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Na década de 1940, o famoso psicólogo americano B. F. Skinner, grande expoente do behaviorismo, era ainda um estudante de pós-graduação na Universidade de Harvard. Foi por essas épocas que ele realizou um famoso experimento, e que desenvolveu um aparato de laboratório que, mesmo contra a sua vontade, acabou sendo batizado com seu nome: a “caixa de Skinner”, ou, como ele preferia chamar, a “câmara de condicionamento operante”. “Condicionamento operante”, para ele, era a indução de um padrão de comportamento por meio de recompensas e fracassos, ou melhor, a “modelagem de uma resposta de um organismo” por meio de “reforços diferenciais” e “aproximações sucessivas”, e a caixa servia para fazer testes com animais – especialmente pombos.
Muito resumidamente, a ave era posta dentro da câmara, em que havia botões, e era induzida a aprender que, bicando uma das teclas, receberia uma porção de comida. Num segundo momento, o procedimento era alterado: o alimento só era liberado se a pomba acionasse o botão três vezes sucessivas. Uma vez adaptada à nova regra, a pombinha tornava-se o próprio símbolo da paz, inabalável em sua tranquila rotina de bicar e comer. Tinha início, então, uma terceira fase do experimento: o número de bicadas necessárias para acionar a liberação de comida passava a se alterar randomicamente, sem qualquer padrão: se recebia comida com quatro toques numa vez, na seguinte as quatro não bastavam; bastavam seis, que depois não serviam mais; mas três bastavam, e depois não novamente, e assim alterando-se o padrão de causa e efeito estabelecido numa tal aleatoriedade que o bichinho, antes tranquilo e satisfeito, ficava totalmente inquieto, alvoroçado, frenético.
Edward Thorndike, seu antecessor nos estudos do comportamento, havia estipulado a “lei do efeito”, segundo a qual todo comportamento de um organismo vivo tende a se repetir se seu efeito for agradável, e a não se repetir se for desagradável, o organismo associando essas situações com outras semelhantes. Skinner introduziu, nessa teoria, a ideia de reforço, a de uma compensação que fortaleça uma resposta desejada, para a progressiva indução de comportamentos, e ficou conhecido como o fundador do que se veio a chamar behaviorismo radical, por incluir, na ideia de “comportamento”, também os pensamentos e sentimentos humanos. Mais que teorias sobre a vida animal, suas teses são patrimônio da psicologia, e foram largamente empregadas em métodos de educação. Ora, ele considerava o livre arbítrio do ser humano como uma grande ilusão, e via qualquer ação humana apenas como um comportamento, como algo dependente das consequências das ações anteriores (os efeitos, os reforços). Para Burrhus Frederic Skinner, eu e você não somos muito diferentes de uma pomba.
É evidente que o ser humano não é o mesmo que uma pomba
Se eu tivesse a oportunidade, não resistiria à tentação de perguntar a ele se, além de mim e de você, ele também se considerava, a si mesmo, assim tão semelhante às pombas – que, até onde se sabe, nunca prenderam outros animais em caixas para testá-los. Ou então se reputava igualmente semelhantes às pombas Dante Alighieri, Van Gogh, Beethoven, e o que aconteceu para que criassem suas obras sob tão maus “reforços”; ou os heróis e missionários que arriscaram suas vidas longe de casa, em mares bravios e selvas inóspitas; ou então os mártires, que aceitaram receber na carne as presas de leões famintos antes de dizer uma mera palavra; ou um Viktor Frankl, que, pesando menos que uma criança, desistiu de fugir do campo de concentração para acompanhar um moribundo em seus últimos momentos – para cuidar dos outros; ou, sendo mais simples na pergunta, uma pobre mãe ou pai de família, que, mesmo sabendo todos os desafios e dificuldades que vêm junto com um bebê, levantam-se todas as noites, e ainda desejam outro, e mais outro! Não, é evidente que o ser humano não é o mesmo que uma pomba.
Entretanto, é também verdade que o ser humano tem, em si, a pomba, e toda a sua mesma mecânica comportamental: somos também animais, ainda que especialíssimos, e por isso somos, em certa medida, como os outros animais. O ser humano é composto e habita simultaneamente nestes três reinos, nestas três modalidades de ser: o corpo, a alma e o espírito. E o nosso corpo, bem como boa parte de nossa alma – as suas faculdades mais baixas, associadas ao corpo e às coisas materiais –, nós compartilhamos com os animais. Ainda que, quanto às nossas faculdades espirituais e ao nosso próprio ser pessoal e imortal, tenhamos algo em comum com os anjos, somos, sob tantos outros aspectos, semelhantes aos demais mamíferos. Por ser, em sua própria essência, um pontífice entre os mundos, toda a vida espiritual do homem leva em conta a carne, assim como toda ação corporal tem de levar em conta o espírito – para bem ou para mal, não importa.
Conclusão, nós podemos de fato ser domados, se dominados e controlados como animais. Podemos ter nosso comportamento condicionado por reforços positivos e negativos, e ter nossas ações e toda a nossa conduta moldada pela memória dos efeitos, pelas emoções, tudo baseado tão somente no que é agradável, recompensador, gostoso. Mas isso somente se estivermos vivendo como animais: só se o nosso ser já tiver sido avariado, ferido, mutilado; se tivermos nublado a nossa razão, ofuscado a luz da nossa inteligência, atrofiado a força da nossa vontade, em suma, rebaixado a dignidade da nossa natureza completa. E isso só pode ser feito, é claro, por pessoas que não estejam na mesma situação, assim como o psicólogo deve estar fora da caixa para amestrar o pombo.
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É triste notar que, assim como as teorias de Skinner foram adotadas por muitos métodos de educação e por toda uma linha da psicologia, a quase totalidade dos agentes da nossa cultura tem por objetivo transformar-nos todos em animais, convidar-nos e estimular-nos a abandonar as duras penas da razão pelo abandono ao imediatismo dos agrados e aos sentimentos passageiros. E não falo apenas das falsas imagens da felicidade, dos discursos sedutores das ideologias, da facilidade de consumir e gozar, que são investidas relativamente escancaradas. Falo das furtivas técnicas psicológicas, que são armadilhas intransponíveis para almas já fragilizadas e pobremente educadas: o marketing e as redes sociais, que, como os velhos caça-níqueis, brincam com as dinâmicas animais do nosso cérebro e com os nossos níveis de dopamina.
Toda a teoria e o enorme progresso nas técnicas de marketing são, em sua substância, um grande condicionamento operante para que se busque, para que se queira possuir o objeto de desejos e necessidades ilusórias, criadas artificialmente, pura fantasmagoria a gerar multidões que pagam caro para se tornarem como pombas. E as redes sociais, cujas plataformas colhem de nós uma quantidade imensa de dados comportamentais, de hábitos, gostos e preferências, são perfeitas caixas de Skinner, que modulam o conteúdo que nos é oferecido numa bem programada aleatoriedade – algo que eu gosto de ver, após ter rolado rapidamente duas ou três coisas que não me interessam, e então outra que me interessa, e outra, e mais uma que não, e... –, de modo a sempre buscarmos a recompensa futura imediata, e que nos deixa, como a pombinha, frenéticos e ansiosos por mais e mais.
Que fazer, então? Não devemos, é claro, mergulhar nesse rio que nos leva à pura animalidade, à escravidão dos sentidos e das emoções e ao condicionamento comportamental integral. Mas também não podemos negar a nossa animalidade, nosso corpo, a química cerebral e os padrões da psique humana. O corpo deve, portanto, ser tratado como tal, com o cuidado que lhe é devido, e que começa, justamente, por integrá-lo, por ordená-lo em seu devido lugar, que é ter seus movimentos coordenados pela razão e pelo espírito. Devemos, de certo modo, condicionar os nossos comportamentos, mas nós próprios, nós sermos o sujeito que molda os nossos próprios hábitos. Devemos domar o animal, domesticá-lo, e tratar como se deve o “irmão burro”, como dizia São Francisco de Assis de seu próprio corpo. Cada um dos níveis do nosso ser, desde o corpo até o espírito, deve estar, por assim dizer, obedecendo às diretrizes do nível superior – e o espírito, por sua vez, obedecendo aos valores universais, às leis do ser que o transcendem; em suma, à própria verdade, que a inteligência busca ver. É isso o que almejam, em nós, adultos, os pequenos exercícios e esforços chamados tradicionalmente de ascese – que, nos dias que correm, envolvem a dosagem das telas e das redes sociais! –, e é isso o que faz, no caso das crianças, o que se chama de educação.
Nós podemos de fato ser domados, se dominados e controlados como animais. Podemos ter nosso comportamento condicionado por reforços positivos e negativos, mas isso somente se estivermos vivendo como animais
Num artigo de 2001, intitulado Jesus e a pomba de Stalin, o filósofo Olavo de Carvalho sintetizou tão bem o assunto que me concedo a liberdade de citar fartamente. Disse ele então:
“Quando Cristo disse: ‘Na verdade amais o que deveríeis odiar, e odiais o que deveríeis amar’, Ele ensinou da maneira mais explícita que os sentimentos não são guias confiáveis da conduta humana: antes de podermos usá-los como indicadores do certo e do errado, temos de lhes ensinar o que é certo e errado. Os sentimentos só valem quando subordinados à razão e ao espírito. Razão não é só pensamento lógico: reduzi-la a isso é uma idolatria dos meios acima dos fins, que termina num fetichismo macabro. Razão é o senso da unidade do real, que se traduz na busca da coesão entre experiência e memória, percepções e pensamentos, atos e palavras etc. [...] A abertura para a razão é educação. Educação vem de ex ducere, que significa levar para fora. Pela educação a alma se liberta da prisão subjetiva, do egocentrismo cognitivo próprio da infância, e se abre para a grandeza e a complexidade do real. A meta da educação é a conquista da maturidade. [...] O espírito e a razão educam os sentimentos. Os sentimentos do homem amadurecido pelo espírito e pela razão são diferentes dos do homem imaturo, porque aquele ama o que deve amar e odeia o que deve odiar, enquanto o segundo ama ou odeia às tontas, segundo as inclinações arbitrárias da sua subjetividade moldada pelas pressões e atrativos do meio social. [...] O culto idolátrico dos sentimentos é um egocentrismo cognitivo, um complexo de Peter Pan que recusa a maturidade. Quanto mais o homem busca afirmar sua liberdade por meio da adesão cega a seus sentimentos e desejos, mais se torna escravo da tagarelice ambiente. O caminho da liberdade é para cima, não para baixo. Libertar-se não é afirmar-se: é transcender-se.” (em O Globo, 20 de outubro de 2001, coletado em O Irracional Superior)
Sendo assim, induzir o comportamento das crianças com reforços positivos e negativos, com recompensas exteriores ou castigos e punições, sejam essas coisas sensíveis, sejam emocionais, não é algo que se possa chamar, propriamente, de educação. É um amestramento, um condicionamento operante, que modela, com o chicote numa mão e o biscoitinho na outra, a maneira como a criança se porta a cada situação – em geral, de modo a fazer menos barulho e a não incomodar os adultos. É tratar as crianças como meros animais, ainda que sofisticados, e assim, acostumá-los a serem somente isto, e rebaixá-los, privando-os de habitar e de aprender a como se mover com desenvoltura no reino do espírito, e de desfrutar dos seus duráveis prazeres interiores.
Mas também não se trata, num delírio, de suprimir da educação todo e qualquer elemento de disciplina, e de deixar a criança livre aos próprios impulsos e sem qualquer orientação quanto ao certo e ao errado, acreditando, como alguns, que o ser humano por si só há de descobrir-se e de desabrochar por natureza, como se, por não ser um mero animal, fosse já um anjo. Tampouco isso é educação: é apenas a ausência dela. Ao se desconsiderar completamente a concreta natureza humana, que inclui a animalidade, permite-se que esta tiranize a criança.
A educação, como disse o filósofo ancorado no dito de Jesus, consiste em ensinar a criança a amar o que merece ser amado e a odiar o que deve ser odiado, de modo que os sentimentos, isto é, inclusos os que vêm de condicionamentos cerebrais e de hábitos psicofísicos, sejam amadurecidos pelo espírito e pela razão. Que não sejam eles a guiar a nossa conduta, mas sejam absorvidos, transformados por ela. Educação é ex ducere, é conduzir para fora – para fora da caixinha de Skinner, em que habitam todos os servos da recompensa imediata. Isso se faz com uma disciplina sóbria, que forme em nossos filhos hábitos bons: numa espécie de “condicionamento comportamental” com os bebês, que habitam somente o reino do corpo, estando suas faculdades racionais e espirituais ainda adormecidas; mas de tal maneira que, conforme eles cresçam em idade, essas faculdades vão crescendo em força junto com o corpo, que se acostuma, paulatinamente, a servi-las. Assim a própria criança vai se tornando dona e senhora do seu próprio corpo e de suas emoções, vai tornando-se o cavaleiro que monta o “irmão burro”, e não o contrário; vai tornar-se livre para dispor dele, para condicionar o seu próprio comportamento como deseje, pela força de seus hábitos, por suas virtudes.
Antes de qualquer coisa, afastemos imediatamente as nossas crianças das telas, de todas as telas, programadas para nos enjaular no ciclo vertiginoso da dopamina: a cadeia infinita que se desenrola nas redes sociais, e os vídeos, que vêm um após o outro, e os filmes e animações, que pedem pelo próximo, e os jogos, que fazem a mente bicar o botão em busca da recompensa, freneticamente. Este, embora não seja o único, já é motivo suficiente para tirar, das mãos das crianças, os aparelhos condicionantes. Isso mina qualquer possibilidade de educação eficaz, pois atua contra, com uma força avassaladora, qualquer trabalho da atenção, da memória, de síntese, e de autodomínio, de disciplina, de edificação.
E, em segundo lugar, é preciso que nós, às vezes escravos do mesmo vício digital, para além de todos os nossos outros defeitos e carências de virtude, vivamos certa estabilidade. Nós, mais ou menos afastados das redes sociais, a depender de quanta força espiritual podemos ter, precisamos também nos educar, atingir uma certa equanimidade, uma certa base de tranquilidade e ponderação, para que se estabeleça, em nosso lar, um clima fundamental de harmonia e paz. Só assim seremos capazes de oferecer aos nossos filhos a tão necessária previsibilidade: que eles possam notar a constância em nossas reações, que devem seguir, não o calor do momento, a emoção agitada, o humor da hora, mas princípios, valores elegidos e respeitados, e que se refletem nas regras claras daquela casa.
Induzir o comportamento das crianças com reforços positivos e negativos, com recompensas exteriores ou castigos e punições, sensíveis ou emocionais, não é algo que se possa chamar de educação, mas de amestramento
A coerência entre nossas felicitações e repreensões, entre as nossas respostas a tudo aquilo que ela faz de bom e também de mau, aos seus esforços e desleixos, à mentira e à verdade, à coragem e à covardia; o valor que damos ao desenho que ela nos mostra, ao seu dia que ela vem nos contar, e a maneira como correspondemos aos seus carinhos, tudo isso vai iluminando para ela as motivações de cada juízo, e vai lhe transmitindo um senso de proporções – moral, estético, etc., que é razão, é um “senso da unidade do real, que se traduz na busca da coesão entre experiência e memória, percepções e pensamentos, atos e palavras”.
Ou seja, ao atender às expectativas que são geradas pelo padrão de nossas ações vamos fazendo, exatamente ao contrário da câmara de condicionamento, com que a criança se pacifique perenemente, sobre uma base que não poderá mais ser confundida, porque começa a emergir, a vir para fora, a sua própria razão. Instruídas, cada vez mais, nesses valores e em suas coesas nuances, e acessando com o espírito o seu fundamento, elas próprias serão capazes de se guiar por eles, e de moldar o seu próprio agir transcendendo as emoções passageiras e as satisfações fugazes, e não serão presas tão fáceis dos “reforços” manipuladores das recompensas externas.
Sejamos constantes, pois, para sermos livres; sejamos constantes até amarmos o que merece ser amado, e para não nos tornarmos, e nem transformarmos os nossos filhos, na pobre pomba de Skinner.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos