Em minha publicação mais recente, relembrei a parábola da mulher chinesa e, por meio dessa historieta, convidei à meditação sobre a finalidade da vida, sobre o seu objetivo último e principal que, como um ímã, deve atrair todas as nossas decisões ao longo do tempo, e deve orientar, inclusive, as nossas menores atitudes. Pois o caso é que nós frequentemente nos esquecemos dele; nós nos distraímos com os meios, nos quais nos engajamos para a consecução daquele fim, e acabamos perdendo de vista o próprio fim: acabamos nos encantando e nos entregando inteiramente a coisas cujo valor é relativo, e deixando escapar aquilo que tem valor absoluto – assim como o homem que se entregou inteiramente ao chinês e virou sinólogo, esquecido do seu primeiro amor.
Mencionei, por analogia, como esse mesmo desvio da atenção e da memória nos acontece no dia a dia com objetivos menores: enquanto estamos indo buscar algo em outro cômodo, ou quando nos dirigimos para fazer uma tarefa, somos convidados a prestar atenção em tantas outras demandas, em tantas outras coisas que vão nos consumindo tempo, até que, de repente, podemos nos pegar dizendo: “O que é mesmo que eu estava fazendo?” E já ficou para trás o que intentávamos fazer. Ou então, durante uma fala, durante uma conversa, os pormenores e apartes podem nos levar muito longe do objetivo daquele intercurso, até que o falante se pega franzindo a testa, inclinando o pescoço e dizendo: “Onde estávamos mesmo?” E não são poucas as vezes em que desistimos de retomar o ponto, e avançamos de onde estivermos, deixando tantas ideias inacabadas para trás.
E agora vem o principal: Que diremos, então, sobre quando estamos usando a internet, ou sobre todas as vezes em que pegamos o nosso celular para checar as mensagens? Ou quando entramos nas redes sociais?... Quantas vezes não paramos o que estamos fazendo para conferir o celular, e quantas dessas vezes simplesmente não desistimos ou arruinamos aquele objetivo? Quem é capaz, hoje em dia, de ler um capítulo inteiro de um livro sem parar para espiar o WhatsApp? Quem passa mais de uma hora sem fazê-lo? E quanto disso era realmente necessário, ou ao menos útil? E – digamos de uma vez – quem ainda percebe o quanto isso é monstruoso? Quanto do nosso tempo não escoa pela pequena tela digital – e em que medida temos ainda consciência e controle sobre isso? Considerar esse problema da atenção, que vem se agravando formidavelmente nos últimos anos, pari passu com a generalização do uso dessas tecnologias e ambientes digitais, nos oferece a possibilidade de considerar a questão da finalidade, e do “sentido da vida”, de uma perspectiva que torna tudo ainda mais grave, na verdade bastante alarmante.
Tenho em mãos um livro lançado recentemente no Brasil, Desligue o celular e ligue o seu cérebro. Vejo aqui como são abundantes os estudos que nos permitem afirmar que uma das principais consequências do uso da internet para o nosso cérebro é a erosão da capacidade de prestar atenção e de poder se concentrar por muito tempo. Quando estamos diante do computador, mesmo que para trabalhar, o fluxo de informações é tão acelerado que não podemos julgar nem aquilatar cada uma em tempo, antes que uma outra série tome o lugar da primeira, e o nosso foco se alterne, de lá para cá, como um elétron. Todas as mensagens, imagens e notificações que competem por nossa atenção constantemente forçam-nos a deslocar a atenção para múltiplos contextos e fontes de dados e, assim, a nossa capacidade de concentração, nossa capacidade de ignorar as distrações para manter o foco, vai sendo lacerada, anestesiada, destruída. Outros estudos mostram, ainda, como é falso que isso nos granjeie uma vantagem, a de sermos “multitarefa”: o que se oculta sob a aparência de uma capacidade não passa de um mecanismo viciado, de uma incapacidade – a de concentrar-se.
Quando se trata das redes sociais contemporâneas, então, o que com a internetem geral era um problema torna-se – segundo muitos creem, e com boas razões para isso – um programa intencional: as plataformas vêm competindo como numa corrida para ver qual algoritmo é capaz de tornar o usuário mais adicto, e assim mantê-lo mais tempo utilizando-a, vidrado diante da tela. E, para isso, as informações devem ser cada vez mais fragmentadas e o fluxo mais veloz, como uma droga que fosse sendo manipulada cada vez melhor. O Instagram, com suas fotos, substituiu o Facebook, onde as pessoas escreviam coisas; depois da ascensão do TikTok, o Instagram introduziu o reels, em 2020, além de ter feito atualizações que favoreceram esse recurso em detrimento das simples fotos; e o Snapchat e o YouTube não ficaram atrás, introduzindo, respectivamente, o spotlight e os shorts. Em 2021, o próprio TikTok admitiu que os vídeos que duravam mais de 60 segundos estavam causando estresse em 50% dos usuários da rede, por serem longos demais (!), e, assim, o algoritmo de 2022 logo passou a favorecer vídeos de duração menor... Esses algoritmos são projetados para colocar o nosso cérebro num expediente de busca incessante: a saturação de imagens, estímulos e informações ativa o fluxo de dopamina no córtex cerebral, e a presença desse fluxo, à semelhança de uma adicção química, exige reincidência, exige que satisfaçamos de novo e de novo essa descarga hormonal. Cada vez que olhamos o celular, essa necessidade é acalmada por um novo fluxo de dopamina, mas que apenas prepara o desejo de um próximo.
Assim, se antes falávamos do que nos acontece na correria do dia a dia, quando, no caminho de uma tarefa para outra, esquecemos do que estávamos fazendo, envolvidos por outras fainas igualmente reais, devemos agora falar francamente como têm sido os nossos últimos dias, os nossos últimos anos inteiros: quantas vezes acontece de começarmos a fazer algo e, de repente, a nossa atenção se desvia daquilo que fazíamos para o celular, esse pequeno ralo da atenção? Quantas vezes sentimos um pequeno incômodo interior, uma leve perturbação subconsciente, que leva nossa mão a escorregar para dentro do bolso e pegar o celular? Quantas e quantas vezes deixamos de atender alguém que falava conosco para continuar movendo freneticamente o polegar, subindo a timeline, não porque algo de fato nos interessa ou exige o nosso cuidado, mas somente porque não conseguimos parar, porque algo nos puxa, por não conseguirmos parar de “caçar”?
Nós criamos justificativas interiores, discursos para tapar a vergonha, e para convencermos a nós mesmos de que são somente alguns segundos, de que poderíamos optar por não olhar, de que pode ser que alguém tenha dito algo importante que não podemos perder etc. Mas a verdade é que estamos enlaçados por essa demanda, por esse vício, e nem sequer compreendemos bem como ou por quê. Poucos anos atrás, portávamos conosco um telefone móvel – o que, para quem comprava créditos de orelhão, já foi uma revolução espantosa –; tínhamos em nossa mão o aparelho celular, e então, de repente, num piscar de olhos, parece que é ele quem nos tomou para si, e quem nos tem cativos: o seu uso criou uma cultura comportamental, um novo modo de vida permeado pelo constante check, pela constante verificação, pelas rápidas e ansiosas inspeções para ver se temos novas mensagens, novas notificações, para ver se alguém subiu um novo story, se alguém está ao vivo, se está “acontecendo” alguma coisa que eu não posso perder. Não importa mais se, para isso, eu tenha de perder tudo o mais que esteja verdadeiramente acontecendo ao meu redor – e tenha, ademais, de perder a minha paz interior.
Muitas das situações que vivemos hoje seriam, e eram, consideradas, pouco tempo atrás, não só absurdas e irracionais, mas falta de educação e respeito. Tentem imaginar como seria dizer, dez anos atrás (eu não disse 20, nem 50, nem 100), que todos os integrantes de uma mesa de jantar teriam a cara enfiada numa telinha brilhando em sua mão, sem se falar, como se fossem desconhecidos? Que, no meio de uma conversa, alguém de fora começasse a falar outra coisa, e déssemos atenção imediata a essa pessoa – que é o que acontece quando se põe para tocar uma mensagem de áudio de outrem sem pedir licença? Que as pessoas fotografariam seus pratos de comida com mais cuidado do que terão para saboreá-los? Que um avô filmaria uns minutos do neto, e depois sentaria no canto do sofá para assistir às suas próprias filmagens, em vez de brincar com o pequeno? Que algumas pessoas veriam os últimos lances do futebol durante o culto religioso? Ou que, ao entrar uma noiva na igreja, todos a estariam filmando com seus celulares em vez de olhar para ela (se bobear, até o próprio noivo)? E o pior: que não se trataria só dos adultos, mas também de crianças?...
Então começa a delinear-se uma camada ainda mais séria e mais profunda do problema, que não concerne somente ao cérebro, mas à alma. O condicionamento hormonal e comportamental a que a internet e os algoritmos nos submetem é uma ladeira para outro condicionamento, para uma verdadeira tragédia existencial: enquanto estamos quimicamente viciados no frenesi das telas, estamos sendo exilados do mundo real, e aprisionados no mundo da ilusão. O que antes eram ferramentas de comunicação entre pessoas no mundo real já se tornaram passes para um outro mundo falso; as que se pretendiam redes de interação entre as pessoas tornaram-se o cenário para a criação de personagens falsos, de vidas falsas, que vivem de sugar a seiva e a energia da vida real, que definha lá fora.
Poucos anos atrás, seria patético explicar a diferença abissal entre uma pessoa real e um perfil digital, entre uma experiência de verdade e um registro adulterado. Contudo, para a “geração distraída”, que veio depois do celular, é difícil descolar as pessoas de seus “perfis”, e não julgar alguém pela imagem que a pessoa conseguiu criar de si mesma naquela linguagem; e é difícil sentir que se vive de verdade sem ter registrados publicamente todos os momentos – se não postam, é como se não estivesse acontecendo e, se não veem as postagens dos outros, estão desconectados deles, não os conhecem...
O que estávamos fazendo mesmo?
Quando nos perguntamos o que buscam, o que ganham essas empresas mantenedoras das plataformas que querem tornar o usuário mais adicto, e assim mantê-lo mais tempo vidrado diante da tela, a resposta mais fácil, e que tem sua parcela de verdade, é sem dúvida o dinheiro: mais tempo diante da tela quer dizer mais tempo diante de anúncios, e mais tempo fornecendo padrões e preferências que serão usados para novos anúncios, e para a criação de novos produtos... Sim, certamente existe nisso tudo “publicidade e propaganda”, existe o despertar de desejos e necessidades falsas para que as pessoas comprem coisas, e há muito dinheiro envolvido. Mas quem crer que é a isso que tudo se resume parece não ter ainda atinado para a profundidade do que estou descrevendo.
Mais do que um mercado, do que um shopping center virtual, no qual é bom manter os clientes o máximo de tempo possível, passando de vitrine em vitrine, o reino digital está, na verdade, sobrepondo-se integralmente ao mundo real. Os seus limites, os seus mecanismos, a sua linguagem, as suas formas de reagir e de sentir, o seu ritmo, toda a sua concepção está, por meio do mecanismo cerebral e da erosão da atenção, prendendo a nossa alma na sua mesma pequenez, sobrepondo-se à vida real. As pessoas estão, por assim dizer, se transformando em meros perfis – fantasmas de si mesmas –, vivendo uma timeline no lugar de uma vida, e “desfazendo amizades” por conta de um “comentário”, e em tudo “seguindo” os novos ídolos do esnobismo digital. Transformando-se os algoritmos e as interfaces, assim vai-se moldando o próprio rosto de uma geração inteira – uma geração depressiva e desesperada, de relações superficiais e descartáveis, de riso leviano e de rasas concepções, que não suporta uns poucos instantes de silêncio, de estar a sós consigo próprio, pois não se é ninguém! Fora das redes, por trás da máscara, não há ninguém. Todos os “perfis” são fake.
Ora, uma geração que não é capaz de guardar o celular para olhar para o outro que está diante conseguirá ver a necessidade de alguém que esteja ao lado, conseguirá amar o próximo? Conseguirá, a não ser por um milagre, fazer uma oração a Deus?... O fundamento do amor, por Deus e pelo próximo, não é outra coisa a não ser atenção, a atenção que não temos mais, que estilhaçou em milhares de pixels? E de que modo poderemos nos lembrar da finalidade da vida, e tê-la em vista enquanto avançamos pelos anos e pelas décadas, se não conseguimos mais cumprir uma hora com diligência? Como teremos uma memória, se não temos mais atenção? Quem seremos, se, distraídos, não estamos presentes no momento presente? O que era uma analogia revela, na verdade, ser uma dependência bastante direta.
Porque é composta de atenção, de certa maneira, a própria substância de uma pessoa. A pessoa é um vetor que sai de si para fora, é um alguém em busca de outro alguém, é um olhar, uma voz – como nos revelam as velhas palavras gregas e latinas, prósopon e persona –, e não é à toa que, de todas as partes do nosso corpo, a face seja aquela que por excelência simbolize quem nós somos. E a nossa história, substância da nossa vida, se compõe das escolhas que fizemos sobre onde colocar a nossa atenção, ou, em outras palavras, de como optamos por viver a nossa circunstância: ao que, nela, escolhemos nos ater. O mundo real, ao contrário do falso mundo digital, é vasto e é rico, é multifacetado e praticamente inesgotável, é um imenso jardim pedindo para ser contemplado e cultivado. A pessoa humana, diferente do perfil social, é também livre e aberta, em última instância imprevisível, e aliás tem defeitos e imperfeições, impossíveis de esconder, mas que devem fazer parte do seu caráter, melhor ou pior integrados, jamais dissimulados; a pessoa humana guarda em si muitos perfis possíveis, e a nossa luta deve ser por construir um caráter verdadeiro, e não uma máscara. E a nossa vida, para muito além de uma linha do tempo de fotografias com filtros coloridos e outros penduricalhos, é o verdadeiro correr do tempo, irrefreável e irreversível, e aquilo que entesouramos na memória não nos serve a não ser para compor aquilo em que, no momento presente, o único que possuímos, queremos enfim nos tornar.
Seria isso uma confissão de hipocrisia, ou uma fala estranhamente contraditória, sendo que utilizo em meu trabalho um perfil no Instagram, e uso a internet para partilhar meus conhecimentos? (este mesmo texto não será impresso, mas está sendo lido por você, sem dúvida, na tela do celular, do computador ou do tablet.) Não, certamente não. Todo o meu trabalho trata do mundo real, está voltado para o mundo real, e quer, justamente, convidar as pessoas a que não só vivam nele, mas o amem apaixonadamente. Amem-no em cada detalhe e em cada pormenor intranscendente do cotidiano pondo neles a nossa inteira atenção, e assim encantando-os de verdadeira riqueza espiritual. Mas onde estão as pessoas? Onde está todo mundo, a quem isso precisa ser dito? Para falar-lhes é preciso ir atrás delas, e por isso é preciso ingressar na internet e nas redes sociais – com um novelo de Ariadne, para chamar as pessoas para fora, e se possível guiá-las num plano de fuga, e dar-lhes boas-vindas ao mundo real. É preciso, parafraseando o Senhor, “estar nas redes sociais, mas não ser das redes sociais”. É preciso, sobretudo, usar os meios como meios, e servirmo-nos das ferramentas de comunicação para efetiva comunicação humana, e das redes para realmente nos conectarmos. É o que me proponho a fazer, e não sou a única: o “apostolado digital para o mundo real” tem seus missionários – pelos frutos os conhecereis.
Portanto, levantai-vos, vamo-nos daqui: precisamos voltar a habitar o mundo real, precisamos tomar de volta nas mãos o centro do nosso ser, a nossa atenção, para que, possuindo-a, e possuindo a nós mesmos, possamos direcioná-la aos outros, e só assim doarmo-nos. Não tratemos como coisa à toa essa nossa adicção nos eletrônicos, e os efeitos profundos que o seu uso pode causar em nós, alterando o nosso comportamento para um vagar de zumbi, cuja alma está em outro mundo, e deformando a nossa visão da vida para uma mentalidade digital, de perfis e seguidores. Tenha a coragem de vencer a rebentação, de sofrer a agonia da abstinência e fazer esse detox de dopamina, tão salutar. Tenha a coragem de enfrentar o silêncio, a solidão, de buscar-se a si mesmo, lá dentro, e de conviver com quem está, de verdade, ao seu redor. Volte a viver, livre dessas amarras invisíveis, a única verdadeira vida que você tem.
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