Imagem ilustrativa.| Foto: Hai Nguyen Thien/Pixabay
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É coisa clara e certíssima que os pais têm o dever grave de educar os filhos. Aqueles que não o veem claro, ou não o julgam certíssimo, devem por obrigação pensar a respeito, devem o quanto antes meditar e aprender o que são em si essas realidades da paternidade humana e da família, e esforçar-se por se aproximar da clareza e da certeza – para que então, e só então, possa o jogo começar. Pois não basta que isso esteja diafanamente claro em nossas mentes, nem pontualissimamente certo em nosso juízo: são outros quinhentos nós compreendermos o que e como se deve fazê-lo, e de fato conseguirmos educá-los; é então que têm início as muitas dificuldades e desafios, até que cheguemos, com qualidade, a ensinar às nossas crianças aquilo de que necessitam para tornarem-se bons adultos – gente grande, homens e mulheres de valor. É este, todos já sabem, o meu tema de estudo, o meu mundo – dentro do qual cabe o ser humano inteiro, o qual, por sua vez, está aberto para o infinito. E quanto não temos de falar!, de pensar, de conquistar. Quão gigante não é nossa responsabilidade, e como faríamos bem a não ser doando-nos inteiramente por eles! A partir deste ponto dou início ao meu trabalho.

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Mas e os filhos, os pobrezinhos? Que teriam para nos ensinar? Estes pequenos, que mal sabem sentar, comer ou manter-se limpos? Que ainda não falam, não leem, e em nada conseguem se controlar? Tão imaturos e imperfeitos, tão carentes – tão menores que nós –, que poderiam nos ensinar? O que teríamos nós de aprender com nossos filhos?

Ora consideremos o fato de que toda a nossa vida na Terra é, como tanto se repete, uma grande escola, e a Providência divina, embora não tivesse nenhum dever, tem disposto um desígnio livre e muito amoroso de com tudo e em tudo nos ensinar, para que participemos, de algum modo – o nosso modo, o de cada um –, da Sua Sabedoria. É nesse sentido que os filhos nos ensinam, não como agentes, como causas eficientes na intenção de ensinar, mas como instrumentos na mão do grande educador, como palavras ou lições vindas da boca do mestre que as profere oculto.

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Talvez o primeiro pensamento que nos ocorra, nessa trilha, seja o de que, ao ter de educá-los, fiquem imediatamente patentes, quando não gritantes, os nossos defeitos: todas as nossas deficiências, dificuldades, os problemas mal resolvidos da nossa própria educação e do nosso próprio amadurecimento pessoal. Muitas e muitas vezes não conseguimos educar simplesmente porque somos mal-educados, e não se pode dar o que não se tem. Não se pode ensinar aquilo que não se sabe: pode-se, talvez, explanar muito bem a teoria que temos no cérebro, e encadear muito bem as palavras; mas criança não aprende com opiniões e argumentos, e sim com os olhos – com o exemplo, pela presença da virtude, e somente pelas palavras que a acompanharem. Quando vamos ajudar nossa criança a avançar em direção ao mundo dos adultos, tantas vezes deparamo-nos, em contraste, com a nossa infantilidade, e com a humilhante semelhança entre os nossos comportamentos e os dela – nela são justificados, em nós são aberrantes.

Quiséramos ter corrigido essas coisas antes! Oh, pensamos, de fato, que antes precisamos estar “prontos”, que primeiro temos de ser bons pais para depois termos filhos. Seria muito bom, é verdade, mas na prática acontece que é a criança, essa inconsciente professora que a vida nos pôs diante, quem nos descobre as mazelas que facilmente escamoteávamos de nós mesmos e dos outros adultos, incluso o nosso cônjuge. A presença dos filhos testa os limites e desvenda os contornos da nossa impaciência, da nossa preguiça, nossa incoerência, da nossa falta de empatia, de todos os nossos apegos – às nossas coisas, às nossas ideias bobas, à nossa autoimagem. E agora temos de alcançar o bonde, correr atrás do prejuízo, fazer pequenos “supletivos” emergenciais de virtude – estudar para ensinar, sem apelação possível. Assim vamos aprendendo com nossos filhos, que, com suas demandas, nos vão ensinando a ser pais – a ser gente, a ser melhores, a amar.

Ao mesmo tempo que os ensinamos a serem bons adultos, nós devemos olhar para os nossos filhos e aprender com eles como se deve brincar na vida, e estarmos sempre dispostos a brincar de novo

Isso sim, mas, na verdade, não era bem a isso que eu queria me referir.

Porque há muito mais, há algo muito mais sério e profundo que não só podemos, mas que talvez devamos aprender com nossos filhos.

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Jesus disse que nós precisamos nascer de novo; Nicodemos quis saber como poderia um homem velho tornar a entrar no ventre de sua mãe, ao que Jesus respondeu que precisamos renascer pela água e pelo Espírito. E Ele também disse, noutra ocasião, abençoando as crianças e tomando em seu colo um garotinho, que deveríamos ser como ele, para como elas receber o Reino dos Céus. Então quer dizer que, se nossos filhos miram-nos admirados porque querem ser grandes como nós, também nós podemos olhar para eles – é Deus quem manda – porque temos de nos tornar pequenos, porque temos de ser crianças.

Michel Quoist, padre francês do século 20, publicou uns belos Poemas para rezar (Livraria Duas Cidades, 1980), entre os quais “Gosto dos garotos”, que começa assim:

Gosto dos garotos, diz Deus. Quero ver toda gente parecer-se com eles.
Não gosto dos velhos, diz Deus, a não ser que ainda sejam garotos.
Por isso no meu Reino eu só quero garotos, desde sempre está decretado.
Garotos encurvados, garotos corcundas, garotos enrugados, garotos de barbas brancas, toda espécie de garotos que quiserem, mas garotos, só garotos.
Não se volta atrás, está decidido: para os outros não há lugar.

Como pode um velho tornar a entrar no ventre de sua mãe para que nasça de novo? Como seríamos garotos, ainda que velhos e enrugados? Como podemos nós, gente grande, tornarmo-nos como crianças, como o menino que o Senhor tomou no colo para que servisse de exemplo aos apóstolos – adultos, marmanjos barbados –, que se perguntavam quem entre eles seria o maior?

Não deve haver dúvida de que esse “ser como uma criança” acaso signifique abdicar de sermos crescidos, desfazermos a nossa educação e buscarmos reverter o nosso amadurecimento para tornarmo-nos novamente ignorantes e dependentes, descontrolados, caprichosos e birrentos – como nós, admitamos, ainda somos, e como nossos filhos serão se não cumprirmos nosso dever grave de os educarmos para serem bons adultos, gente grande de virtude, começando por dar-lhes o exemplo. O que nós devemos ser é uma criança nova, renascida, que é, ao que parece, muito curiosamente, o cume da maturidade. Devemos nos tornar um adulto que se renova, que se banha do cansaço na simplicidade que não envelhece, na pureza que a criança espelha sem saber, na sua sinceridade radical, tão reveladora.

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Gosto dos garotinhos, diz Deus, porque neles minha imagem ainda não foi empanada.
Não sabotaram minha semelhança, são novos, são puros, sem rasuras, sem borrões.
Assim, quando suavemente sobre eles me debruço, me reencontro.
Gosto dos garotos, porque estão crescendo ainda, ainda estão se elevando.
Estão a caminho, estão caminhando.
Mas a gente grande, diz Deus, já nada mais se pode tirar dela.
Não mais crescerá, não mais se elevará.
Parou.
É um desastre, diz Deus, a gente grande, sempre achando que já chegou ao final.

Só um adulto bem-formado pode tornar-se criança, ou, dito o mesmo de outro modo, a “criança” que deve permanecer em nós – e não podemos parar, achar que chegamos ao final de nosso aprendizado nesta vida – é o único espírito que pode sobreviver ao “mundo adulto”, ao mundo caduco, ao mundão, sem se corromper.

Ao mesmo tempo que os ensinamos a serem bons adultos, nós devemos olhar para os nossos filhos e aprender com eles como se deve brincar na vida, e estarmos sempre dispostos a brincar de novo. Ao vê-los tomar muito a sério aquilo que lhes cabe, sem, contudo, se perderem nessas coisas, devemos nos acautelar para, sendo diligentes, não endurecermos de tanta preocupação, nem nos perdermos em tanta rigidez... É necessária uma maleabilidade infantil, uma mansidão aos estímulos e às circunstâncias que nos abarcam: o bom-humor de entrar na brincadeira – muito a sério, mas sem levá-la tão a sério, que é como se faz para divertir-se –, lembrando que, quanto ao mais, a tudo o que eu temo e desconheço, um Pai amoroso cuida de nós.

Gosto dos garotos grandes porque ainda estão a lutar, porque ainda fazem pecados.
Não é porque os fazem, diz Deus, vocês me entendem, mas porque sabem que os fazem e o dizem e fazem força para não fazê-los mais.
Mas a gente grande, diz Deus, não gosto dela, nunca fez mal a ninguém, não acha nada a reprovar em si mesma.
Nada lhes posso perdoar, nada têm para ser perdoado.
É de cortar o coração, diz Deus – É doloroso, pois nada disto é verdade.

As crianças, cada dia que acordam para a vida, acordam sorrindo. Para elas, todos os dias são novos

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Devemos fazer nossa outra vez a inocência das crianças, aquela que as permite viverem tão livremente. Não a falsa inocência desses semideuses, que “nunca levaram porrada”, como dizia o poeta, que não acham nada a reprovar em si mesmos nem nada que lhes deva ser perdoado; indefectíveis, que se mostram fortes, bem resolvidos e bem-acabados para o mundo!, que mantêm seus defeitos sufocados no lar, e embaixo do tapete da alma, e que somente por respeitos humanos é que não sujam as mãos, presos ao juízo dos outros olhares igualmente sujos. As crianças ainda não se emaranharam nas teias do fingimento e das falsas aparências do mundo caduco; então erram, é evidente, sabem que erram, não gostam de errar, e se esforçam por acertar, simplesmente. Não lhes cabe fingir enquanto precisam aprender, e não gostam de se preocupar com o que os outros pensam. Temos de ser como crianças assim, santamente inconsequentes, preocupados apenas com o Deus que olha para nós através das estrelas – e ter o peito aberto para confessar nossos pecados, e para lutar.

Mas sobretudo, diz Deus, oh! sobretudo gosto dos garotos por causa do olhar que eles têm. É no olhar que leio a idade deles.
Em meu céu só haverá olhares de cinco anos, pois não conheço nada mais belo que um olhar puro de garoto.
Nada disto espanta, diz Deus, habito neles e sou eu quem me debruço à janela da aula deles.

As crianças, cada dia que acordam para a vida, acordam sorrindo. Para elas, todos os dias são novos, porque vão ver e se enamorar de muitas coisas antes desconhecidas, e buscar os detalhes que lhes tenham escapado das coisas já conhecidas. Têm medo do escuro, muitas vezes; mas acordam sorrindo porque amam a luz, que lhes revela todas as novidades do vasto mundo. É bom para elas que haja rotina e ordem, para que não se percam em tanta vastidão. A cada dia, essa rotina e essa ordem se aprimoram como uma forma em seu interior, ajudam-nas a organizar em seu mundo interior tudo o que entrou do mundo exterior. Mesmo os dias iguais não são, para elas, exatamente iguais. Não se detêm a preocupar-se com o que poderá haver de ruim ou difícil naquele dia, e pensam apenas no que virá de aventura, de vida e de cor.

Já para os adultos que não sabem ser como as crianças, os dias, ainda que variem um bocado, são ainda todos iguais. Já sabem como é a rotina e o cansaço, a política e o futebol, a comida e o cheque especial. Para eles todos os dias são velhos, todos já estão acabados mesmo que mal tenham começado, e a luz, que os desperta do descanso, pode ser que tenham chegado ao ponto de querer que se apague o quanto antes, para ali tornem a repousar... As crianças, com seus olhos brilhantes e arregalados, se espantam; espantam-se com o simples fato de as coisas serem, de serem como são, e não de outro modo, se espantam com cada coisa – com a maravilha da linguagem e de nos entendermos, espantam-se com a injustiça, com o desconcerto das relações. E correm, e choram, e gritam, e pulam de alegria, tudo num dia ordinário, mas um dia ordinário visto por dentro, pelo rio de maravilha que lhe corre abscôndito. Como seria bom ver de novo o mundo pelos olhos cintilantes das crianças!

Quando vocês se encontram na trajetória de um olhar, puro, sou eu quem lhes sorri através da matéria.
Mas ao contrário, diz Deus, não conheço nada de mais triste que dois olhos apagados numa carinha de garoto.
Abertas estão as janelas, mas a casa, vazia.
Restam dois buracos negros e sombrios, mas não há mais claridade, dois olhos, mas não há mais olhar.
E fico triste à porta, e sinto frio, e espero, e bato. Que vontade de entrar...
E o outro está sozinho: o garoto.
Engorda, fica rijo e seco, envelhece. Coitado do velho, diz Deus!

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Os meninos, quando brincam de luta ou de guerra, sabem levantar a bandeira branca tão logo alguém se fere. Mas os homens, os velhos – os velhos jovens e os velhos velhos –, estes não param uma guerra nem quando os mortos já se acumulam e já tiram sangue e lágrimas de cidades inteiras. Depois de um pouco de tempo, dissipam-se as raivas e inimizades das crianças, mesmo as das mais melancólicas; ao menos à noite, com o sono, que é para elas um bálsamo que descansa as almas, à noite dissipam-se nas crianças os pesares, como se o movimento das estrelas os levasse embora consigo. Entre os homens velhos, não. Entre estes a noite pode ser de insônia, de remordimento, palco para velhas paixões, vinganças esquecidas – porque não sabem mais brincar, porque não deixam mais as estrelas limparem esses tumores do seu coração.

Como pode um velho tornar a entrar no ventre de sua mãe, renascer? Como podemos nós, gente grande, tornarmo-nos de novo como crianças, como o menino que o Senhor tomou no colo?

Quando escreveu O Pequeno Príncipe, Saint-Exupéry quis dedicá-lo ao seu melhor amigo, Léon Werth, judeu que, à altura, estava na França ocupada pelos nazistas. Pediu perdão às crianças, e justificou-se: “Mesmo sendo gente grande, ele pode entender tudo, até livros para crianças. Toda a gente grande foi antes uma criança, embora poucos se lembrem dela. Então quero dedicar este livro à criança que ele já foi... e corrijo minha dedicatória: A Léon Werth, quando ele era criança”.

Sejamos adultos melhores ainda, adultos capazes de serem crianças, para que nossos filhos possam ter uma infância melhor ainda e, depois de adultos, tornarem-se novamente crianças

Fomos todos crianças, e podemos, fechando os olhos e nos recolhendo para a memória do coração, acessar novamente aquele que fomos e que somos – aquele mesmo que somos e que não podemos deixar de ser, muito embora possamos tê-lo esquecido. Fomos e somos desde sempre os mesmos, sem solução de continuidade. Quando tomou o menino no colo, não teria o Senhor, também Ele, se lembrado de seus dias de menino? Porque a Sabedoria Eterna que se encarnou não o fez já com barba longa e voz bem audível. Fez-se bem pequenino, e viveu, como homem, os dias misteriosos de sua meninice divina. Não podemos nós, então, aprender algo com nossos filhos? Não são os filhos a chance de nos renovarmos, de renascermos, a oportunidade que temos de, simultaneamente, amadurecermos e rejuvenescermos, lembrando-nos de nós mesmos ao olharmos para os seus olhos, ao vermos o mundo de novo pelos olhos deles?

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Talvez aquilo que eles, sem o mais mínimo traço de consciência, tenham para nos ensinar seja muito mais grave do que tudo o que nós, empenhados e dedicados, com gestos e palavras, queiramos lhes ensinar.

Sejamos para eles bons adultos, para que eles possam ter uma boa infância; sejamos para eles bons adultos, para que possamos fazê-los crescer como bons adultos; mas sejamos adultos melhores ainda, adultos capazes de serem crianças, para que eles possam ter uma infância melhor ainda e, depois de adultos, tornarem-se novamente crianças.

Aleluia! Aleluia! diz Deus, abram, velhinhos!
É o Deus de vocês, é o Eterno ressuscitado que vem ressuscitar o garoto que há dentro de vocês!
Vamos, depressa! chegou a hora, estou pronto para refazer-lhes um belo rosto de garoto, um lindo olhar de garoto...
Pois gosto dos garotos, diz Deus, e quero ver toda gente parecer-se com eles.

Ao fim, juntos, os pequenos e os velhos, seremos todos crianças a rodear o Senhor.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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