Quem de nós não sente uma estranha nostalgia ao ouvir falar de um reino distante, onde havia um castelo, em que se deu, certa vez, um grande baile de casamento, ou no qual, por causa de uma amarga inveja, se consumou um grande feitiço? Ou em que se descobriu que um sapo, uma vez beijado, era na verdade príncipe, e que este príncipe enfrentou bravamente um dragão, para resgatar de suas garras a noiva amada? Ou quem não se sente tocado, num ponto muito profundo, ao ouvir que uma madrasta malvada tomou o lugar da mãe, e dominou de tal modo a mente do pai que teve início uma grande penúria na vida de seus filhos?
A curiosidade que um conto desse tipo desperta em nós, esse entusiasmo, ou essa estranha saudade que uma história pode fazer brotar, tão logo ouvimos “Era uma vez...”, se deve a um fato muito simples, mas que, em sua simplicidade, tem uma grandeza e uma profundidade das mesmas dimensões que o próprio reino das fadas. E esse fato pode ser expresso por uma frase também muito simples, que certa vez disse o poeta Horácio. É esta: de te fabula narratur. Ou seja, “é sobre você que a história está falando”. Essas histórias tocam assim o nosso coração e nos fazem sentir esse súbito contentamento porque é, de fato, a nosso respeito que elas falam.
Elas estão dando forma, cor e nome a algumas coisas que acontecem dentro de nós que são impalpáveis, e que não têm, por si mesmas, forma, cor e nome. Os personagens das histórias — os cavaleiros, os animais falantes, os gigantes e os anões —, nesse mundo em que se deve contar com a magia e com nexos extraordinários de causa e efeito, são como que um véu colocado por cima de algo invisível, e que, assim, acaba dando a conhecer o seu formato, ainda que encoberto: as histórias velam para mostrar, elas revelam para nós o nosso mundo interior, seus duelos, e os muitos conflitos entre tantas forças espirituais que existem dentro de nós.
Essas histórias tocam assim o nosso coração e nos fazem sentir esse súbito contentamento porque é, de fato, a nosso respeito que elas falam
Por isso a cultura da narrativa, da literatura de ficção, é de importância tão fundamental para o ser humano. Nossa própria substância é a nossa história, e a vivência da nossa vida não é senão o ato ininterrupto de contar a nossa própria história. E a literatura nos fornece esse apoio para nos conhecermos, para investigarmos a nossa própria alma, como que olhando para um espelho, e por isso ela é fundamental para todos nós, mesmo que, se não formos grandes interessados ou intelectuais, numa medida menor, adequada à nossa condição.
Para as crianças, então, essa importância é ainda mais fundamental. E não somente pelo aspecto do seu “conteúdo”, por assim dizer, pelo sentido e pela força das histórias, mas, num primeiro momento, simplesmente por conta da linguagem escrita, e do trabalho requerido para decifrar as palavras e acessar o seu sentido, como no caso de quem tenha de se empenhar por alcançar o mel no topo de uma árvore, para só então conseguir sorver o seu dulçor.
Reparem na diferença que existe entre a exposição de uma criança ao frenesi das telas, e o que pode proporcionar a leitura de um livro, seja a escuta dele, lido por você em voz alta, para as crianças pequenas, ou a leitura autônoma de uma criança um pouco maior. O conteúdo multimídia fornece tudo, e tudo em excesso, sem pedir nenhum esforço em troca, enchendo a imaginação e a memória de uma maneira acachapante. Uma quantidade tão grande e avassaladora de estímulos externos acaba se tornando, na verdade, o seu oposto: um desestímulo ao uso das faculdades interiores, que acaba promovendo uma atrofia da atenção e da imaginação — como já tratei num outro artigo. A mente da criança fica acostumada a que tudo esteja dado, sem precisar buscar, na realidade que a rodeia, a experiência a que a linguagem se refere, e nem a recrutar, dentro de si, o que seria necessário para se colocar no lugar do outro e ter empatia por ele.
Com a leitura de uma história, a experiência é completamente diferente. A linguagem do livro — e não me refiro agora apenas à linguagem verbal, mas também às ilustrações que pode haver, e que são um maravilhoso apoio àquela — não entrega tudo, e não é fechada em si mesma. Trata-se de uma linguagem simbólica, isto é, sugestiva: a sua forma está incompleta, como a linha de uma parábola, que pede por um complemento, pede que o círculo seja completado, e assim aponta para algo que não é ela mesma. Sendo assim aberta, ela exige da criança, para que esta consiga desfrutar verdadeiramente da leitura — de cujos prazeres ela desconfia, intrigada —, que vá buscar, com a sua imaginação, algo que preencha de sentido, que complete, para ela, aquilo que ali se diz. É triste que muitas crianças, não compreendendo essa operação, e não sendo eficazmente orientadas nela pelos pais ou educadores (que às vezes também não a dominam como deveriam), ao experimentarem apenas a terrível sensação de não estar entendendo nada, ficam aborrecidas e nunca tomam gosto pela leitura.
O conteúdo multimídia fornece tudo, e tudo em excesso, sem pedir nenhum esforço em troca, enchendo a imaginação e a memória de uma maneira acachapante
O leitor é convidado pela história a ir buscar, no seu arsenal de experiências vividas e nos sentimentos que já sentiu, algo análogo que complete as sugestões do livro; e, quando não houver nenhuma experiência correspondente, essa leitura vai deixar na alma da criança uma lacuna, uma questão em aberto, vai abrir espaço para um mistério, que permanecerá, lá no fundo, aguardando resposta. Um belo dia, quando essa experiência correspondente chegar, o efeito será inverso, e extraordinariamente benéfico: ela vai sacar daquela analogia, que está em sua memória, para compreender o que está vivendo, para sintetizar vivências que, de outro modo, ficariam desconexas. Aquela história certa vez ouvida vai ajudá-la a viver melhor.
Além do mais, esse exercício de buscar em si mesmo uma experiência correspondente para algo que está acontecendo com um outro é um exercício de compaixão, um movimento por tentar compreender o outro. E assim começamos a vislumbrar o papel crucial que a escuta de histórias tem na formação moral que nós devemos dar aos nossos filhos.
A literatura de boa qualidade pode nos apresentar modelos e exemplos, tanto positivos, os que devemos imitar e seguir, como negativos, tornando patentes para nós os erros que não devemos cometer ou os caminhos perigosos, interiores e exteriores, que não devemos percorrer. As trajetórias dos heróis e dos vilões são possibilidades de ação moral em situações dramáticas que, embora não sejam literalmente as mesmas, são análogas às que o nosso filho, e todos nós, vamos viver. Ao participarmos, na leitura, dos atos heróicos, dos gestos de coragem, de sacrifício, de entrega e de verdadeiro amor, fica aberta em nós essa trilha interior, para que atualizemos essas potencialidades elevadas quando uma ocasião, de proporções ajustadas, é claro, se apresentar. Porque a fruição da história faz a gente tocar, virtualmente, aquela compensação interna que sentimos, em nosso peito, quando optamos livremente pelo bem. E o inverso também ocorre: uma grande tragédia, a trajetória de um vilão, de um crime, de um crápula, de alguém que opte por se tornar cada vez pior (com mais ou menos consciência), de alguém que perca a esperança, pode deixar nas crianças e em nós uma marca, ao mesmo tempo de terror e piedade, capaz de acionar um alerta quando o mundo quiser nos arrastar para algo semelhante. Abre em nossa alma o caminho para a repugnância, para encarar e compreender quão feio é o mal, e como o mal, que tantas vezes se apresenta desejável, é realmente mau!
E as narrativas têm esse efeito sobre a nossa inteligência também porque são sintéticas: elas são um condensado da vida. Na vida, as coisas aparecem todas misturadas, sendo penoso fazer distinções; ou, às vezes, aparecem muito separadas, como uma relação de causa e efeito que tenha, entre si, muitos anos. Com a ajuda de uma história, podemos vislumbrar uma sabedoria que, se dependesse de experiência concreta própria, só acessaríamos na velhice. E, assim, essa “densidade vital” de uma história, de um conto de fadas, é capaz de deixar na criança umas pistas (como as pedrinhas do João, lançadas no caminho) que a guiem em suas escolhas, que a deixem prevenida para ler o sentido mais profundo das coisas pequenas, das atitudes cotidianas que vai ter em casa, com seus pais e irmãos.
A literatura de boa qualidade pode nos apresentar modelos e exemplos, tanto positivos, os que devemos imitar e seguir, como negativos, tornando patentes para nós os erros que não devemos cometer
Imaginem, por exemplo, a história de uma grande vingança, cujo vingador, no fim, não ganhe nada com aquilo, mas apenas envenene a sua alma tanto quanto a daquele que lhe causou o mal. Quando nosso filho tiver o desejo de vingança, quando almejar esse tipo de “justiça” em relação a um irmão, ele próprio pode perceber a semelhança com aquele tal personagem, ou, se não perceber sozinho, nós podemos usar a história como ferramenta para mostrar a ele. Eles terão, numa espécie de panteão imaginário, figuras como a Cinderela ou a Gata Borralheira, que, sendo nobre e bela, é humilhada e rebaixada pela madrasta e suas filhas — como todo coração nobre neste mundo; mas, algum dia, seu verdadeiro valor será reconhecido, e ele brilhará no palácio da verdade. Como também o patinho feio, até encontrar os verdadeiros iguais de sua espécie. Terão na memória também aquela princesa, que prometeu velhacamente viver ao lado do sapo que ajudou a devolver sua bola de ouro; não fosse pela ordem do pai, para que cumprisse sua palavra mesmo contra seu sentimento natural de repugnância, não teria recebido a recompensa, de vê-lo transformado no mais belo príncipe, que a desposou. Certamente não se esquecerão das duas irmãs: a que foi generosa e gentil com a fada disfarçada, junto do poço, e a que foi orgulhosa e insolente, a às quais a mesma fada fez saírem de suas bocas, com as palavras, jóias e flores, a primeira, e sapos e serpentes, a outra. Ou então do Pinóquio, e de sua jornada por livrar-se da cara de pau até tornar-se alguém de verdade. Estas histórias — bem como os muitos outros contos de fadas, recolhidos e preservados por esses heróis literários que são os irmãos Grimm, Hans Andersen e Charles Perrault — são histórias muito, muito antigas, que ninguém sabe bem quem inventou, e que foram sedimentando em si a sabedoria de muitas gerações, até tornarem-se um verdadeiro tesouro.
E esse tesouro sempre teve, também, o seu aspecto “medicinal”, no sentido psicológico, o seu efeito como um remédio, como um auxílio na solução de questões para os pequenos que não têm ainda pleno o uso da razão, ou problemas que a razão tem dificuldade de abranger. Uma boa história pode ajudar os nossos filhos em momentos críticos de sua vida, a enfrentar alguma dificuldade, de medo, de insegurança, ou a adaptar-se a uma mudança drástica, uma perda, ou em alguma crise própria de seu desenvolvimento. Porque, ao oferecer um espelho da realidade que se está vivendo, o símbolo serve como uma proteção, como o escudo de Perseu, que o permitiu olhar para a Medusa sem petrificar. Na história, tudo aquilo acontece com um “outro”, com o personagem, antes de se passar comigo e, vendo o outro de fora, consigo compreender e abarcar o sentido da situação.
Essa prática a auxilia, além do mais, na aquisição de habilidades de linguagem, no aumento do vocabulário, na absorção de giros de linguagem, de expressões, de referências, que engrandecem o seu arsenal para expressar os próprios sentimentos, para expressar o que acontece na sua própria vida, e narrá-la. E isso é extremamente importante, porque, sem poder expressar as coisas, elas nos escapam, como areia pelas mãos.
Os castelos e os dragões estão no coração de todos nós, e especialmente no de todo menino e menina, que desejam lutar pela justiça contra o vilão maligno, como um cavaleiro de espada na mão, por uma causa nobre e justa, ou desfazer o feitiço que fez desse cavaleiro um animal inerte, ou que o prendeu, o amarrou, e enfim celebrar o grande festim de um matrimônio triunfal. A luta do bem contra o mal é a grande batalha, a mais emocionante de todas — e ela é invisível, dentro de nós. Leiamos para os nossos filhos, sempre, todos os dias, tanto quanto pudermos, e leiamos as mais belas histórias. Não precisamos ler bem, nem fazer grandes encenações, nem explicar muita coisa. Basta estarmos ali, com eles, habitando juntos por breves instantes o reino mágico da imaginação, que nos faz sentir essa nostalgia daquele outro reino em que queremos, um dia, ser felizes para sempre.
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