Numa passagem muito famosa de seu livro mais famoso, o grande Santo Agostinho de Hipona expressa sua perplexidade com relação à natureza mesma do tempo, e se põe a refletir e a se perguntar em que exatamente consistiria essa realidade. Está lá no livro XI de suas Confissões, no número 17, e reza mais ou menos assim: “O que de fato é o tempo? Quem poderia explicá-lo de modo fácil e breve? Quem poderia captar o seu conceito, e então exprimi-lo em palavras? Contudo, que outro assunto é mais familiar e mais aparece em nossas conversas? Sem dúvida, nós o compreendemos quando falamos dele, e compreendemos também o que os outros dizem quando nos falam a seu respeito. Então, o que é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; porém, se tenho de explicá-lo a quem me pergunta, aí já não sei”.
O tempo é, para nós, como o chamava o grande estudioso do tema Julius Thomas Fraser, o “desconhecido familiar”. Embora lidemos com ele o tempo todo – acabo de cair na inescapável redundância, o que, ainda bem, só prova o meu ponto –, é difícil captar a sua essência, a essência do presente. Clarice Lispector também disse num romance que “queria captar o instante já, que de tão fugidio, já não é mais”.
Há, é claro, algumas intuições legadas por outros filósofos além de Agostinho, que nos ajudam, lançando alguma luz sobre esse impalpável onipresente. Aristóteles, sobretudo, explicou que o tempo não existe por si mesmo, como um transcurso ininterrupto, dentro do qual as coisas acontecem; não, ao contrário: são as coisas que acontecem, e o tempo é uma medida delas, é um “acidente”, isto é, o aspecto numérico de sua substância; em suma, o tempo é a medida do movimento. Platão, antes dele, dissera que o tempo é uma imitação ou uma imagem móvel da eternidade, e Louis Lavelle, o novo Platão, concluiu de tudo isso que o tempo é a condição mesma para que a gente exista, porque, se não houvesse movimento, isto é, um avanço, um caminho, que é a nossa vida, nós teríamos de ser Deus – e, bem, só Deus pode ser Deus; assim, ao dar o ser às criaturas, a distância entre Ele e elas é o tempo em que se moverão, para sempre, em direção a Ele.
De um modo ou de outro, teremos de prestar conta de cada um dos nossos minutos – para Deus, em última instância, mas para nós próprios, antes disso. E também prestaremos conta do tempo que tomamos dos outros, dos minutos roubados
Ao longo da história da cristandade, esse entendimento sempre moldou a vida dos fiéis; de todos eles, de algum modo, mas ainda mais especialmente nos tempos em que não havia a luz elétrica, e em que o movimento dos astros, o jogo entre a luz e a escuridão, regia diretamente o cotidiano, o trabalho e o descanso; mas, sobretudo, a vida dos religiosos, dos monges e monjas que, dentro das abadias, atendiam sete vezes ao dia ao chamado do sino, para rezar o ofício divino, isto é, cantar hinos e salmos que santificassem os vários momentos de seu dia, chamado também, por isso, de liturgia das horas.
O ser humano não é capaz de fazer nada abstrato, solto no nada, que não seja num determinado momento do tempo, e até mesmo quando vai transcender a medida do movimento dos astros, como quando relembra eventos passados, quando planeja o futuro, quando conta ou escreve uma narrativa que se repetirá a cada vez que for contada novamente, ou mesmo quando ora a Deus Eterno, tudo isso ele faz sempre no presente, num justo e exato presente. A nossa vida é, assim, como uma biografia composta por nós próprios: é uma história que nós mesmos contamos, escrevendo, sobre o papel do tempo presente que nos é dado, as nossas ações, mais ou menos coerentes com quem queremos ser, ao fim. É por isto, sem dúvida, que se chama presente, porque é como um tesouro que nos é confiado, para que o façamos render. É como o talento da parábola, que devemos administrar da melhor maneira possível, e fazê-lo render o máximo. E isso faz pensar que, de um modo ou de outro, teremos de prestar conta de cada um dos nossos minutos – para Deus, em última instância, mas para nós próprios, antes disso. Mas não só: também prestaremos conta do tempo que tomamos dos outros, dos minutos roubados.
Examine por uns instantes a qualidade da sua pontualidade, sua diligência em cumprir os horários, os prazos e os combinados. Os atrasos têm, todos sabem, muitas consequências imediatas sobre a nossa vida, como nos prejudicarmos no trabalho, ou de fato perdermos os eventos, e acabarmos pagando alguma multa, ocasionalmente. Mas, para além dos resultados imediatos, quase banais, de uma falta de pontualidade, ter presente o tamanho do mistério do tempo pode nos ajudar a meditar sobre as raízes desse defeito – e, por conseguinte, sobre a natureza da virtude correspondente.
Deixe passarem, pela sua mente, aqueles momentos-chave de sua rotina familiar em que um atraso, se cometido, geraria uma grande confusão para todos: se a pessoa responsável pelo café não acorda para prepará-lo; se um filho demora para se aprontar, e atrasa os pais que o levariam para a escola antes do trabalho; se alguém se demora no banho; se o responsável pela roupa deixa para passar as camisas correndo pela manhã; se o jantar não sai na hora, e quem tinha compromisso à noite acaba chegando atrasado, ou tendo de dormir mais tarde (o que pode atrasar o dia seguinte inteiro); ou qualquer pessoa que esteja fora de casa sendo esperada, e gera preocupação. Qualquer tarefa doméstica deixada para depois pode “estourar” num momento crítico, e gerar um dominó de atrasos. E não só nos dias de semana, em que há estudo e trabalho, mas nos fins de semana também, quando demoramos para acordar ou para nos aprontar para um evento que o outro valoriza muito, ou quando deixamos mofando aqueles que nos esperavam, e azedamos o encontro. Nem vou começar a enumerar os horários mais diretamente relacionados à rotina das crianças menores, como banho, refeições, mamadas, fraldas, tempo de leitura, hora de dormir...
O descuido com a pontualidade é, no mínimo, falta de caridade, mas, na maior parte das vezes, é uma falta de justiça para com o outro, pois não honramos com algo que lhes era devido. É uma espécie de egoísmo, pois só levamos em conta a nossa programação, o nosso cansaço, o nosso ritmo e as particularidades da nossa situação concreta, sem considerar que todo mundo tem uma situação concreta e que, nesses pontos em que há uma intersecção entre a nossa ação e a do outro, eles contam conosco para o próprio sucesso: a pontualidade deles depende da nossa. E isso quer dizer, muitas vezes, que algo além da pontualidade depende de nós: o sucesso efetivo em alguma tarefa, a tranquilidade para comparecer a algum compromisso, a demonstração de respeito para com um terceiro etc. Em última instância, está dependendo de nós o “rendimento” que a pessoa poderia dar ao seu tempo, e assim estamos, de algum modo, roubando o seu tempo, e como a nossa vida não acontece senão no tempo, estamos roubando-lhe vida – e também teremos de prestar contas por aquele tempo perdido, e por tudo que se deixou de ganhar com sua perda.
Além de tudo isso, há um outro aspecto que, embora eu ainda não o tenha mencionado, talvez já esteja habitando a sua imaginação: a irritação que envolve esses atrasos. Um pequeno atraso pode carregar todo o ambiente do lar de eletricidade, trazer os nervos à flor da pele, e basta uma faísca para que exploda toda uma série de conflitos, brigas, desentencimentos e acidentes que eram desncessários, que poderiam ter sido evitados. Quando nos atrasamos, colocamos à prova também a paciência das outras pessoas, e assim colocamos em risco não só um “baixo rendimento” de tempo, mas um provável “saldo negativo”, quero dizer, induziremos o outro em erro, desgastaremos as relações, e será uma pequena depredação do ambiente familiar. A questão, porém, tem outro lado: este, o da justiça, é o que devemos considerar com relação a nós mesmos; o outro, o da misericórdia, é o que temos de cultivar para com os outros. Se levarmos isso em conta, ninguém poderá de fato roubar o seu tempo, e vou explicar.
O descuido com a pontualidade é, no mínimo, falta de caridade, mas, na maior parte das vezes, é uma falta de justiça para com o outro, pois não honramos com algo que lhes era devido
É um fato que as pessoas se atrasam, não são perfeitas. Por mais que sejam esforçadas, diligentes, por mais que se prezem por ser primores de pontualidade, sempre haverá atrasos inevitáveis, e também haverá ainda muitos “atrasos evitáveis inevitáveis”, porque, podendo ser evitados, as pessoas, que são falhas, vão escorregar. Nós não devemos tentar assim a paciência do outro; mas o atraso do outro – do nosso marido, da esposa e mesmo dos filhos maiores – deve ser para nós, inversamente, ocasião de treinar a paciência.
Se nos controlarmos num momento desses, e conseguirmos resolver a situação com mansidão, sofrendo as consequências inescapáveis, e só depois colocando o problema com calma, para que o outro seja capaz de ouvir, comprender, e assim possa se corrigir na próxima oportunidade, estaremos fazendo um bem enorme para a nossa família, e um gesto muito meritório. Se nós aproveitarmos essas ocasiões para amar, o tesouro de nossos minutos não estará sendo roubado de verdade, mas estará, de uma maneira misteriosa e menos aparente, rendendo muito mais. O presente é sempre precioso quando se ama, no sucesso ou no fracasso de nossos planos avaros.
Ora, sempre se repete, e não é mentira, que a vida é curta. Mas quem se lembra de mencionar que, por outro lado, a vida é longa, e que somos nós que desperdiçamos muito tempo? A vida é curta, sim, mas quantas coisas não cabem numa vida humana, na vida de quem ama a cada instante? Nunca me esqueço de quando vi, certa vez, a propaganda de uma loja de colchões, que chamava a atenção dos clientes para a importância da qualidade do seu produto, porque, afinal, passamos um terço de nossa vida sobre o colchão, dormindo. De fato; mas quem está nos lembrando da qualidade que precisamos almejar para os outros dois terços do tempo? Por que no restante seria lícito jogar tempo fora, “matar o tempo”, deixar para depois, só desta vez?
Uma das piores coisas que podem nos acontecer é chegarmos a um determinado momento da vida e constatarmos que “o futuro passou”: contemplar quais eram nossos sonhos, nossos planos, nossos objetivos, e sobretudo quais eram os nossos deveres – principalmente com quem dependia de nós, como nossos filhos –, e ver que adiamos tudo fazendo outra coisa, nos esquivando com desculpas, nos lamentando das dificuldades, até que, enfim, o tempo passou e nada aconteceu. Há casos de pessoas para as quais realmente não há volta nem conserto, e estes são os mais difíceis de todos: carregam uma depressão e um amargor que quase nenhum terapeuta é capaz de curar.
Por isso é extremamente importante, para nós, pais, e, por meio de nós, para toda a nossa família, que assumamos uma postura responsável com relação ao tempo, que nós conquistemos uma maturidade – o que envolve constância e coerência –, prestando contas à nossa consciência sobre cada minuto do nosso dia. As dificuldades são muitas, é verdade; mas nós somos responsáveis pela perda de tempo, pelo adiamento da solução de muitos dos nossos problemas, por protelar aquilo que devemos mudar, por não estarmos dispostos a avançar em direção aos nossos ideais diariamente, pagando a parcela diária do seu preço final.
É uma visão um tanto equivocada acreditar que o nosso tempo só está “rendendo” quando está sediando produtividade, trabalho, riqueza
Isso não deve ser confundido com um excesso de exigência, de cobrança, um rigor quase matemático para com um cronograma estabelecido. Esta também não seria uma visão verdadeiramente responsável sobre o tempo, pois é um pensamento abstrato, que desconsidera tudo aquilo que está para além do nosso poder de ação, tudo aquilo que nos transcende e que não podemos prever. As 24 horas do relógio não são as 24 horas do dia, e sim o contrário, como Aristóteles não nos deixaria esquecer. O dia tem sol e tem chuva, tem vizinhos, cachorro, dor de cabeça, de barriga, tem carro que quebra, amigos que precisam de ajuda, e novidades de todo tipo.
Uma visão responsável sobre o nosso tempo também não coincide com um frenesi por encher o dia apenas com trabalho. É uma visão um tanto equivocada acreditar que o nosso tempo só está “rendendo” quando está sediando produtividade, trabalho, riqueza. É um abuso da metáfora: o tempo como um tesouro que rende abarca todas as realidades, todas as riquezas que a nossa vida deve cultivar, e o trabalho é apenas mais uma, e bastante relativa. O tempo de verdadeiro ócio, que é o tempo em família, o tempo de oração, o tempo em que se vai à igreja, ou se visita as pessoas, em que se conversa, ou em que simplesmente não se faz “nada”, numa talvez inesperada e profunda reflexão sobre a própria vida, não é tempo perdido. Um olhar atento é capaz de discernir que esse tempo não tem parentesco com aquele em que procrastinamos as tarefas, em que fazemos o serviço mal feito para ter de fazê-lo de novo depois, ou com aquelas vezes em que nos entregamos à preguiça, ou em que seduzimos nossa própria consciência com o pensamento de que o objetivo ainda está muito lá adiante, e que não há mal em, só por um dia, não fazer nada. Não; num lar, sempre há o que fazer: sempre há algo que o pai possa consertar ou pôr em ordem, ou que a mãe possa ajustar, ou limpar, ou conferir, e em que os filhos possam ajudar. E será nessas pequeninas coisas, nessas pequenas vitórias contra a preguiça que nós doaremos a nós próprios, ao doar um dos nossos minutos. Será nessas pequenas pontualidades, nesses pequenos esforços de diligência que nós, que somos pequenos, viveremos em nosso lar, do nosso tamanho, a coragem dos heróis. Como disse Santa Teresinha antes de morrer, “pegar um alfinete caído no chão, com amor, produz fruto de santidade”. Vamos nós, também, com todo o amor que pudermos, renunciar ao nosso egoísmo, e nos reclinarmos interiormente para apanhar cada um desses alfinetes, cada um desses minutos que nos são concedidos, e que contêm, dentro de si, toda a eternidade.
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