| Foto: NoName_13/Pixabay
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Assim que chegou a Nova York, Henry Davis revelou à esposa as razões de sua partida: jamais quisera aquela vida que eles tinham juntos. Pensou que quisesse, pensou que estava feliz, mas não estava. Não queria a casa, nem o apartamento, e não queria saber da guarda das filhas. Eles haviam dormido na mesma cama por 20 anos, e desde esse dia Flobelle Burden não teve mais qualquer informação concreta a seu respeito – como se sentia, o que faltava em seu relacionamento, por que as estava abandonando assim, que importância tinha para ele aquela outra mulher. Ele parou de atender a suas ligações, e o processo de divórcio correu frio e duro, como um cadáver. Ela tocou a vida, mesmo sem respostas para suas muitas dúvidas, que faziam sua própria história parecer-lhe um filme do qual ela perdera o meio. Às vezes vê o ex-marido de longe na cidade, andando altivo com seus tênis cor-de-laranja, e, embora seu coração palpite, tem muito claro que não passa de um completo estranho.

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Esta história foi contada dois meses atrás, no The New York Times, pela própria personagem. O desfecho se deu entre os dias 21 e 22 de março de 2020, menos de uma semana depois de o casal e as duas filhas, então com 15 e 12 anos, terem se acolhido em sua casa de veraneio na ilha Martha’s Vineyard, para passarem juntos o incerto período de lockdown que se iniciava. À noite, quando Flobelle limpava o chão da cozinha após o jantar, atendeu ao telefone, e uma voz lhe revelou: “Lamento dizer que o seu marido está tendo um caso com minha esposa”. O marido mostrou-se arrependido, disse que a amava e que aquele deslize não significava nada. Ao nascer do sol, porém, com os olhos vidrados, ele anunciou sua partida, para nunca mais voltar.

Não resta dúvida de que alguma coisa chegou ao limite dentro daquele homem, que – como disse o Pedro Sette-Câmara, admirado com a mesma história – pode ter se tornado um estranho para si mesmo, antes de ser um estranho para os outros, para a própria mulher. Pode ser que, ainda jovem, tenha optado por uma faculdade que lhe desse segurança, e tenha feito escolhas de trabalho e de encaminhamento na vida movido pelo mesmo medo. Enamorou-se por quem lhe pareceu desejável e disponível, e, por inércia ou por ímpeto, casou-se; teve dois filhos, como todo mundo faz, e continuou perseguindo o status e o dinheiro, bancando pequenos escapismos como viagens, carros, móveis, e anestesiando-se com a comida, a bebida, a televisão, o sono. O ser humano é altamente capaz de se enganar assim por longas décadas, até que, quando os astros marcam no céu aquilo que se convencionou chamar de “crise da meia-idade”, e a velhice e a morte começam a se afigurar no horizonte como inescapáveis, você percebe que ninguém o conhece de verdade, você mesmo não sabe mais quem é, como chegou ali, e está completamente alheio à própria vida, o que gera uma angústia e um sufocamento insuportáveis, tanto que é melhor largar tudo e todos para trás em vez de meter uma bala na cabeça.

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Se não houver esforço e coragem da nossa parte, e apenas medo, desejo de segurança, de entorpecimento, de fuga, tudo o que faremos será criar uma farsa ao nosso redor, com máscaras de papel que, à primeira cheia, derreterão

Quando chegou ao limite, Henry Davis decidiu mudar de vida. Mas, creio que ninguém vá discordar, fez isso um pouco tarde... Desertou covardemente de uma pseudovida que construíra, não só para si, mas para sua mulher e para duas filhas, sem falar no restante da família e os amigos. Represou o desejo de sentido, a vocação que soava dentro de sua alma, e que talvez nunca tenha parado para ouvir, com as formas sociais e convencionais mais à mão, mais óbvias, mais seguras. E, quando a pressão estourou os diques, foi arrebatado para longe por seu caudaloso e desesperado acúmulo. Tenho em mente algo que disse Luigi Pirandello (escritor italiano muito interessado na fragilidade dos papéis sociais), em L’umorismo, de 1908:

“A vida é um fluxo contínuo que nós procuramos deter, fixar em formas estáveis e determinadas, dentro e fora de nós (...). As formas, em que procuramos deter, fixar em nós esse fluxo contínuo, são os conceitos, são os ideais em relação aos quais queremos nos conservar coerentes, todas as ficções que nós criamos, as condições, o estado em que tendemos a estabelecer-nos. Mas dentro de nós mesmos, naquilo que chamamos alma, e que é a vida em nós, o fluxo continua, indistinto, sob os diques, além dos limites que nós impomos, ao compor-nos uma consciência, ao construir-nos uma personalidade. Em certos momentos tempestuosos, acometidas pelo fluxo, todas aquelas formas fictícias ruem miseravelmente; e também aquilo que não escorre sob os diques e além dos limites, mas que se nos revela distinto e que nós havíamos cuidadosamente canalizado em nossos afetos, nos deveres que nos impusemos, nos hábitos que traçamos, em certos momentos de cheia transborda e revolve tudo.”

Pode ser que o autor siciliano, um tanto cético ou pessimista, visse essas formas tão somente como “ficções que criamos”, e nunca como encarnações válidas do sentido, como a matéria que temos à disposição para moldar uma vida verdadeira com base em ideais autênticos, enfim, como canalizações salutares da força criativa da vida, que, em vez de “transbordar e revolver tudo”, passa a operar em nós, a fecundar nossa biografia. De qualquer modo, a sua ideia é esclarecedora, pois, se não houver esforço e coragem da nossa parte, e apenas medo, desejo de segurança, de entorpecimento, de fuga, realmente tudo o que faremos será criar uma farsa ao nosso redor, com máscaras de papel que, à primeira cheia, derreterão, e nós seremos colocados, sem escapatória a não ser a loucura, assim como Henry Davis naquele 21 de março, diante da divisa máxima: é preciso mudar de vida.

Nada garante que, num ou noutro momento de nosso itinerário sobre a Terra, não tenhamos de fazer grandes e radicais mudanças em nosso modo de viver, sem que isso seja uma “mudança de vida”, tal como tento explicar. Pode ser que seja inevitável fazer grandes esforços de adaptação se a situação social ou econômica ao nosso redor mudar, e que precisemos migrar ou nos virar de outro modo, ou então que um acidente, uma doença, uma catástrofe tire de nós algo, ou alguém. Porém, essas mudanças acontecem como que dentro da própria vida, que as absorve; é nossa vida que muda, internamente, e não nós que mudamos de vida. O que aconteceu nessa história, e que devemos temer que aconteça conosco, é algo de outro tipo: é o prenúncio de um colapso geral, por conta de ter chegado a data de validade das nossas mentiras. O que tenho a dizer é que o método para prevenir, para evitar esses cataclismos vitais não é outro a não ser fazer, voluntariamente, aquilo que será imposto mais tarde: é preciso mudar de vida todos os dias. Em que consistiria isso?

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Certamente não significa mudar tudo todos os dias, e viver uma vida inconstante, em que nada é permanente, ao sabor dos desejos e dos movimentos espontâneos. Henry Davis teria sido feliz se, em vez de casar-se e ter duas filhas, tivesse continuado um bad boy, levando a vida como lhe parecesse bem naquela semana, tendo relacionamentos curtos, e sem responsabilidade alguma? Creio que o seu desespero, na meia-idade, seria apenas diferente, mas não menor. Esta é uma maneira errônea e viciada de conceber e viver os movimentos internos do ser humano, que identifica o bem com a bravata, com o risco, que enxerga a volubilidade de maneira romantizada, como se isso fosse viver intensamente, ou apaixonadamente.

Não é verdade que mudar é sempre bom, não é verdade que a mudança seja, em si mesma, algo bom, e também não é verdade que estamos sempre progredindo, conduzidos por uma força maior a sermos melhores e a estarmos no lugar certo, bastando, para tal, que o tempo passe. Esse pensamento, que é uma contrafação do “abandono à providência divina”, leva muita gente a viver de maneira superficial, a mudar de ideia conforme mudem os discursos altissonantes, a flertar com o relativismo moral, a dar pouco valor às pessoas e ser menos confiável em suas relações pessoais, e, enfim, a não criar bases sólidas, em todos os sentidos, nem para si nem para sua família – digo, enquanto a família sobreviver a isso. Nesse tipo de dinâmica, em que se acredita viver uma vida aventurosa, busca-se sempre ser alguém diferente, trocar de vida em vez de mudar de vida, e na realidade não há nenhum progresso, apenas um incessante quicar de lá para cá, chacoalhar de um lado para o outro: um irrefletido girar em falso, em que as pessoas ficam iludidas ou anestesiadas pela velocidade das mudanças, pelo ritmo da agitação – e, assim, renunciam a uma elaboração duradoura de suas máscaras de papel, que mais dia menos dia seriam empapadas pela verdade, por uma troca rápida de máscaras improvisadas, tentando escapar do confronto com a verdade pela rapidez. Mas não é possível, pois toda essa corrida terá um termo, e não há como esgueirar-se da morte. Mas em que consistiria, então, mudar de vida todos os dias?

Mudar de vida a cada dia significa avaliar quais das nossas decisões, ações e relações ainda são pautadas por outros critérios e valores menores, e buscar nos entregar, cada vez mais profundamente, ao verdadeiro critério da vida

O primeiro princípio a se ter em conta é inexorável, é um princípio físico e metafísico. O seguinte: para que algo mude, ou progrida, é forçoso que algo permaneça. Não é possível dizer que houve uma mudança sem algo fixo com relação ao qual possamos medir o movimento, comparar o antes e o depois. Na prática, significa que uma verdadeira mudança de vida é uma mudança da vida de alguém, e que a pessoa, a sua identidade e a sua essência, é a mesma. Como eu disse, mudar de vida é diferente de trocar de vida. Belle Burden afirma que o ex-marido tornou-se para ela um completo estranho – e, de fato, para ela e as filhas, o Henry Davis do dia 21 é o mesmo Henry Davis do dia 22? Mas ela se questiona (e este é o título do seu artigo) se na verdade não foi casada 20 anos com um estranho. O que a faz perguntar-se isso é justamente o fato de que a pessoa, o núcleo pessoal e intransferível de cada um de nós, não muda; portanto, se ele foi capaz de sumir para sempre, é porque sempre fora capaz, e ela é que não sabia, ela é que não podia ver através das falsidades. Por isso, a nossa mudança diária de vida não deve de modo algum ser uma ruptura total com o passado, um grande reset, uma revolução – uma deserção irresponsável, como a de Henry Davis –, mas o contrário disso: deve ser uma confirmação daquilo que deve permanecer, com base no que vamos emendar o que for preciso mudar.

Devemos assumir a responsabilidade por todo o nosso passado e por tudo aquilo que tenhamos feito, reconhecendo que, por mais que estivéssemos errados ou alienados, éramos nós quem fazia aquelas coisas. Se estávamos muito longe do nosso centro, se estávamos surdos para a voz da vocação interior ou tentando escoar a água da vida com diques de papel, não importa; era a mesma pessoa que fazia aquelas coisas, era a mesma pessoa que fazia aquelas escolhas – e que têm consequências, como ter filhos, por exemplo –, e é esta mesma pessoa que, agora, tenta instalar-se, novamente ou pela primeira vez, em seu próprio coração, e mudar de vida, sem fugir às responsabilidades. Se nunca fizemos esse tipo de exame, devemos fazê-lo o quanto antes, e, se o fizermos todos os dias, evitaremos grandes tragédias. Nossa mudança de vida diária deve ser, portanto, fundamentalmente uma distinção entre o que deve permanecer e o que precisa ser alterado, aperfeiçoado, aprofundado, radicalizado, ou então abandonado, erradicado, exorcizado. “Todo homem normal há de ser conservador do que deve ser conservado, e reformador do que pede reforma”, disse Gustavo Corção. Mas qual é o critério para essa distinção? Qual é minha regra absoluta, pela qual tudo o mais será julgado? Onde está minha felicidade, o que me faz levantar da cama e suportar o que vier? Que vida eu quero levar, da qual não vou me arrepender? O que deve permanecer, ainda que seja preciso abrir mão de todo o resto? Pois fato é que, em algum momento, mais cedo ou mais tarde, teremos de abrir mão de tudo.

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A morte tem esse temível privilégio de pôr diante dos nossos olhos toda a nossa vida, avassaladoramente nua, e de eternizar o que, na verdade, sempre fôramos. Por isso é tão fundamental, para essa mudança de vida nossa de cada dia, meditar sobre a própria morte: olhar de frente o nosso próprio crânio descarnado, e assim encarar essa ideia, até que, de uma simples ideia, abstrata, ela se torne uma verdade tão concreta quanto o presente. Memento homo... “lembra-te, homem, de que és pó, e em pó te hás de tornar”. A contemplação de nossa vida terrestre como um todo finito, e a perspectiva de que tudo nela é certamente passageiro, ajuda-nos a colocar todos os elementos que a compõem em suspensão, a nos desligarmos, nos desgarrarmos de suas falsas seguranças, e nos sentirmos distantes, livres para julgá-los todos novamente conforme o nosso magno critério. Mas, de novo, qual será o nosso magno critério? Se você não tem claro qual é o seu, será preciso descobri-lo ou escolhê-lo – não às pressas, por medo, novamente, o que seria uma trapalhada ainda pior. Mas consistentemente. Responsavelmente. O que tem de permanecer, caso tudo ao seu redor venha a se alterar? Se uma grande mudança de vida lhe for oferecida, com base em que você vai decidir? Se for posto numa encruzilhada e for preciso escolher entre duas vidas diferentes a se levar, sem meio-termo, qual será o critério da sua vida? – A vida de Henry Davis e Belle Burden teria sido diferente se tivessem se perguntado isso repetidas vezes ao longo dos anos? Eu acredito que sim.

Mudar de vida a cada dia significa avaliar quais das nossas decisões, ações e relações ainda são pautadas por outros critérios e valores menores, e buscar nos entregar, cada vez mais profundamente, ao verdadeiro critério da vida. Qual é ele, quanto ele define minhas escolhas? Faça essas perguntas todos os dias. Suspenda a cada dia todos os elementos de sua vida e julgue-os pelo critério máximo, que é a única coisa que você terá quando enfrentar a morte um dia. É preciso mudar, antes que se viva uma vida tão falsa que fique impossível continuar; antes que a nossa pessoa esteja aquém da nossa mesma vida. Mudar para que nossa personalidade – a integridade de nossa pessoa, nossa “saúde existencial” – não esteja aquém dos nossos poderes, habilidades, responsabilidades e papéis sociais. Para não sermos estranhos a nós mesmos, é preciso conversarmos conosco mesmos todos os dias, e para não sermos estranhos para os nossos familiares, é preciso que sejamos nós mesmos a conversar com eles todos os dias. Isto, creio, nos manterá a salvo de grandes tragédias, das grandes apostasias existenciais, se mantivermos acesa diante de nós, a nos fitar, a luz do nosso critério máximo – como faz, no poema de Rilke, aquele “torso arcaico de Apolo”, no qual, mesmo despedaçado e com as partes faltando, tudo brilha, e tudo está voltado para nós dizendo: “É preciso mudar de vida”.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]