido mesmo como uma falsa humildade, o orgulho e a falsa grandeza são igualmente nocivos. Assim como, por temor de sermos vaidosos ou pretensiosos, podemos nos entregar a uma modéstia pusilânime, em que ficamos tímidos diante da vida, diminuídos e acovardados, também por um desejo desordenado de excelência podemos nos tornar soberbos, inchados de uma falsa grandeza. O orgulho não é outra coisa: é o desejo de ser bom que, apressado e intemperante, lança-se a agarrar logo a aparência, antes de ter efetivamente suado a camisa pela realidade da grandeza. Assim nosso coração inflado parece grande, mas não está preenchido. É por isso que, resumindo a questão, podemos afirmar que o orgulho e a pequenez de coração são duas facetas do mesmo vício, ao passo que a humildade e a magnanimidade são duas facetas da mesma virtude, que consiste em aceitar-se pequeno e limitado a fim de trabalhar, sincera e honestamente, com o desejo de ser verdadeiramente grande.

Essas observações me parecem muito relevantes porque, segundo a tradição, que a experiência comprova, o orgulho está na raiz de quase todas as nossas maldades — e por isso ele é, inclusive, associado ao pecado original bíblico. E digo “quase todas” porque muitos dos nossos erros se devem simplesmente à ignorância e à fraqueza; mas, se o orgulho não gera todos os males, ele pode gerar todos os males, porque a sua essência, que é uma negação e um desprezo do ser em troca de um amor-próprio cego, está infectando a própria raiz de nosso ser. E muita gente não se julga orgulhosa, e às vezes nem nota que isso existe dentro de si, uma vez que tem em mente bons propósitos, e professa bons valores, ou até mesmo verdades de fé, e não manifestam aquelas atitudes clássicas do vaidoso. O narcisista e o pedante, ou um grande autoritário violento, estes revelam à distância os seus sinais; mas um orgulho secreto e inconsciente pode causar ainda mais dano ao seu portador, e mais dano aos que estão ao seu redor, como à sua família, e é deles que nos convém falar aqui. Vejamos alguns desses modos velados de orgulho.

Se o coração pequeno, amesquinhado, nada tem de virtuoso, e pode ser entendido mesmo como uma falsa humildade, o orgulho e a falsa grandeza são igualmente nocivos

Em primeiro lugar, a teimosia. Trata-se, pura e simplesmente, da adesão persistente à própria opinião, acima de qualquer outra que nos seja oferecida pelas pessoas, seja lá quais forem as suas boas razões, as suas esforçadas explicações e a sua autoridade ou experiência que as tornem dignas dos nossos ouvidos. Aquele que quer sempre julgar por si mesmo, ou sempre “pensar com a própria cabeça”, como se diz; aquele que só obedece a alguma coisa depois que a tenha entendido ao seu modo, sem nunca relativizar sua posição ou desconfiar de sua própria ignorância, causará grandes sofrimentos a si mesmo e aos seus. Quem age assim muitas vezes está dominado pelo defeito e não consegue enxergar que faz isso, e a insistência das outras pessoas em ajudá-lo, querendo fazê-lo ver, acaba por obstiná-lo ainda mais em seu erro. É preciso muito amor e muita sabedoria psicológica para conseguir ajudar alguém nessa posição. Aquele que sempre acredita que está certo, ou que não é compreendido, ou que ninguém pode julgar melhor do que ele aquilo que lhe acontece é, sem saber, um orgulhoso. Ou, com uma palavra estranha, é um ischyrognomones, como chamava Aristóteles, isto é, “que tem idéias fixas”, os persistentes contra a razão, que não são sensíveis à persuasão. (E São Tomás, comentando Aristóteles, acrescenta: “Isso parece acontecer principalmente aos melancólicos, que dificilmente recebem algo, mas, uma vez recebido, o retêm com força, como a terra”.) Exercitar-se constantemente em ouvir, com os ouvidos de dentro e de fora, e ponderar o que nos é dito, fazendo pouco, temporariamente, de nossas impressões para apreender o ponto de vista do outro, é uma sutil prática de humildade que pode salvar nosso casamento e nossa família.

Reparem que orgulho e a arrogância produzem, psicologicamente falando, um efeito centrípeto: fazem tudo convergir para o eixo da própria pessoa, que se torna o centro do mundo; só ela reconhece a realidade, que está, de um modo ou de outro, relacionada a ela. É por isso que o orgulho impede o crescimento. O obstinado em sua própria visão das coisas cria mecanismos para evitar o reconhecimento de seus próprios problemas, acaba logo não reconhecendo as dolorosas verdades sobre si mesmo, e sofrendo muito mais com sua inescapável concretude. Isso se faz, muitas vezes, com expedientes de “redefinir a normalidade”, justificando nossos excessos e nossas atitudes até que sejam aceitas. “Mas é claro que eu me irrito, porque...”, “qualquer um no meu lugar também faria isso, porque...”, ou “afinal, não há quem suporte tal coisa sem...”. Isso nos encaminha rapidamente para um segundo filho do orgulho velado: a autoilusão. A pessoa que tenta normalizar suas condutas vai logo precisar “retocar a realidade” em um ou outro ponto, e vai começar a gerar narrativas, raciocínios e nexos causais forçados para que a conta feche. O que ela quer fazer é bom, útil, conveniente e até necessário; o que ela não quer é inútil, desnecessário, sem sentido ou prejudicial. Se isso ainda não pode ser considerado mentira, falta muito pouco para que se comece a mentir. A primeira prejudicada, antes de seu cônjuge e do restante de sua família, é a própria pessoa, que começa a confundir seu próprio senso da realidade, e começa a ficar incapaz de distinguir a verdade dos delírios que elaborou. Muitos problemas psicológicos, e familiares, começaram assim. Para sair desse problema (além de receber, em muitos casos, ajuda profissional) é preciso trabalhar a humildade em profundidade, e exercitar-se duramente no enfrentamento da verdade. Pode ser que o preço a pagar por esse regresso à verdade seja caríssimo, que se macule a reputação ou que seja necessária uma boa dose de perdão por parte dos familiares. Mesmo que sejam sacrifícios gigantescos, maior ainda será a recompensa, da sanidade e da paz.

Aquele que sempre acredita que está certo, ou que não é compreendido, ou que ninguém pode julgar melhor do que ele aquilo que lhe acontece é, sem saber, um orgulhoso

Uma terceira forma de orgulho velado é a autopiedade. A autopiedade, que vem, também, do centramento em si próprio moldado pelo orgulho, faz com que a pessoa sempre se sinta prejudicada, sempre se sinta lesada pelas situações, pelas pessoas, pelos acontecimentos — e até mesmo pela própria vida, por Deus. Esses sofredores podem não ter consciência do problema, que se apresenta de forma mascarada e atenuada, e as faz sentirem-se sempre objeto de injustiças, frustradas, faz com que vejam sempre o aspecto negativo das coisas, desiludidas com tudo, solitárias, órfãs de afeto, mas tudo isso expresso e elaborado de maneira ponderada. Em outras vezes, essas pessoas ressentidas comportam-se abertamente como reclamões, com traços e trejeitos muito parecidos com o das birras das crianças — e não à toa. Os primeiros anos da criança são caracterizados por uma espécie de egocentrismo, em que ela, instintivamente, dirige as preocupações para si, e chora para que lhe dêem de mamar, ou a limpem, ou a ajudem a se locomover, etc. Ela se encontra numa camada da personalidade em que é normal ver o mundo como girando em torno de si, e em que compara os outros consigo própria, e faz avaliações e medições com base em seus sentimentos: ao sentir-se valorizada, amada, percebida, ou abandonada, rejeitada, esquecida. Daí o ciúme com a chegada de novos irmãos e as generalizações do tipo “ninguém gosta de mim!”. Tudo isso, é claro, deve ser trabalhado e orientado numa boa educação infantil, que forme os seus afetos e ajude a criança a ir, conforme cresce, saindo de si mesma e explorando o mundo ao redor, e também tendo compaixão e empatia pelos outros. Mas, se devemos educar bem nossos filhos nesse sentido, pode ser que nós não tenhamos sido bem educados, nem nosso cônjuge, ou outros familiares. E então essas pessoas carregarão um forte desejo infantil de atenção e aprovação, podendo tornar-se efetivamente narcisistas. Somente uma saudável humildade, um esforço por dimensionar realisticamente seu lugar no mundo, pode libertá-las do sufocamento e da tormenta causados por sua autopiedade.

Por último, entre os disfarces do orgulho está o sentimento de inferioridade, e a baixa auto-estima. Como dissemos no início, que a falsa humildade é o verso do orgulho, do mesmo modo esses sentimentos são causados por ele. A incompreensão desse nexo faz com que alguns psicólogos, para curar complexos de inferioridade, recomendem uma boa dose de orgulho, crendo assim afogá-los em seu contrário, quando, na verdade, estão apenas combatendo fogo com fogo, e aprofundando o problema, se bem que em outra direção. Na verdade, a baixa auto-estima e a timidez escondem muitas vezes um orgulho bastante sutil, pois não consistem apenas num desprezo indevido por si mesmo, mas num ressentimento, numa tristeza por não poder ser o que se desejava ser, em seus devaneios: uma frustração, que pode ser acompanhada por sentimentos de inveja. Essa pessoa sente-se humilhada por não ser tão grande quanto gostaria de ser, ou então não ser grandiosa como sonhou ser, mas não é verdadeiramente humilde, porque não é capaz de ver sua verdadeira grandeza, aquela que é real, e que ela deveria estar tranqüilamente empenhada em cultivar. O olhar verdadeiramente humilde coincide com uma auto-estima muito elevada, porque é capaz de vislumbrar a grandeza que nos transcende e nos espera, apesar de nossa pequenez, e por isso a humildade nunca deprime, e sim alegra. A humildade que estas pessoas precisam buscar é a que lhes dará uma sensação realista de si mesmas, sem amarguras nem invejas, e nem delírios de superioridade ressentida.

Muito bem. Com não muita dificuldade somos capazes de compreender que o orgulho transforma nossa alma num “viveiro de impurezas”, como disse São Gregório, e que “onde não há humildade, até o que fizermos bem, tudo será pasto da soberba”. Mas em que consiste, exatamente, a virtude da humildade, e o que podemos fazer para colocá-la em prática e enfim conquistá-la? Seria exagero repetir que não se trata de autodepreciação, nem de timidez, ou de pusilanimidade para com a própria vida, e nem mesmo de atos e palavras externas. Ora, trata-se, muito simplesmente, de objetividade. De uma objetividade que é ininterruptamente apurada, reconquistada, aumentada, de um desejo e de uma busca honesta pela verdade a respeito de si mesmo e de nosso lugar no universo. Mas não só; porque esse conhecimento objetivo não obriga imediatamente a nossa conduta. Portanto trata-se, também, de uma objetividade ou de uma verdade obedecida, como falava Platão; de um comportamento conforme à verdade, ou seja, de uma busca também incessante por adequar-se à própria realidade e ao próprio lugar no universo. Tem um aspecto que faz operar a inteligência, para conhecer, e outro que faz operar a vontade, no querer. Portanto ser humilde é, numa fórmula cabal, que devemos a Santa Teresa, nada mais que um andar na verdade. A humildade é um hábito que, com base na verdade apresentada pela inteligência, modera o apetite para que assumamos nosso devido lugar perante Deus e perante os homens. Refreia a excessiva confiança em si mesmo e as presunções, e se completa no justo desejo de progredir e de tornar-se verdadeiramente bom — de ser como ainda não se é.

E o que se pode fazer para conquistar esse hábito, e progredir nele? Lamento, não existem fórmulas mágicas nem truques. A humildade, que é fruto da verdade, se alcança do mesmo modo que se alcança a verdade: meditando. Para ver com clareza quem somos, quais são nossas dinâmicas interiores, nossos verdadeiros motores, desejos, nossos subterfúgios, as mentiras que contamos a nós mesmos, e que transbordam em nossas condutas falseadas, é preciso olhar com coragem para si mesmo, de preferência num tempo privilegiado reservado à meditação e ao próprio aprimoramento, e não somente às tontas, no calor do momento — todos os dias, insistentemente. Precisamos buscar, dentro de nós, as raízes orgulhosas de nossas teimosias, irritações, reclamações, vitimismos e justificações. Por que merecemos tanto, aos nossos próprios olhos? Por que achamos que as pessoas nos devem? Mais ainda: é preciso reconhecermos também que aquilo que temos de bom não fomos nós que criamos, mas que já estava aí quando nos demos conta, são dons; e o que cabia a nós — fazer render os talentos —, certamente não fizemos tão bem quanto podíamos, e às vezes fizemos muito mal. Nós não demos a nós mesmos o nosso ser, e a nossa própria existência é para nós um mistério, que deve ser com justiça reverenciado. Devemos meditar que há, no outro, a mesma profundidade, ao menos em potência, que há em mim. O outro é tão humano, tão pessoa, tão “eu” quanto eu. E assim por diante, até pararmos para refletir qual é, em nossa família, o nosso lugar e o nosso papel: o quanto nós devemos aos outros, e o quanto devemos ser gratos pela dádiva que é tê-los conosco.

Em outras vezes, essas pessoas ressentidas comportam-se abertamente como reclamões, com traços e trejeitos muito parecidos com o das birras das crianças

E a prática, a obediência concreta a essas verdades? Por ora não precisamos, como faziam os grandes santos, que almejavam ser heróicos nessa virtude, buscar voluntariamente grandes humilhações. A nós, pequeninos e fraquinhos, basta que aceitemos, com resignação, e, se possível, com alegria, aquelas que já nos vêm, sob a forma de dificuldades, incompreensões, contrariedades, cansaços e reprimendas aparentemente equivocadas. Em nossas palavras e ações, em nossos gestos e disposições, e especialmente em nossa maneira de reagir às contrariedades, que ao nosso orgulho nos parecem injustas, estaremos prestando um culto à verdade que ainda precisamos conhecer sobre nossa pequenez, e nesse ato estaremos nos aproximando de nossa verdadeira grandeza. Muitas vezes, aturar a nós mesmos já é um grande desafio, e só faz bem à humildade. Disse uma vez São Francisco de Sales que “a virtude da paciência é a que melhor nos assegura a perfeição, e se devemos tê-la com os outros, devemos tê-la também conosco... Devemos sofrer nossas próprias imperfeições para atingir a perfeição; quer dizer, sofrê-las com paciência, sem amá-las e acariciá-las; a humildade se alimenta desse sofrimento”.Quando o cansaço e os transtornos da maternidade nos acossarem, por exemplo, devemos lutar por ver as coisas, não do nosso ponto de vista somente, que é adulterado pelo orgulho, mas procurando dimensioná-las objetivamente, para além do que sente a nossa carne. Comparemos a grandeza de nossa missão, o valor que tem a alma e o caráter dos nossos filhos, com as pequenas tarefas de trocá-los, dar-lhes banho, alimentá-los, e mesmo acordar de madrugada. Quem somos nós, francamente, para merecer algo tão grande, e reclamar de algo tão pequeno? Eu sei, acredite, eu sei que ler ou ouvir frases como estas nos enchem na hora de contradição, porque “não é bem assim”. Não, não é; não é assim porque somos orgulhosos, e a soberba está entranhada no nosso coração, como uma sanguessuga, que drena o nosso amor. Cada um meça o próprio orgulho pelo quanto é duro ler essas coisas, e o quanto não se tem humildade; pois, como disse São Francisco de Assis uma vez, não se pode saber quanta humildade se tem enquanto tudo acontece conforme seus desejos: “Mas venham tempos em que o contrariem aqueles que o deveriam contentar: a paciência e humildade que então mostrar, esta é a que tem, e não mais”. Logo é preciso lutar bravamente, sim, lutar em cada sorriso — o que nos esforçamos por dar, e o que não recebemos de volta —, em cada talher — o que botamos com capricho na mesa e o que é lançado longe —, em cada toalha — a passada com carinho, e a esquecida molhada sobra a cama —, e a cada atraso, o nosso e o do marido, e a cada vigília noturna, a cada fralda suja, cada rabisco na parede, cada desobediência, cada desaforo, cada grito e cada choro. São estas, e não outras, a humilhações que o Céu nos deu para curar o nosso orgulho, durante as quais devemos pensar: “sou um servo inútil a quem foi dada a honra de cumprir esta tarefa, que servirá para tão grande propósito”. É nessas miudezas, e somente nelas; é nessa doce humildade cotidiana, e não em outro lugar, que seremos grandes; grandes por dentro, invisivelmente, mas verdadeiramente magnânimos.

Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima

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