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Imagem ilustrativa.| Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney

Quando vemos a foto de um bebê bem fofinho, estampado num pacote de fraldas, ou na propaganda do xampu que não arde os olhos, ou quando nosso filhinho pequeno, que ainda mal aprendeu a falar, diz uma coisa muito inocente e muito singela, a gente quase chega a acreditar que são anjos. E de fato, as crianças simbolizam, em sua singeleza, a própria bondade, a doçura, a inocência. Elas têm, ainda, uma grande sensibilidade e uma delicadeza na apreensão do mundo, tão novo para elas, que nos encanta e fascina. Entretanto, assim que fazem uma birra, que contam uma pequena mentira para se safar, ou que tomam para si o doce que era de outra criança, os olhos de muitas pais se arregalam, surpresos por verem que, naquele pequenino tão puro, possa haver, desde logo, más inclinações. Sim, as crianças já têm em si o germe de más inclinações, embora ainda não tenham conscientemente praticado o mal, nem tingido a sua consciência com malícia, como já aconteceu com os adultos. Podem parecer anjinhos em boa parte do tempo, mas não são anjos de verdade: são seres humanos, e o ser humano, por uma estranha causa metafísica, tem em sua própria natureza um desvio do projeto original.

Quando os pais partem do princípio de que é preciso que seus filhos ajam sempre de maneira “natural”, e que essa “natureza” em nada precisa ser corrigida, correm o risco de incorrer num grave erro: imaginar que, para corrigir esses defeitos, essas tendências a ações más, basta esperar o tempo correr, e que, à medida que forem ficando mais velhos, ou quando for aumentando a sua capacidade de percepção e de entendimento, as coisas vão se consertar sozinhas. Tentam se convencer de que, lá adiante, eles mesmos vão querer ser diferentes nesses pontos críticos. Afinal, quem não quer ser bom?

De fato queremos ser bons, e por isso imaginamos que basta esperar para que nossos filhos compreendam a necessidade de ajudarem nas tarefas domésticas, de estudarem no colégio, de serem compassivos com os outros, e que não podem gritar conosco, nem serem desleixados ou grosseiros etc. E, nessa expectativa, vamos deixando a coisa rolar...

Acho que valeria a pena nós determos nossa atenção sobre a essência e as características, sobre o modo de funcionamento dessas ditas “más inclinações” que acometem o ser humano, porque esse assunto consiste numa falha na formação de quase todos nós. Não é algo que se aprenda na faculdade, nem que seja transmitido em tevê aberta, tampouco em terapias se aprende ou se explora o suficiente, ao menos em geral, o funcionamento dessas tendências e, em contrapartida, o funcionamento da nossa vontade.

As más inclinações existem em todos nós, em todas as pessoas, de todos os estratos sociais; se a pessoa é mais ou menos inteligente, se é mais ou menos dotada de tal ou qual qualidade, não importa

Quando estamos lidando com uma máquina, qualquer que seja, e não sabemos como funciona exatamente, quais são as possíveis dificuldades ao se lidar com ela, certamente fica muito mais difícil operá-la, que dirá consertá-la, se apresentar problemas. Do mesmo modo, se não sabemos como essas más inclinações aparecem e quais são as máscaras que elas assumem quando atuam sobre nós, será muito mais difícil educarmos nossos filhos. Ora, a alma humana tem muitas artimanhas internas, de tal modo que essas más inclinações dificilmente aparecem de forma escancarada, mas escamoteada e tergiversada. É raro podermos dizer de alguém, com a boca cheia, que “essa pessoa é extremamente preguiçosa” ou “avarenta”, ou “invejosa”. As exceções confirmam a regra, e nos espantamos com alguém que se apresente francamente mau. Tanto é assim que, quando nós buscamos fazer um autoexame para identificar as nossas piores inclinações, encontramos dificuldade, porque a todo tempo tentamos, de maneira inconsciente, burlar qualquer exame que nos flagrasse. O que fazemos, sim, é tentar mostrá-las para os outros de forma justificada, por um bom prisma.

Mas as más inclinações existem em todos nós, em todas as pessoas, de todos os estratos sociais; se a pessoa é mais ou menos inteligente, se é mais ou menos dotada de tal ou qual qualidade, não importa. Todos nós nascemos com essas más inclinações, e não existe uma pessoa sequer que nasça neste mundo que não tenha más inclinações. Se uma pessoa está mais experimentada na virtude, se percebemos nela que é uma pessoa virtuosa, muito provavelmente isso se deve ao fato de que ela luta contra essas más inclinações. Não é possível sermos verdadeiramente bons sem lutar contra elas. Inversamente, se tentamos ser “naturalmente” bons, não há meio de dar certo. Se nos entregamos a fazer as coisas tal como a nossa natureza manda, é bem provável que, muito em seguida, penderemos para o lado do mal.

Toda vez que frustramos aquilo que somos chamados a ser, que não caminhamos na direção de onde poderíamos chegar, isto é o que significa cometer um pecado. Quando fazemos isso de forma consciente – como quem diz “eu sei que é mau, e quero mesmo assim” –, causamos em nossa alma uma lesão muito grave, tanto que é como se acontecesse uma fissura dentro de nós. E, se fissuras atrás de fissuras vão acontecendo e não procuramos formas de corrigi-las, elas nunca serão consertadas.

De que forma podemos corrigir essas fissuras? Em primeiro lugar, assumir que elas existem e nomeá-las. Ter a coragem de afirmar: “Eu sou preguiçosa” ou ao menos “eu fui preguiçosa: eu não quis fazer porque eu tive preguiça”. Ou então “eu fui luxuriosa”, “eu fui soberba”, “eu tive inveja”. Se não conseguimos verbalizar essas motivações, as fissuras não têm chance de serem consertadas, pois nossa mente vai logo produzir outras desculpas, outras verbalizações, para abafar aquele acontecimento: “Não é exatamente inveja... quer dizer, é uma inveja boa! É que seria tão bom ter a vida dela... Mas nem por isso eu lhe desejo mal – ainda que eu merecesse aquelas coisas mais que ela...”. Vejam ainda: “Eu não agi por gula, pois, poxa vida!, eu também mereço comer um pote de sorvete, né? Depois de tanto estresse e tanta cobrança. Eu trabalho muito, posso me dar ao luxo!” “Não foi por preguiça que eu não o ajudei, é que naquela hora eu estava muito cansada, tem vezes que a gente precisa se poupar. Não dava tempo aquela hora, eu iria me prejudicar...”. Nessas elucubrações, a criatividade humana não tem limites.

E assim, sem conseguir olhar de frente a nossa vida, e sem identificar onde aparecem em nós as más inclinações, ficamos praticamente impossibilitados de evoluir, de melhorar, de progredir na direção do bem, pois sem identificar e nomear é como se a coisa não existisse, e para o que não existe não se pode dar remédio.

E tem mais. Essa desordem interior, que trazemos desde o nascimento, essas tendências nos inclinam a tomarmos atitudes que não fazem mal apenas a nós mesmos, mas também fazem mal ao próximo. Elas nos afastam da plenitude do que poderíamos ser, mas esse desfalque não atinge somente a mim, atinge também a pessoas que estão ao meu redor. Portanto, consentir ou não com essas más inclinações não é apenas “problema meu”; é uma questão de responsabilidade pelas consequências que essa decisão traz para quem está à minha volta. Dito de outro modo, é minha responsabilidade – responsabilidade “social” – me emendar. Se eu não procuro ser uma pessoa melhor o máximo que posso, atrapalho não apenas a minha vida, mas a vida de todo mundo que amo, e inclusive das pessoas que eu nem mesmo amo diretamente. Logo, essas más inclinações precisam ser ordenadas.

E é também por isso é que elas são objeto de educação, não só de educação externa, por parte dos pais que precisam identificar isso nos seus filhos e colocar os meios necessários para que eles melhorem, mas também de autoeducação.

À medida que vamos ficando mais experimentados no trato com as más inclinações – compreendendo o que elas são, de onde elas vêm, como se fazem presentes –, começamos a atinar para os nossos próprios pontos fracos, para as situações que nos fragilizam e que nos pegam como armadilhas, e a enxergar os processos pelos quais acabamos sendo dominados por elas, para que então comecemos a ser capazes de interceptá-los no meio, e lutar. “Aqui, se começo a me incomodar deste modo, em pouco tempo estou irado...”; “aqui, se não me chacoalho e começo logo a trabalhar, fico preguiçoso”... E tudo isso nos dá conhecimento prático, efetivo, nos capacita de verdade para compreender um outro ser humano como nós – para compreendermos nossos filhos, e podermos ajudá-los, educá-los.

A luta contra as inclinações capitais deve ser de algum modo positiva, fazendo as nossas forças e paixões se encaminharem para o lado certo

Passemos agora em revista quais são essas principais inclinações para o mal, que, embora apareçam em listas diferentes com o passar dos séculos, vêm tradicionalmente compondo um elenco de oito ou sete – os famosos “sete pecados capitais”. Nem sempre é justo chamar essas realidades de “pecado”, pois o pecado, a rigor, segundo ensina a Igreja, ocorre quando nós consentimos com essa inclinação, quando empenhamos a nossa vontade numa ação que endossa essa inclinação. O pecado é a frustração de algo que eu deveria ser, que é, no contexto da religião, aquilo que Deus pensou para mim, que Deus espera que eu faça para o meu próprio bem, e eu, não agindo dessa forma, frustro aquele plano para a minha própria felicidade.

Nós nascemos, pois, com essas sete más inclinações, das quais, chamadas de “capitais” por serem como a “cabeça” de uma família, derivam muitas outras. São sete “mães”, sete vícios ou inclinações capitais. Todos nós as temos, ainda que alguns tenham umas em maior medida, outros em menor medida, isto é, algumas pessoas precisarão lutar mais contra a preguiça, e outras menos, ao passo que umas precisarão lutar mais contra a ira, e outras precisarão lutar menos, e assim por diante. Mas em todos nós estarão todas presentes: a preguiça, a ira, a avareza, a gula, a luxúria, a inveja e a vaidade.

Estarão presentes em todos nós, numa variedade de intensidade. E, incrível observação, aquele mal para o qual temos uma maior inclinação é, ao mesmo tempo, aquela coisa que vai nos permitir ser muito grandes no bem. O que eu quero dizer? Por exemplo, se uma pessoa tem dentro de si uma grande ira, que é como um fogo, esse mesmo fogo pode tender à justiça, a atear fogo no que não presta. Essa pessoa pode cair para o lado ruim, ou seja, não conseguir olhar para as pessoas, mas somente para a justiça, absoluta e abstrata, e então começar a acabar com os outros – até que façam as coisas do jeito dela. Mas, se ela consegue usar a ira para ser verdadeiramente boa, esse mesmo fogo que podia levá-la a ser uma pessoa muito ruim vai fazer com que ela seja grandiosa, com grande capacidade de fazer o bem, de convencer as pessoas, de atear fogo para o começo dos bons projetos, de lutar contra as injustiças do mundo, de ser aquela pessoa que levanta bandeiras de boas causas. Ela passa a ter uma “santa ira”, uma santa indignação, porque a maior preocupação dela é o bem, o efetivo bem das pessoas.

Portanto, a luta contra essas más inclinações não é somente negativa, não é uma luta de quem deve sempre estar fugindo ou dizendo “não” a todos os impulsos. “Não posso comer muito”, “não posso desejar o sexo”, “não posso reparar nos bens que os outros têm”, “não posso descansar” – não é disso que se trata. Apenas esse monte de restrições não é capaz de fazer uma pessoa boa. As nossas paixões são aquelas forças ou movimentos que nos “levantam”, que realmente mexem no nosso coração – resta saber para que lado vamos incliná-las.

A luta contra as inclinações capitais deve ser de algum modo positiva, fazendo as nossas forças e paixões se encaminharem para o lado certo. E o mesmo vale com nossos filhos: não podemos matar aquilo que neles é mais forte, não podemos neutralizá-los, destruí-los ou paralisá-los. Devemos conduzir suas forças e tendências para o bem, para o seu crescimento, para que se forme uma grande pessoa, capaz de fazer o bem.

Pois as más inclinações não nos obrigam a agir mal, elas são como que tentações – inclinam, mas não obrigam. Não são os objetos do mundo que são em si luxuriosos, preguiçosos ou iracundos. É o ser humano que, ao se relacionar com o mundo, ao desfrutar da criação, deixa-o assim com seu mau uso, e faz mal a si próprio. O mundo, quando nos convida à luxúria, à preguiça, à ira, à inveja, à vaidade, ele apenas convida, mas não nos coage.

Sim, é verdade que o TikTok alimenta a sensualidade, que as novelas e os filmes alimentam a nossa inveja, os jornais instigam a nossa ira, e podem instigar a nossa avareza. As redes sociais também instigam a nossa preguiça, porque nos convidam a ficar ali mexendo naquilo em vez de trabalharmos. Mas é nossa responsabilidade lutar contra essas influências, e oferecer-lhes resistência procurando ativamente influências opostas.

Não podemos lançar no colo dos nossos filhos a responsabilidade de dizer “não” ao mal e às suas más inclinações sem os ajudarmos a formar sua própria consciência moral e sua própria vontade

É claro que, às vezes, a circunstância é muito opressiva, e a tentação é muito forte; mas ainda assim nós somos pessoas livres, e é bem aí que está a nossa liberdade: o mundo pode me puxar com força para algo, e eu, ainda assim, não consentir. Então, toda vez que eu consinto com a tentação, e cometo esse pecado, a responsabilidade não é do mundo, a responsabilidade é minha. Mas como conseguir dizer “não” aos convites do mundo? Fortalecendo o espírito, para não sermos levados pelas tentações, para que saibamos resistir a cada uma delas – o que não é questão de força bruta, mas arte, a sutil arte de identificar cada uma das paixões e de ministrar-lhe o devido remédio. E é nessa senda que seremos os guias dos nossos filhos.

Devemos protegê-los dos convites e das tentações que sabemos serem ainda mais fortes do que sua vontade é capaz de aturar, muito atentos ao que se aproxima deles e ao que pode atrapalhar a sua formação ou perturbá-la. Não podemos lançar no colo dos nossos filhos a responsabilidade de dizer “não” ao mal e às suas más inclinações sem os ajudarmos a formar sua própria consciência moral e sua própria vontade.

Avareza, gula, inveja, ira, luxúria, preguiça – os vícios capitais, as mães de todos os pecados – e a soberba, a irmã mais velha, ou a mãe das mães, a avó de todos eles, a nossa distorção interior mais interior. Nas próximas oportunidades, pretendo falar pormenorizadamente de cada um dos sete vícios, tentando expor suas dinâmicas e, em contrapartida, os modos de os dominarmos, para que possamos crescer nós mesmos, e então, não só darmos exemplo aos nossos filhos, mas também conduzi-los conscientemente no caminho da virtude.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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