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“Guardai-vos de fazer as boas obras diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles, doutra sorte não tereis direito à recompensa...” – é como tem início o texto que se ouve dos púlpitos, nas igrejas, na Quarta-Feira de Cinzas, dia que abre o austero período da Quaresma. Neste tempo, marcado para intensificar as práticas espirituais e preparar os fiéis para a Semana Santa, que culmina na maior de todas as festas, a Páscoa da Ressurreição, são-nos prescritas as três principais obras de proveito: esmola, oração e jejum, e é delas que fala a página sagrada, na continuidade do que citei.
O Cristo ensina seus discípulos a não mandarem tocar uma trombeta ao seu lado enquanto dão uma esmola; a que não façam oração nas esquinas das praças ou em lugares onde sejam vistos por todos, mas no quarto, com a porta fechada, em segredo; e a que não façam jejum com cara de sofrência e inspirando pena, mas disfarçando o esforço, lavando o rosto, penteando o cabelo e passando perfume. Tudo isso, para que não façam como os hipócritas, pois estes, fazendo as coisas para se mostrar aos outros, recebem nisso a sua recompensa. Não recebem o ouro que seria o seu valor, mas apenas títulos de crédito em admiração, honra mundana e vaidade; nada lucram de espiritual.
Após a leitura, todos os presentes recebem, em cima de suas cabeças ou na testa, uma marca feita de cinzas, de pó, enquanto ecoa em seus ouvidos o lembrete: Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris, isto é: “Lembra-te homem, que és pó, e pó tornarás a ser”, fazendo memória daquilo que Deus teria dito ao pai de todo o gênero humano. Têm início, assim os quarenta dias.
Em todas as coisas que fazemos, inclusive as muito boas – como podem ser os exercícios quaresmais, de jejum, esmola e oração –, importa muitíssimo a nossa intenção
Essa marca de quarenta dias se repete muitas e muitas vezes na Bíblia, tantas que não fica difícil compreender o seu sentido, sempre relacionado ao arrependimento e à expiação, ao retiro e à provação, a uma renovação que passa pelo pó, como o de uma fênix. Quarenta dias ficaram Noé e a família na arca, quando as águas lavavam o mundo; quarenta dias ficou Moisés no alto da montanha, até que recebesse as tábulas com a lei; os israelitas tiveram de suportar a audácia de Golias a desafiá-los por quarenta dias, até que Davi o pusesse por terra; e Elias, o grande profeta, foi sustentado quarenta dias no deserto pelo alimento que recebera do anjo. Era o tempo de purificação da mãe que havia dado à luz, depois do qual o menino Jesus, como todos os meninos judeus, foi apresentado no templo. E foi também, muito especialmente, o tempo pelo qual o mesmo Cristo jejuou no deserto, para vencer as tentações do demônio e só então dar início ao seu ministério. E por isso nós o repetimos ritualmente todos os anos, cumprindo esse período de jejum do alimento corporal, em benefício do alimento espiritual; é o período, como ainda se diz no Oriente cristão, do “Grande Jejum”.
Toda a Quaresma pode ser resumida, então, de algum modo, nesse seu símbolo de abertura, com os qual os fiéis são marcados às suas portas, para que ingressem numa longa caminhada de transformação: cinza. Somos todos lembrados de que somos pó, e em pó nos converteremos novamente. Ninguém foi melhor que o Padre Antônio Vieira – jesuíta nascido em Portugal e enterrado no Brasil, na “cidade da Bahia” – na explicação desse dito. No seu famoso sermão de Quarta-Feira de Cinzas, o grande pregador destrincha o sentido da frase, explicando como pode o homem ser pó, no presente, e depois voltar a ser o que já é: a poeira de que somos feitos é levantada pelo sopro da vida, e rodopia no ar por uma hora ou duas, enquanto se agita a ventania, para depois deitar novamente no chão. Estava inerte, ganhou vida, e voltou a repousar, mas em nenhum momento deixou de ser pó. Ele manda que olhemos para os túmulos dos falecidos – o pó cobrindo o pó –, e que vejamos o que se fez dos reis poderosos, dos ricos magnatas, das lindas mulheres, de todos que se agitaram e se afligiram em busca de tanta coisa, se preocuparam, se irritaram, se gabaram e se invejaram, e agora... pó. Mas não deixa de relembrar, também, o misterioso inverso da morte, e, voltando-se então para os próprios mortos, diz a frase ao contrário: “Lembra-te, pó, de que és homem, e em homem te hás de reverter”. Há uma vida prometida para além desta morte. E, assim, em vez de vivermos esta vida como se ela fosse eterna, e a outra como se não existisse, recomenda Vieira que vivamos esta vida como se fôssemos morrer, para morrermos como se então fôssemos para sempre viver, como fruto e recompensa da vida que tivermos levado.
É por isso que no centro da Quaresma está o jejum: ele marca, de maneira inequívoca e inescapável, o contraste entre o pó e a vida, entre o que morrerá e o que permanecerá vivo; ele realça o que não é pó, e que por isso sobreviverá ao pó. Quando dizemos não à solicitação mais básica e necessária do corpo, o alimento, sublinhamos, com a ação da vontade, que não somos o nosso corpo, que somos mais do que ele; que é ele quem serve à nossa vida, a qual não virará pó com ele. Ao lado do jejum estão, como já dissemos, a esmola e a oração, que confluem no mesmo sentido. Quando tomamos do bolso o que é nosso – o que é para nosso sustento, ou para o nosso sucesso, ou para nossa segurança, ou para o nosso conforto, o que for – e damos àquele que pede ou que precisa mais, esta ação material e concreta faz com que morra, de antemão, um pouquinho de nós, um pouquinho do que somos neste mundo. Esse gesto faz contrastar o homem do pó.
E a oração, então, o que é a não ser consagrar nosso tempo e nosso pensamento, a nossa atenção e por vezes a nossa voz, a um mundo que não é este, e que não é feito de pó? O tempo que seria gasto com vistas ao nosso sucesso e bem-estar nesta vida, trabalhando ou folgando, ou aliviando nosso corpo com o sono, é então destinado a uma ação cujos efeitos estão em outro plano – o plano das almas, o que transcende o tempo, o que transcende o pó. E o nosso próprio corpo, de pé ou de joelhos no chão, trabalha e se gasta sem recompensa para si, sem recompensa biológica, mas em função de outra vida. E se devemos levar tudo isso sempre em conta, todos os dias de nossa vida até o último – quando será? –, também é verdade que este tempo de cinzas, tempo de deserto, é um tempo forte, tempo especialmente favorável para marcar esse contraste, e para lembrar que somos pó, e ao pó haveremos de voltar. No deserto não há nada que nos confunda: tudo ali é pó, exceto uma coisa, que é a vida. O contraste ajuda a clarear as vistas, ajuda a distinguirmos bem as ilusões – que são tentações, que nos tentam a crermos que aquilo que agarramos com as mãos, nesta vida, é durável, e que não vai, num piscar de olhos, virar pó.
Bem. Mas atenção, porém.
Como já tivemos oportunidade de mencionar outras vezes, em todas as coisas que fazemos, inclusive as muito boas – como podem ser os exercícios quaresmais, de jejum, esmola e oração –, importa muitíssimo a nossa intenção. Pervertida a intenção, podemos desperdiçar duros esforços e até mesmo dolorosos sacrifícios; grandes gestos de entrega e de dedicação, todos perdidos, por terem sido trocados, num lance de enganação, num escambo que nos ludibria, por recompensa de pouco valor. E a recompensa preciosa, que essas ações em si mesmas valiam, não nos é dado receber: “não tereis direito à recompensa...”. Não à toa o Mestre nos deu aqueles conselhos, e não à toa eles nos são lembrados na leitura de abertura da Quaresma, logo antes de nos serem impostas as cinzas. Quer dizer que, além das ilusões e vícios comuns da vida, há ainda uma armadilha em que toda a nossa força pode ser roubada por uma só fraqueza, de modo que qualidades objetivas sejam convertidas em males subjetivos: trata-se do amor-próprio, da vaidade. Que devemos pensar sobre isso?
Fazer um jejum, ou então cumprir uma promessa, relacionada a uma abstinência ou a qualquer outra coisa, para que os outros vejam e nos julguem muito bons, ou fazer preces em público, falando alto, orando de um modo um tanto escandaloso, certamente desvirtua de algum modo essas obras, como disse o próprio Jesus. Mas estes são exageros grosseiros, que de cara geram desconforto em muita gente. Não é todo mundo que se engana com um santarrão, de modo que alguns deixam de receber inclusive a recompensa da vaidade. Assim como aquele que “faz caridade” para todos verem, estourando rojões, tirando fotos e ao vivo na televisão: causa estranheza a muita gente, que já tem bem fixado na memória o “não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita”. Entretanto, há manifestações mais sutis desse problema, que remontam embora à mesma raiz, e que podem já estar misturadas ao comum dos nossos dias. Não ser visto, não ser elogiado, aplaudido, não ser comentado nem curtido, nem sequer reconhecido em várias ações corriqueiras ou cotidianas, mais ou menos difíceis, causa em muita gente um acesso de horror.
Algo em nós ama o espetáculo de nossas próprias ações, e reduz nossas melhores motivações a uma fantasia narcisista
Quem não conhece alguém que fala tudo o que faz? Que precisa contar, reclamando ou se fazendo de coitado, que acordou à noite para cuidar do bebê ou do filho doente, que preparou a comida e que deu muito trabalho, que bateu toda a roupa ou que limpou toda a casa, ou que lembrou de você, e por isso tratou de tal ou qual detalhe importante, e você nem viu? Alguém que, para ficar em paz, precisa que os outros saibam e reconheçam o que ela tiver feito de bom, seja isso muito bom ou apenas medíocre, irrisoriamente bom? Alguém que brada, em qualquer oportunidade, o cumprimento das próprias obrigações e deveres, que valoriza sua rotina com lamúrias, com a divulgação de toda a sua agenda e do quanto ela é corrida? Não é difícil perceber qual recompensa essas pessoas buscam, e qual o alimento de que necessitam para se sentir pacificadas (ao passo que, às vezes, há gente que faz e padece tanto mais, mas tanto mais, em sofrimentos e dificuldades, e passa calado por onde vai, como murmurando o seu segredo...).
Há também os que, para serem vistos e admirados, hoje em dia mais do que nunca antes na história do universo, publicam tudo o que fazem por meio das postagens das redes sociais, dos fugazes retratos de si mesmos, filtrados pelos matizes da autoimagem, que lançam ao mundo como desesperados pedidos de socorro, implorando: “Diga que eu sou bom e bonito, por favor, dê-me alguma dignidade. Por favor, diga que eu tenho uma vida, que eu sou alguém!” Porque sem ouvirem, de volta do mundo, o eco de sua própria voz, sem que confirmem que aquilo que viveram é real, algumas pessoas já não conseguem sentir, tocar, garantir a realidade da própria vida, e, deixadas a si próprias, desesperam e sentem sua dignidade evanescer. Em troca, passam também horas olhando e olhando, e clicando nos pequenos sinais que dão aos outros dependentes as mesmas viciantes recompensas.
Ao que tudo indica, e considerando as recomendações do Cristo, essa questão é muito mais antiga que o Instagram. Há em nós, há na natureza humana, uma característica intrínseca e sutil, que é uma variação na intenção e que, aos olhares desatentos, pode bem passar despercebida, e, afora os casos grosseiros, pode fazer com que vão se perdendo, imperceptivelmente, todas as pequenas “recompensas” de tudo aquilo que fazemos. Algo em nós ama o espetáculo de nossas próprias ações, e reduz nossas melhores motivações a uma fantasia narcisista. Na passagem, Jesus diz três vezes que não se deve fazer como os “hipócritas”, os que fingem ser aquilo que não são por dentro. Curioso é que a palavra, que está ali no evangelho em grego, υποκριτής (ypokrités), não muito tempo antes, na Grécia, era usada para se referir, sem ofensas, aos atores de teatro, aos que de fato fingiam ser outro, a fim de representarem seu papel — aqueles que agiam em cena para serem vistos por todos.
A professora americana Zena Hitz, em livrinho muito valioso, explica que esses fenômenos têm sua raiz no que os antigos, especialmente Agostinho, chamavam de curiositas, que é muito mais do que expressa nossa palavra “curiosidade” em português. Trata-se de uma “concupiscência dos olhos”, uma doença da atenção, que está sempre voltada para o exterior – o próprio, e o dos outros. É a atenção exilada na superficialidade. Segundo ela, o “amor pelo espetáculo” pode incluir o desejo de saber da vida alheia, mas também o de curtir o sofrimento de tristezas imaginárias; de ver coisas bizarras e tétricas, como aberrações de circo e mutilações, gente que se arrisca em perigos vãos e quaisquer outras esquisitices. E a internet é, obviamente, uma verdadeira fossa para o amor pelo espetáculo. “O amor pelo espetáculo chafurda na novidade e na negatividade; ele prefere a emoção da notícia chocante e o horror da revelação do que a silenciosa e verdadeira emenda. Da mesma forma, o desejo de ver o espetáculo está de alguma forma ligado ao desejo de se tornar parte dele; somos levados a nos exibir como vemos outros se exibirem. Assim, gastamos horas nos mostrando, como tantos outros entediados, inquietos, solitários e viciados em escândalo”, diz Hitz. Passamos a viver num mercadão de impressões: observamos os outros e falamos deles, e fazemos tudo como se estivéssemos sendo vistos – e, quando não estamos, filmamos e fotografamos com nossos celulares, ou divulgamos aquelas experiências como pudermos, para que os outros saibam, para que falem delas.
Mas há ainda, segundo a mesma autora, uma outra modalidade de amor ao espetáculo, e que a mim me parece ainda mais sutil, e talvez por isso ainda mais perigosa e corrosiva para as nossas almas e para a vida de nossas famílias. Trata-se de uma busca pela “experiência ou pela sensação em si”, algo como se nós próprios fôssemos espetáculo para nós mesmos. Gostamos de “nos ver fazendo” as coisas, para erigirmos, para nós próprios e nosso próprio conforto, uma bela autoimagem. É algo aceitável nas crianças, que se encantam ao verem-se conseguindo subir ou pular tal distância “sozinhos” pela primeira vez, e é também aceitável nos adolescentes, que, incertos sobre quem são e sobre quem querem ser, testam seus próprios limites e contemplam seus próprios feitos em busca de respostas. Mas não é aceitável que, após essas idades, as pessoas adultas se mantenham nessas camadas superficiais de sua personalidade. Deve importar, logo em seguida, a qualidade objetiva das nossas ações, o que dispensa a opinião dos outros e a autocomplacência.
É algo como uma mania de controle: eu é que tenho de fazer meu próprio café, não porque o meu seja melhor, mas porque eu me encanto com minhas próprias ações e com minhas maneiras próprias de fazer as coisas, só porque são minhas. Não importa, no caso, se o meu café é efetivamente melhor que o dos outros. E nessa toada também se fará um tal jejum, uma tal oração, tais e tais obras de caridade e de piedade e as mais bondosas ações, não pelo bem efetivo, e nem olhando e considerando o outro, o próximo, beneficiado pela minha boa ação, mas porque “é algo que eu preciso fazer, pois assim eu me sinto bem, me sinto realizado. É uma experiência que eu quero ter”. A pessoa coleciona as experiências que quer ter, e que a fazem se sentir bem aos seus próprios olhos, quando não aos dos outros, e jamais vem a importar o que o outro realmente precisava. Quantas caridades são feitas pelos verdadeiros mendigos! É impossível, na dinâmica do espetáculo – para os outros ou para si mesmo, tanto faz, pois ambos ocorrem no mesmo terreno: exterior e superficial –, enxergar de verdade o outro, e amá-lo. O amor verdadeiro não tem plateia. Pode ter companhia, união, conexão, sim; não plateia.
Deveríamos fazer, junto com o jejum do alimento, um jejum de relatar as nossas ações, de reclamar o reconhecimento, um jejum de aparecer, de sermos notados, considerados
Se não estou interpretando mal o texto que ouvimos na Quarta-Feira de Cinzas, acredito que haja uma penitência muito valiosa, e que, por estar na base mesma das três recomendações quaresmais (jejum, esmola, oração), segundo o próprio Cristo, seja inclusive anterior a elas, e a quaisquer outras mortificações. Seria uma mortificação da vaidade, da fome de espetáculo. Deveríamos fazer, junto com o jejum do alimento, um jejum de relatar as nossas ações, de reclamar o reconhecimento, um jejum de aparecer, de sermos notados, considerados; um jejum até de nos desculparmos, de explicarmos os pormenores de por que erramos nisto ou naquilo. Calar somente, e aceitar o que vier, cumprindo nossos deveres. Imagino que cumprir os nossos rasos deveres sem que ninguém nos premie valha mais do que fazer grandes obras sendo elogiado, pois que, no primeiro caso, haverá alguma recompensa espiritual, ao passo que no segundo, “não tereis direito à recompensa”, a nenhuma recompensa, pois que já a recebemos em ouro de tolo.
Esse experimento, no começo, aos desacostumados parecerá certamente uma solidão, um vazio, um desespero, como o do estômago que grita pelo pão. Parecerá que estamos num deserto, sem ninguém, e teremos de resistir à tentação de nos mostrar, para nos sentirmos existentes. Mas logo – muito logo, eu garanto –, abrir-se-á para nós uma porta insuspeitada, “a porta do teu quarto”, onde está “teu Pai que vê em segredo”. É quase um outro verso da vida que se abre então para nós, e que não é deserto; é preenchido por essa presença que verdadeiramente nos vê e verdadeiramente nos aprecia, não com os olhos do espetáculo, mas com um olhar muito amoroso, que, este sim, nos confere a nossa dignidade – a nós, e não ao pó, que está lá fora. Abrir-se-á então a porta para o que se chama de vida interior. E aí, nesse íntimo aposento, o Pai Nosso que vê em segredo nos dará, para cada uma de nossas pequenas ações, a sua verdadeira recompensa.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos