Que coisa curiosa acontece quando nos casamos e mudamos para a casa da gente. A louça é posta na pia, e lá fica; não se lava sozinha! Também não se enxuga, nem vai sozinha para o armário. Não vem, de repente, aquele cheiro alentador desde dentro da cozinha. E a roupa, que fica lá, no cesto, e nem ensaia de ir sozinha para a máquina, e dali para o varal, e para baixo do ferro, e de lá para o guarda-roupa. E mesmo que fosse, não ficaria tão boa, tão cheirosa e tão bem dobrada como fazia nossa mãe. Sem falar na mesa posta, a sala arrumada, e tudo, não só em ordem, mas numa ordem mágica, até com flores em cima da mesa da copa...
Não adianta. As coisas, nessa nova casa recém-fundada, não funcionam magicamente como pareciam funcionar na casa dos nossos pais. A quantidade, a complexidade, o peso das tarefas domésticas são o flagelo de muita gente, especialmente esposas, e motivo de muita reclamação, frustração e até de desespero, em muitos casamentos. É muito grande o contraste entre a vida doméstica real, com suas demandas, suas exigências, que parecem nos sacudir de lá para cá, e a vida que tínhamos imaginado: aquele nosso sonho de um casamento harmonioso, com as nossas coisas e tudo do nosso jeito, aquela maravilhosa vida em família, felizes para sempre com nosso amor, crianças lindas, e todos dando alegremente o seu melhor — como num comercial de margarina, ou, melhor ainda, num retrato de família, desses lindos que nós víamos nas revistas, e hoje vemos nas redes sociais.
E não são apenas as tarefas domésticas em si. Pode ser que nós e nossos maridos ou esposas ainda não nos conhecêssemos tão no detalhe, na lide do cotidiano, tendo de dividir o mesmo espaço — mesma cama, mesmo armário e mesmo banheiro... — e de repartir tantas tarefas. Além de todo esse funcionamento da casa ser complexo, boa parte do seu sucesso depende de um outro, e muitas coisas serão feitas do jeito de outra pessoa, que nós não poderíamos prever que fosse exatamente este ou aquele, e nessa adaptação pode haver inúmeros conflitos, decepções, desconfortos e medos.
É muito grande o contraste entre a vida doméstica real, com suas demandas, suas exigências, que parecem nos sacudir de lá para cá, e a vida que tínhamos imaginado
E tudo isso antes de notarmos que, naquele nosso sonho de uma vida a dois, talvez imaginássemos filhos, sim, fofos, mas não os considerávamos de verdade, concretamente — nem às três da manhã, nem doentes, nem fazendo uma birra, nem mordendo o irmão, enfim, junto com a tempestade de demandas que eles trazem consigo, por cima das demandas normais que a casa para dois já exigia.
E não adiantam as inúmeras comodidades que temos à disposição hoje em dia. Diferentemente dos nossos pais, nós temos eletrodomésticos que fazem tudo, fraldas descartáveis, e o iFood. E também não adianta ter dinheiro suficiente para contratar uma funcionária, porque continua sendo nossa responsabilidade orientá-la, e dizer como as coisas devem ser ali na nossa casa, e, mesmo assim, não fica do mesmo jeito. Tudo isso pode ajudar, sem dúvida, e trazer algum alívio físico; mas ainda não vemos a paz, o aconchego nas coisas do modo como nossa mãe fazia.
Como é que ela fazia isso? Ou como é que as outras pessoas, nas outras famílias como nós, conseguem fazer tudo isso? Como é que todo mundo dá conta da casa e dos filhos, e, além de sobreviver, consegue pensar em outra coisa? Como não são, também, soterrados pela quantidade de trabalho, e continuam vendo beleza nessa vida, tendo gratidão a Deus e alimentando sonhos; em suma, como é que alguém vive assim e consegue... ser feliz?
Se este não é exatamente o seu caso, e mesmo assim você leu até aqui, talvez seja o caso de alguém que você conhece. Porque não é algo relativo, é um fato: a complexidade do funcionamento de uma casa é algo difícil de transmitir, por mais que nossas mães, avós ou alguém tenha tentado nos preparar, ou que nós já tenhamos morado sozinhos e aprendido algumas coisas. A casa de uma família é um grande empreendimento. É justo se questionar: Como é possível ser feliz numa vida que é assim pesada? Como se articulam todas essas necessidades, que podem estar nos aterrando, e aquele sonho, aquele amor que nós tínhamos preparado para a nossa família? Por acaso tudo aquilo era uma ilusão? É sempre de mentira aquele retrato de família?
Eu creio que, para compreender isso, para decifrar essa conjuntura, a chave seja uma espécie de segredo, uma mudança invisível, mas muito concreta e profunda, na nossa visão sobre as coisas. Creio que o segredo esteja na nossa ideia de felicidade; e essa nova ideia, por sua vez, deve nos levar a compreender a diferença que existe entre uma casa, ou mesmo uma empresa, e um lar. Melhor dizendo: pode nos ajudar a enxergar, numa casa, a possibilidade de fundar um lar.
Uma tal mudança de perspectiva, de critério, embora possa parecer muito pequena, pode aliviar muito o peso de várias tarefas, e mais que isso, pode fazer com que a gente consiga ver vantagem em todo esse esforço, com que nós consigamos enxergar o seu ganho, os seus benefícios, as suas alegrias. Não se irrite comigo! Deixe-me tentar explicar...
Como não são, também, soterrados pela quantidade de trabalho, e continuam vendo beleza nessa vida, tendo gratidão a Deus e alimentando sonhos; em suma, como é que alguém vive assim e consegue... ser feliz?
Tente se lembrar daquela casa em que você via a vida pulsar, e em que experimentava o amor. Se não for a casa dos seus pais, que seja a dos avós, tios, de quem quer que seja, mesmo que só tenha estado lá uma vez. Repare que aquilo de que nos lembramos não é bem do rigor da limpeza, da qualidade dos móveis, ou do preço das coisas. Está mais para o que se costuma chamar de “memórias afetivas”, um sentimento profundo, carregado de sentido, que está ligado a um cheiro, a uma peça de louça, ou a um móvel simples sobre o qual nos empoleirávamos. Era naquele cômodo que nos sentíamos seguros, ou era acolá que trocávamos confidências com um primo, ou lá atrás que tínhamos medo de ir, mas íamos. Foi naquela varanda, ou naquela cadeira, ou dividindo aquele doce que tinha para o lanche. Fica gravada em nós a mesa cheia, em tal horário ou em tais festas, mais que a mesa em si. São detalhes que, tão logo lembrados, nos fazem respirar diferente, abrasam o nosso coração.
Mais que a estrutura material da casa em si, da ordem, da limpeza, da comida, da qualidade da mobília e do conforto que tudo proporcione — ou não —, o que importa mais, e que vai permanecer na nossa memória, é o espaço interior. O espaço exterior, e todas as coisas exteriores de uma família, guardam a possibilidade de simbolizar o espaço interior dessas pessoas, pois, mais que as coisas, os membros de uma família compartilham o seu significado, e assim podem servir-se delas para se interconectarem, para se amarem, enfim. É por isso que, por mais que passemos por dificuldades, pela pobreza, ou que nos falte isso ou aquilo, ou que tenhamos pouco espaço, coisas pouco confortáveis e de pouca qualidade, o valor do lar não se define primeiramente pela parte material, mas pelo laço espiritual que vai ligar essas coisas.
E é assim que uma rotina — que, vista de fora, da perspectiva puramente material, é pesada e difícil — passa a ser ocasião de uma comunhão interior, de uma verdadeira vida familiar. É assim que a vida em família se torna um caminho certo para a felicidade. Porque a felicidade não é, como somos tantas vezes levados a crer, algo circunstancial, que se possa alcançar de uma vez para sempre, e pronto; algo que chega e fica, como ficam parados os rostos lá, no retrato da família feliz. A felicidade não é algo que esteja fora de nós. Não é uma condição estável e tranquila, ao contrário: a felicidade, nesta vida, é um gastar-se e doar-se; é o sacrifício de uma parte visível por algo que é invisível, e que não se restringe ao tempo, mas fica guardado numa poupança da eternidade.
Repare que aquilo de que nos lembramos não é bem do rigor da limpeza, da qualidade dos móveis, ou do preço das coisas. Está mais para o que se costuma chamar de “memórias afetivas”, um sentimento profundo, carregado de sentido, que está ligado a um cheiro, a uma peça de louça, ou a um móvel simples sobre o qual nos empoleirávamos
A família é uma escola de buscar a felicidade. Mas que não está ali, estática, na circunstância familiar perfeita — nos lençóis enfim dobrados, na pia vazia, a despensa cheia —, e sim através dela, no serviço a essas pessoas, no gastar-se por elas, que é o que vai de fato nos satisfazer interiormente. Nós podemos tentar encontrar a beleza até nos defeitos dos outros membros da família, e amá-los em todas as suas dificuldades; podemos nos encantar com a descoberta dessas individualidades, que estão aí para nos completar. Ou seja, amando o outro inteiro como ele é, mas não de maneira fixa, sorrindo na foto, e sim acompanhando-o no tempo, e é essa a autêntica fidelidade. Para que isso aconteça devemos sempre, em tudo no lar, em cada momento fugaz, desejar primeiro a felicidade do outro.
Gosto de imaginar essa busca pela felicidade como quando estamos numa piscina, e ali, não muito longe de nós, está uma boia. É como se essa boia fosse a nossa felicidade: se nós formos direto em direção a ela, o nosso próprio movimento de aproximação vai empurrá-la para mais adiante, e ela vai estar sempre escapando, por pouco, das nossas mãos. Mas, se nós mergulharmos fundo e nadarmos por baixo, aí sim conseguiremos alcançá-la, desde dentro. Do mesmo modo na vida familiar e na vida do lar: se nós estivermos buscando a felicidade nas coisas mesmas, isto é, uma falsa felicidade, composta de prazeres fáceis e confortos, não vai dar certo, ela nunca vai chegar, e além do mais a família não é o melhor lugar para isso. (A família não é mesmo um bom lugar para quem quer continuar sendo egoísta...) Mas, se queremos ser felizes de verdade, a vida doméstica, a vida de um lar é maravilhosa, porque, mergulhando nela, podemos nos mover silenciosamente, em cada gesto de abnegação, de entrega, de cuidado, na profundeza da vida.
É nos entregando de boa vontade a tudo aquilo que, materialmente, será desfeito em instantes — a mesa posta, que logo vai ser toda bagunçada e suja e se transformará numa louça para lavar, e na louça lavada que logo será usada novamente, e nas camas, e em tudo isso que, aos olhos do tempo, parece não valer a pena —, é nos entregando a cada uma dessas tarefas por amor às pessoas, e não às próprias coisas, que nós vamos empreender uma grande transmutação, como na antiga alquimia, e transformar o chumbo das tarefas domésticas no ouro de uma família feliz. Nós vamos fazer como os poetas, que com palavras comuns formam um som incrível e inesperado, e assim traduzem uma experiência penetrante e verdades transcendentes, porque o que vale não são as palavras em si, mas o espírito que as uniu.
E o retrato de família, ele não é falso, não. É que, sendo limitado, ele não pode, coitado, captar a situação. Ele fixa um momento, sim, sob o seu flash, e nós, para acessar sua verdade, temos, uma vez mais, de nele mergulhar. Veja, sim, os trajes, os cabelos penteados, e a pose diligente; ou então o sorriso debochado, a descontração, como o neném parece fácil, e como o fotógrafo foi feliz...! Mas olhe fundo nos olhos, veja com atenção. Como não foi difícil bater esse retrato! Sair de casa, preparar, impedir de estragar; e preparar de novo, ajeitar — vai assim mesmo, não dá mais tempo. E um belisca, o outro chora, o pequeno golfa, e o outro pisca. Aquele se virou, o cabelo desfez, sujou a camisa. Mas se não é justamente nessa busca, nessa instável e sempre renovada união de todos por tirar a foto que consiste a felicidade da família... Como no verso de Drummond: “A moldura deste retrato / em vão prende suas personagens. / Estão ali voluntariamente, / saberiam — se preciso — voar”. Esse “negativo” da nossa felicidade nenhum olho consegue ver, nem nada deste mundo é capaz de “revelar”, mas é essa busca profunda e incansável que registra a nossa família feliz, verdadeiramente feliz, para sempre na eternidade.
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