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Samia Marsili

Samia Marsili

Vícios capitais

O Rei do Universo e a Rainha dos Vícios

Obra "Vaidade" (1889), de Auguste Toulmouche. (Foto: Domínio público)

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Há poucos dias celebramos o Natal, e ora nos preparamos — os introvertidos talvez já um pouco cansados, os festeiros ainda sedentos por mais folia — para o Ano Novo que se aproxima.

É tempo, sem dúvida, de reflexão: não podemos deixar que a agitação dos festejos e o cintilar dos fogos nos impeçam de parar uns instantes para repassar a trajetória que vivemos, e sobretudo para preparar nossos propósitos e objetivos do próximo ano. Sem ter de antemão uns objetivos claros que nos norteiam, vai-se apenas aonde levar a maré. 

É curioso terem coincidido, por especial cuidado da providência, o último episódio desta série de meditações que venho fazendo, nesta coluna, sobre os vícios capitais e os modos de educarmos nossos filhos no cuidado para não serem deles vítimas, e a proximidade com o Natal. 

Esta é a festa da humildade por excelência, pois é quando fazemos memória de que, numa gruta escura e indigna, em Belém da Judeia, nasceu o rei dos reis, o rei do universo e Senhor de toda a criação. Foi quando Aquele que é o maior e o mais elevado fez-se o menor de todos e o mais rebaixado. 

Em contrapartida, falaremos hoje, ao fim desta série, do pecado da soberba, esta que é, por sua vez, considerada a rainha dos vícios, a reger os demais; ela é o oposto da humildade, é o vício na prática do qual nós cultuamos e buscamos elevar acima dos outros o nosso próprio ego.

Vejamos agora do que se trata, o que será bom para celebremos esses dois momentos tão importantes: para que, contrastadas a humildade máxima e quase louca do Deus do universo que se fez um bebezinho, e a soberba certamente louca de nós, malvados, que nos achamos bons, possamos refletir bem sobre nossas ações e nos impor bons propósitos de Ano Novo.

Ora, a soberba não é, como já anunciei, apenas o último vício que abordamos, mas também a origem de todos os outros, a raiz profunda que alimenta nossas falhas e desvios. 

Chamá-la de rainha de todos os vícios não é exagero: ela está presente em cada recanto inadvertido da nossa existência, permeando atitudes, pensamentos e escolhas. Ela se infiltra de forma quase imperceptível, mascarada por virtudes aparentes ou justificativas pessoais. 

Muitas vezes, ao perguntarmos a nós mesmos se somos soberbos, nossa resposta imediata é um “não”. Consideramo-nos humildes, justos e equilibrados. 

Contudo, ao observarmos atentamente nossas atitudes e pensamentos, percebemos traços de soberba escondidos até mesmo em ações que julgamos virtuosas

“Sereis como deuses”

A soberba nos faz acreditar que somos os donos da verdade, os detentores de uma sabedoria inquestionável. É a tentação primitiva que ressoa desde Adão e Eva: “Sereis como deuses”. É esse desejo de onisciência que nos faz querer controlar tudo — do futuro às decisões alheias. 

Queremos ter a certeza de que nossas escolhas são sempre as melhores, que nossa visão do mundo é a mais acurada e que nosso julgamento é infalível. Essa inclinação cria um circuito de adoração do próprio ego. Tornamo-nos o centro de nossas relações, colocando nossas vontades e percepções acima de tudo e de todos. 

No casamento, no trabalho, na convivência com filhos, amigos e até mesmo com Deus, somos guiados por um culto ao eu. As relações se tornam arenas onde a soberba grita: “Eu estou certo; eu sei mais; eu mereço mais”.

Esse comportamento é reforçado por uma porção de discursos contemporâneos que exaltam o individualismo: “Cuide de si antes de cuidar dos outros”, “Não permita que ninguém lhe passe a perna”. 

Esses mantras podem até conter elementos de verdade, mas quando colocados como absolutos, alimentam uma visão distorcida da vida, onde a prioridade somos sempre nós mesmos. 

A soberba se manifesta de forma insidiosa, principalmente na incapacidade de ouvir. 

Mesmo diante de pessoas mais experientes ou estudiosas, insistimos em nossos próprios argumentos, desprezando opiniões ou evidências que contradigam nossas certezas. 

Questionamos especialistas sem estudar, rejeitamos tradições sem compreendê-las e criticamos doutrinas sem conhecê-las. Essa recusa em aprender é um reflexo claro da soberba: um orgulho cego que nos impede de crescer

Esta é a base sobre a qual todos os outros vícios se constroem. Pensemos na gula, na luxúria ou na preguiça: em cada um deles, há um olhar voltado exclusivamente para si, uma busca por saciar desejos pessoais em detrimento do bem maior. 

A soberba é o solo fértil que alimenta essas inclinações, tornando-as mais difíceis de combater.

O desejo exorbitante de sobressair, de ser valorizado e estimado acima dos outros, é a essência da soberba. Isso explica por que ela resiste tanto à correção. Todas as vezes que agimos contra ela, sentimos um incômodo interno, como se estivéssemos nos violentando. 

A soberba nos seduz a acreditar que somos mais importantes, mais merecedores, mais certos — uma tentação que, se não reconhecida, nos escraviza

Soberba na infância

A soberba não surge repentinamente: ela nos acompanha desde os primeiros anos de vida. Na infância, a criança naturalmente percebe o mundo a partir de si mesma, num processo fisiológico e saudável de desenvolvimento. É quando ela descobre sua individualidade e começa a entender sua relação com o mundo ao redor. 

Contudo, nesse mesmo processo, a inclinação para a soberba já está presente, e cabe aos pais e educadores discernir entre o desenvolvimento natural da criança e a manifestação desse vício. 

Reconhecer a soberba na infância é desafiador, pois ela se mistura ao desejo legítimo de autonomia e descoberta. 

Porém, ao observarmos nossos próprios comportamentos e identificarmos a soberba em nós, conseguimos ajudar nossos filhos a enfrentá-la desde cedo. Mas o processo de educação para combater a soberba não se dá sem resistência.

A correção dói, tanto em crianças quanto em adultos. Quando somos confrontados com nossos erros, sentimos vergonha, desânimo, e até uma pontada de humilhação. Esse desconforto, porém, não é um castigo, mas uma oportunidade de crescimento.

No ambiente familiar, se a correção for envolta em carinho, estabilidade e atenção, ela se torna uma ferramenta poderosa para moldar o caráter, e não uma fonte de traumas

A prática de corrigir as crianças, mesmo que provoque lágrimas ou reclamações, é essencial para o seu desenvolvimento moral. Quando os filhos percebem que os pais estão agindo em prol do seu bem-estar e não para impor poder ou controle, o aprendizado se consolida de maneira saudável. 

No entanto, os pais também devem estar atentos aos próprios vícios. É inevitável que, em momentos de fraqueza, ajamos com soberba ou exageremos na correção. Reconhecer esses deslizes e pedir desculpas, quando necessário, é uma lição valiosa de humildade que os filhos podem observar e aprender. 

Ainda assim, é importante evitar o excesso de autocrítica diante das crianças. Pedir desculpas constantemente ou expor dúvidas sobre cada decisão pode gerar insegurança nos pequenos. Eles precisam de pais que, mesmo imperfeitos, demonstram firmeza em suas escolhas. Assim, o equilíbrio é essencial: corrigir quando necessário, pedir desculpas quando apropriado e, acima de tudo, cultivar um ambiente de confiança e amor.

Treinar o olhar para identificar a soberba, tanto em nós mesmos quanto nos nossos filhos, é um exercício constante. 

Muitas vezes, a soberba se manifesta de formas sutis, como o desejo de ocultar fraquezas por medo do julgamento alheio. Quando uma criança mente, por exemplo, pode ser mais do que uma simples tentativa de enganar. Pode ser um reflexo de sua dificuldade em lidar com o fracasso e com a vergonha de decepcionar os pais. Nesses momentos, a reação dos pais é crucial. 

Ao invés de apenas repreender, é necessário encorajar a honestidade, mostrando que errar faz parte da vida e que o amor dos pais não está condicionado à perfeição. Criar um ambiente onde as crianças se sintam seguras para compartilhar seus erros é essencial para combater a tendência de esconder falhas e alimentar a soberba.

Um dos dilemas comuns na educação é o papel do elogio. Será que elogiar os filhos pode alimentar a soberba? A resposta está no equilíbrio e na intenção por trás do elogio. 

Reforçar positivamente comportamentos adequados — como arrumar a cama, ouvir um irmão ou comer algo que não gosta por disciplina — ajuda a formar a consciência da criança.

Esses elogios não devem ser apenas uma recompensa externa, mas um estímulo para que a criança reconheça a alegria interna de agir bem. O objetivo do elogio não é criar uma dependência de aprovação, mas orientar os filhos a identificarem o valor intrínseco das boas ações. 

Quando a criança experimenta a satisfação de agir conforme a sua consciência, ela começa a desenvolver um senso de moralidade que vai além do desejo de agradar os pais. Essa construção de valores internos é essencial para que, no futuro, ela escolha o bem não por obrigação, mas por reconhecer sua beleza e verdade.

Em contrapartida, a soberba por vezes nos engana, fazendo-nos acreditar que tudo o que alcançamos é fruto exclusivo de nossas habilidades. Esquecemos de que muitas conquistas dependem de fatores externos, da colaboração de outros e, para quem tem fé, da graça divina. 

Essa percepção nos leva a uma postura de maior humildade e reconhecimento da interdependência que caracteriza a vida em sociedade. Educar os filhos para reconhecer essa realidade é um dos maiores presentes que podemos oferecer. Mostrá-los que a vida é uma combinação de esforços pessoais e circunstâncias externas ajuda a combater a ilusão do controle absoluto, tão típica da soberba.

Relacionamentos

Outro modo muito comum de a soberba insinuar é fazer-nos crer que a nossa maneira de fazer ou pensar é sempre a melhor. Quantas discussões não nascem dessa convicção! 

Muitas vezes, duas pessoas dizem essencialmente o mesmo, mas divergem na forma, e isso basta para prolongar uma disputa (aconteceu algo assim no seu Natal?). 

No contexto familiar, isso se traduz em pais que insistem em moldar os filhos segundo suas próprias ideias, mesmo quando existem outras abordagens igualmente válidas. Delegar responsabilidades, por exemplo, pode ser um exercício de humildade.

A dificuldade em abrir mão do controle frequentemente está ligada ao medo de que os outros façam melhor do que nós

Assim, nos agarramos a tarefas e decisões para proteger a imagem de competência que construímos. Mas o ato de delegar não apenas distribui as responsabilidades de forma mais justa, como também ensina aos filhos o valor da colaboração e da confiança mútua.

Outro aspecto da soberba é a hipersensibilidade. Pequenas ações, como uma roupa deixada fora do lugar ou um tom de voz impensado, podem se transformar em grandes ofensas quando vistas sob a lente do orgulho ferido. 

É comum projetarmos intenções maliciosas nos outros, especialmente em relações próximas, como entre cônjuges ou pais e filhos. Contudo, muitas vezes, essas ações são fruto de descuido ou hábito, e não de um desejo consciente de nos atingir. 

Aprender a relativizar essas situações é essencial para cultivar relações mais saudáveis. A humildade nos ajuda a enxergar além do nosso ego e a interpretar os comportamentos dos outros com mais generosidade e menos julgamento.

“Personalidade forte” e vitimismo

A teimosia — frequentemente confundida com pura determinação — é outra face da soberba. Quando nos recusamos a considerar o ponto de vista alheio ou insistimos em justificar nossos erros, estamos, na verdade, protegendo nosso orgulho. 

É mais fácil culpar as circunstâncias ou os outros do que admitir nossas falhas. No entanto, essa postura prejudica não apenas nossas relações, mas também o nosso crescimento pessoal. 

Por exemplo, em uma discussão conjugal, é comum cada parte expor os erros do outro enquanto minimiza os próprios. Essa falta de autocrítica perpetua conflitos e impede a construção de um diálogo sincero. 

A mesma dinâmica se repete na relação com os filhos, quando atribuímos a eles a culpa por nossa impaciência ou frustração.

A soberba também se manifesta na exigência de compreensão dos outros, enquanto somos pouco dispostos a oferecer o mesmo em troca. Muitas vezes, somos rápidos em julgar intenções e lentos em considerar as dificuldades que o outro enfrenta. 

Isso é especialmente evidente em disputas sobre quem trabalha mais, quem se sacrifica mais ou quem enfrenta os maiores desafios. A humildade nos convida a olhar além de nossas próprias dores e reconhecer o esforço do outro.

O cuidado exagerado com nossa imagem pública é mais uma armadilha da soberba. Seja na preocupação constante com o que os outros pensam ou na necessidade de exaltar nossas virtudes, estamos sempre buscando validação externa. 

Essa obsessão nos torna reféns de uma autoimagem idealizada, que nos impede de reconhecer e aceitar nossas falhas.

Impiedade e julgamento

Uma das expressões mais visíveis da soberba é a dificuldade de perdoar. Quando somos feridos, nossa tendência é nos colocar em um pedestal moral, acreditando que jamais cometeríamos o mesmo erro. 

A traição, por exemplo, é frequentemente citada como imperdoável. Contudo, se nos permitirmos uma reflexão mais profunda, talvez possamos reconhecer que somos tão falíveis quanto aqueles que nos ofenderam. 

O perdão não é um gesto de superioridade moral, mas de reconhecimento da fragilidade humana — tanto a do outro quanto a nossa. Quando admitimos que somos capazes de falhar, desenvolvemos empatia e compreensão. 

Essa atitude não diminui a gravidade do erro, mas nos liberta do peso do ressentimento e nos aproxima de uma convivência mais pacífica.

A soberba também se manifesta na forma de um espírito crítico exacerbado. Há uma tendência instintiva em observar e destacar os defeitos alheios, especialmente nas pessoas mais próximas. 

Quantas vezes não participamos de conversas em que o foco recai sobre as falhas de familiares ou amigos, em um exercício constante de julgamento e murmuração? Embora o espírito crítico seja necessário para discernir o certo do errado, ele deve ser guiado pelo amor e pela intenção de edificar. 

Falar mal de alguém, especialmente quando não há propósito construtivo, é como espalhar penas ao vento — impossível de recolher depois. A maledicência destrói reputações e fere laços de confiança, deixando cicatrizes que nem sempre podem ser curadas.

Outro reflexo da soberba é o uso frequente de ironias e brincadeiras de gosto duvidoso que diminuem o outro. Frases como “foi só uma piada” muitas vezes mascaram críticas e intenções de superioridade. 

Crianças, especialmente, reproduzem esse comportamento em interações com irmãos ou colegas, e cabe aos pais intervir, mostrando que o respeito deve prevalecer mesmo nas brincadeiras.

Desprezo ao próximo

A incapacidade de ouvir também é um sinal de soberba. Acreditar que o que temos a dizer é sempre mais importante ou interessante nos impede de valorizar as perspectivas alheias. 

Isso pode ser especialmente prejudicial às relações familiares, onde a escuta atenta é essencial para o entendimento e a harmonia. 

Ensinar os filhos a ouvir, a prestar atenção e a demonstrar interesse genuíno pelo que os outros têm a dizer é uma lição que se aprende pelo exemplo. Quando interrompemos, desconsideramos ou ignoramos o que os outros dizem, reforçamos a ideia de que apenas nossas opiniões importam.

A soberba também pode se esconder no modo como lidamos com nossos privilégios. Crianças que crescem em ambientes de conforto material podem desenvolver uma atitude de superioridade se não forem ensinadas a valorizar o que têm e a compartilhar com os outros. 

É fundamental que aprendam a ver seus privilégios como dádivas temporárias, e não como direitos inquestionáveis. Pais podem ajudar limitando excessos e incentivando a gratidão. 

Presentes, por exemplo, não precisam ser distribuídos a toda hora. Quando dados de forma equilibrada, eles ajudam a criança a valorizar o gesto e a evitar comparações desnecessárias com os irmãos ou amigos (será que aproveitamos bem a ocasião do Natal?).

Murmuração

Por fim, a soberba também se revela na insatisfação constante. Reclamar de circunstâncias que não atendem às nossas expectativas é uma forma de dizer que merecemos mais, que o mundo nos deve, que deveria girar ao nosso redor. 

Essa atitude é prejudicial tanto para quem a manifesta quanto para quem convive com ela, criando um ambiente de tensão e descontentamento. No contexto familiar, é importante ensinar às crianças que nem sempre terão suas preferências atendidas e que precisam aprender a se adaptar.

Um filme escolhido pelo irmão ou uma refeição que não é do seu agrado não devem ser motivo de descontentamento prolongado. A aceitação e a flexibilidade são virtudes que ajudam a equilibrar o ego e a construir relações mais saudáveis.

Na verdade, se a soberba é mesma a rainha dos vícios, é também sua mãe, sua fonte, como se fosse a perversão mais radical do ser humano, criado para doar-se; que foi feito para amar a Deus e amar ao próximo como a si mesmo — e não amar-se a si mesmo como a Deus. 

E por isso esta lista de consequências e desdobramentos não é exaustiva, e poderia continuar por páginas a fio.

A soberba, com suas inúmeras facetas, é uma presença constante em nossas vidas, e reconhecê-la em nós mesmos e nos nossos filhos é uma tarefa que exige atenção, paciência e humildade

Não se trata de eliminar completamente o vício, mas de enfraquecê-lo a cada dia, construindo uma base sólida de virtudes que sirva como escudo contra suas investidas. A soberba, em todas as suas manifestações, é um obstáculo ao amor verdadeiro, que exige abertura, compreensão e entrega. Reconhecê-la em nós mesmos é o primeiro passo para combatê-la e, assim, educar nossos filhos para um caminho de humildade e empatia.

Olhemos para trás, vejamos logo ali o pequenino de Belém, que era o dono do universo e, no entanto, por amor de nós fez-se humilde a ponto de não ter lugar na hospedaria. 

E então olhemos para a frente, para o Ano Novo que vai começar, e anotemos nossos propósitos: acaso quero ganhar o mundo e perder-me a mim mesmo?

Desejemos ser pequenos, humildes, para escândalo do mundo, e de nós mesmos, da nossa própria soberba. Desejemos, não ser como deuses, mas ser como Deus mesmo, que pequenino se fez.

Conteúdo editado por: Aline Menezes

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