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Como é bonito de ver, um mês antes da festa do Natal, todas as ruas se enchendo de novas luzes, mais coloridas e cintilantes, acrescentadas às luzes já cansadas das nossas cidades. As casas enfeitam suas fachadas, para que da calçada os passantes vejam o seu esmero para com a alegria da época, e até por suas janelas se pode ver, às vezes, que lá dentro há ainda mais luzes, a refletir nas bolas lustradas, vermelhas e douradas, e nas guirlandas, e outros enfeites... Nas lojas, antes mesmo das promoções, vemos erigirem-se árvores decoradas, e os funcionários, transformados logo em duendes pelos gorros que lhes mandam pôr, a pendurar festões coloridos e cadeias de lampadinhas, de tal modo que, mesmo as luzes mais intensas, como as dos shoppings e dos hotéis, são postas a contribuir com essa grande apoteose reluzente que é a preparação geral para o Natal.
Mas eu fico a me perguntar, de olhos fechados, quantas pessoas, pelas ruas, já não são mais capazes de enxergar a verdadeira luz dessa festa; quantas não têm, sob a vista ofuscada pelo brilho do LED e do neon, a visão interior anulada por uma cegueira espiritual.
A chamada cegueira espiritual não é uma coisa de nascença, nem algo que nos aconteça como uma fatalidade. Ela é o resultado, aprimorado a cada dia e a cada ano, de ações nossas: de nossas próprias opções deliberadas por não ver. Por não ver, não reste dúvida, precisamente as coisas espirituais, aquelas que transcendem e põem na devida perspectiva os nossos bens passageiros, nossos tesouros comezinhos – o ouro de tolo de nossas bolas de Natal.
Quantas pessoas, pelas ruas, já não são mais capazes de enxergar a verdadeira luz da festa do Natal?
A cegueira espiritual não vem a ser nada mais do que certa estupidez, um certo embrutecimento do espírito que impede de ver e degustar as coisas divinas. Pertence particularmente à inteligência, mas é acompanhada de um endurecimento da vontade. Ela é a consolidação de uma negação, incialmente muito pequena, sempre, que foi se juntando a outras tantas até sedimentar um paredão, como muitos grãos de calcário que, ao fim dos anos, formam um recife, ou como os pequenos blocos que, depois de tanto tempo, compuseram a Muralha da China. Uma vez que se chegou a certo ponto, fica humanamente impossível voltar. A cegueira do espírito, pela força da vontade endurecida no mal, é o caminho pelo qual se deixa de crer em Deus. Por causa dessa cegueira, já nada se sente, nada se vê, nada se teme, já não se busca amar, nem praticar qualquer virtude; cai-se na indiferença, na incredulidade e na impiedade...
Quantos não conhecemos que estão numa situação semelhante? Quantos amigos e parentes não vemos – isso se, por graça, não tiver sido esta a nossa própria derrocada – que, com o passar dos anos, fazem sua ingenuidade, sua doçura e sua esperança darem lugar à arrogância, à altivez e a um ácido cinismo? Que fizeram ceder espaço, em sua alma, a candura e a singeleza, o respeito pelo sagrado, ainda que mal compreendido, substituídos por certezas muito sólidas e materialistas, por uma acre resignação para com “a vida como ela é”? Negaram-se, uma vez, num detalhe esquecido, a renovar a entrega do coração e a pagar o mal com o bem, e então enveredaram sem volta por uma senda cinzenta que, enfim, apagou o brilho em seus olhos.
Somos nós que nos cegamos e endurecemos a nós mesmos, sejam quais forem as circunstâncias, mais ou menos difíceis. Pois, como nossas ações têm consequências intrínsecas, nossa negação de ver o mundo do espírito faz o mundo do espírito, em resposta, ocultar-se pouco a pouco de nós. Lá se vão, então, os que passam a fugir dessas conversas e dos bons conselheiros, a sumir das igrejas e a ter raiva dos piedosos, e também os jovens que não querem mais ouvir seus pais, e que se lançam em perigosas ocasiões.
Logo que Deus lhes some da vista, a primeira coisa que fazem é procurar um ídolo para adorar, alguém ou alguma coisa que possa ocupar a sala do trono de seu coração, pois ninguém suporta por muito tempo a tortura do vazio. As paixões, os prazeres e a diluição num grupo ou na multidão são os mais fáceis e mais eficazes clorofórmios do primeiro momento. Podem seguir-se a eles, havendo oportunidade, as riquezas, os confortos, o sucesso no mundo, os relacionamentos afetivos superficiais, ou então os obsessivos e desproporcionais, ambos que alimentam o egoísmo. Há também quem preencha o pensamento com uma torrente de palavras e discursos muito encantadores, que, como música hipnótica, enfeiticem o engenho: com seu brilho falso, iludem quem anseia por ilusão, e justificam os extravios. Tudo isso contribui, muito eficientemente, para cegar a consciência e embotar mais ainda o coração, para abafar qualquer voz que clamasse no fundo – volte... Em pouco tempo já se está consistentemente estúpido, solidamente incapaz de compreender qualquer coisa espiritual, e pouco importa saber nem de onde vêm, nem onde estão, nem do que se trata, e, como reza o antigo salmo (13, 1), logo “o insensato diz em seu coração: Não há Deus”.
Então se atinge um grau quase perfeito de cegueira, o completo esquecimento: não conhecendo mais seu triste estado, o cego espiritual não trata mais de sair dele, nem sabe mais que algo lhe falta, que perdeu qualquer coisa, e é como o homem da velha fábula, que esqueceu seu nome. Tem por tolos aqueles que querem lhe falar a respeito e lhe oferecer uma narração das maravilhas divinas. – Quanta besteira! Nada mais que fumaças, ópio, ilusões! – Crê não ter necessidade de nada, e não vê que é pobre, miserável, e que se acha nu. Assim bruto, igualou-se aos animais e tornou-se um deles, obstinado como um boi, insensato como um jumento. E, como diz Cornélio a Lápide: “O cego espiritual anda errante pelo deserto do vício, e não acha o caminho da cidade das virtudes”.
Mas é preciso ter esperança, e o Natal é o tempo da esperança – da “boa esperança aos homens”, o tempo da boa-nova. A noite perdura enquanto não aparece o dia; chegado o dia e levantado o Sol, porém, as trevas são espantadas de volta para o abismo, os delírios da noite se desvanecem, e vem a paz.
As pessoas, hoje e sempre, são todas muito religiosas – com seus ídolos –, e em sua alma e em sua vida há monumentos erigidos para falsos deuses: uma bela imagem, a boa fama e a admiração dos outros, status, posses e riquezas, confortos e delícias
Quando esteve em Atenas, o apóstolo Paulo tanto insistiu que os filósofos ficaram intrigados para saber o que dizia, afinal, aquele tagarela, e vieram dizer-lhe: “Essas coisas que te ouvimos falar nos parecem muito estranhas. Explica direito, pois, o que queres dizer”. Eles, cegos, queriam ver, e ainda que um pouco motivados pelo aborrecimento da insistência, ou pela comichão de novidades, pediram que lhes mostrasse; que, por meio de suas palavras, os fizesse ver. E foi então que São Paulo lhes disse: “Andei pela cidade e vi que sois muito religiosos. Ademais, entre os vossos monumentos sagrados, encontrei também um altar, sobre o qual estava escrito: Ao Deus desconhecido. Aquele, pois, que vós adorais sem conhecer, é este que vos anuncio”. Como se dissesse: “É hora de encontrar e reconhecer Aquele que, mesmo invisível para vós, não pudestes ignorar totalmente”.
E não é este o caso de muitos? De fato as pessoas, hoje e sempre, são todas muito religiosas – com seus ídolos –, e em sua alma e em sua vida há monumentos erigidos para todos os falsos deuses de que falávamos há pouco: um corpo bem talhado e um rosto maquiado, a compor uma bela imagem; uma boa fama que corra a nosso respeito, e a admiração dos outros; status, posses e riquezas, confortos e delícias, pequenas vitórias contra os adversários, uma carreira, um império, a nossa grande personalidade e a nossa bela história, nós mesmos, eu, eu, eu.
Mas na alma de muita gente ainda persiste, mesmo que bem abandonado e coberto pelo mato alto da inércia ou do desprezo, um altar rachado, quase uma lápide, em que, sob a poeira, se poderia ler “ao Deus desconhecido”, “ao Deus esquecido”. Sobre esse altar, talvez, já tenham sido oferecidas ao alto, como puros incensos, as mais doces orações infantis, os sorrisos mais cândidos, as alegrias inocentes de amar e sentir-se amado, e também os mais tristes lamentos, as solidões, os abandonos, as lágrimas que rolaram por conta do desprezo, do medo, da angústia, mas que ali, naquele santo altar do coração, foram consoladas por uma imperturbável presença silenciosa, que nunca nos abandona. Ora as velas desse altar se apagaram, e essa criança, crescida, pouco a pouco se cegou, pouco a pouco o esqueceu.
Bons amigos, para sair da cegueira espiritual, assim como foi para ingressar nela, começa-se por um gesto voluntário, que é um grito de socorro, e um ímpeto de vontade. Conta-se no Evangelho do cego que, quando chamado pelo Cristo, “lançou para longe de si a capa, e levantou-se num salto” (Mc 10,50), sem temer os que o repreendiam. E assim é preciso fazer: é preciso que espere contra toda esperança aquele que está a “vagar pelo deserto do vício” e que deseja encontrar o caminho novamente. Ao dirigir-se ao Deus desconhecido pedindo a visão – “Senhor, que eu veja” (Lc 18,35) – é preciso dar-Lhe um voto de confiança, ceder-lhe previamente, como num crédito, um pouco de fé, e dispor-se, muito sincera e honestamente, a aceitar qualquer verdade que lhe for mostrada, e, numa atitude contrária à que origina a cegueira espiritual, ter a coragem de ver e de confirmar interiormente aquilo que lhe estiver sendo mostrado. Peça para ver: se Deus for realmente Deus, Ele não vai deixá-lo se enganar.
Nem sempre somos capazes de agir e de viver conforme às verdades que vimos, e o mecanismo automático de nossa alma envergonhada é alterar a verdade, para que justifique as nossas ações. O cego que quer ver precisa ter o brio de não o fazer, e de se manter na busca por agir e viver conforme à verdade, sem jamais negá-la. “Errado sou eu, e não a verdade”, será o seu lema de guerra. É um itinerário aventuroso, sim, este de decidir viver na verdade, orar, aproximar-se de Deus e d’Ele teimosamente não se afastar, abrir os olhos e os ouvidos à fé, sinceramente disposto a abraçar o que lhe for revelado; levantar-se, sacudir para longe a capa da preguiça espiritual, a inércia materialista, e não protelar os poucos passos que levam até o Cristo que passa.
Para sair da cegueira espiritual, assim como foi para ingressar nela, começa-se por um gesto voluntário, que é um grito de socorro, e um ímpeto de vontade
Os descrentes ferrenhos temem ingressar nessa senda, renunciando à prepotência e com autêntica humildade, porque é coisa garantida (Mt 7,7), e nunca se ouviu que tivesse falhado. Assim como foi para aqueles reis, majestades de outras terras, que no oriente eram magos: buscavam a verdade, e por isso foram pagos. Apareceu-lhes no céu uma estrela, a crepitar mais brilhante que as outras, e eles a seguiram. Mesmo sendo reis, rebaixaram-se, imitando, sem saber, Aquele que procuravam para adorar. E sobre o lombo de seus camelos se puseram a viajar, enfrentando o sol e o vento dos dias ardentes, e também as noites geladas do “deserto do vício”, em busca da “cidade da virtude”. Por quanto tempo? E por quantos quilômetros?! E a estrela por vezes sumiu, e eles se afligiram, e tornou a aparecer, enchendo-os novamente de alegria. E então parou, satisfeita, por sobre onde estava o Deus desconhecido, que não era terrível nem implacável, mas frágil e dócil: era um menino – um menino que acolhia, perto de si, até mesmo o teimoso boi e o burro insensato.
A fé é, neste mundo, como uma estrela de Belém, que, embora seja única em seu brilho, mais fulgurante que as outras, e também em seu movimento, que guia, parece, aos olhos desatentos, apenas mais uma estrela – mais uma “verdade”, só mais uma opinião, crença, ilusão. E ela pode brilhar intermitente, às vezes sumir e reaparecer, de fato... Mas conduz, sem erro, até o Sol de Justiça, à “verdadeira luz que ilumina os homens”, e que veio para os seus; conduz ao Verbo que se fez carne e que fez sua morada entre nós, ao único Deus capaz de alentar os tristes e aliviar os fatigados. Mesmo todos sabendo o seu nome, a sua história e algumas de suas palavras de cor, e que se acendam, nas casas e nas ruas, muitas luzes para celebrar, querendo ou não, a festa do seu Natal, Jesus é ainda, e será sempre, de algum modo, um Deus desconhecido, que é preciso anunciar e procurar.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos