“As divisões do tempo estão arranjadas de forma que tenhamos um susto ou choque (...). O objetivo do Ano-Novo não é que tenhamos um novo ano, mas que tenhamos uma nova alma. (...) Se não fizesse resoluções de Ano-Novo, o homem não faria resolução nenhuma. Se não recomeçar as coisas do início, com certeza não fará nada efetivo (...). Se não nascer de novo, não entrará no Reino dos Céus”. Assim diz Chesterton. E de fato é verdade que as proximidades do mistério do Natal e o início da contagem de um novo ano nos oferecem ocasião de meditar inúmeras questões, das mais simples às mais complexas, mas, sobretudo, de sintetizarmos muito do que já tenhamos meditado e, numa visão de conjunto, contemplarmos, num lance de vista, algo da verdade da nossa vida.
Há poucas coisas tão salutares para os seres humanos como uma retrospectiva, uma anamnese, esse esforço de recompor, da maneira mais viva e completa possível, tudo aquilo que vivemos, para que, trazidas até a consciência, nossas frágeis memórias sejam revitalizadas, revivificadas e, assim, de algum modo, revividas. É aí que conseguimos compreendê-las, compreender os nossos próximos e também julgar a nós próprios, as nossas ações, e nos conhecermos a nós mesmos. Isto porque a nossa vida não é senão uma biografia, uma história que nós mesmos contamos, escrita com ações no papel do tempo. Claro que não existem só as nossas ações, mas juntamente as ações que vêm de fora e que nós sofremos. “La vida es lo que hacemos y lo que nos pasa”, dizia o filósofo espanhol: Nossa vida é aquilo que fazemos, e tudo o que acontece conosco também. E, sendo assim, na nossa retrospectiva, nesse exame de consciência anual que as festas nos convidam a fazer, cabe pensar não somente naquilo que fizemos por nossa conta, mas no modo como reagimos àquilo que nos aconteceu, e de que maneira lidamos com os reveses da vida.
Tanto em uma coisa como na outra, podemos pensar: Em que medida fui fiel aos propósitos que eu havia feito — seja um ano atrás, seja nalgum ponto ao longo desse ano? Fui fiel aos meus valores, àqueles que escolhi como primeiros e mais valiosos, e os defendi na pequena guerra do dia-a-dia? Certamente não todas as vezes, e nem sempre na mesma medida; mas agora é o momento de tentar enxergar por quê, de investigar nossas tendências, de identificar nossas forças e nossas fraquezas, de perdoar os que nos fizeram mal e de nos perdoarmos, para que possamos nos livrar de remorsos inúteis, que só nos prendem mais ainda ao erro que queremos abandonar. E, sobretudo, de renovar aqueles propósitos — não com a ansiedade de uma rolha de champagne, com a fugacidade dos fogos de artifício ou com o automatismo das ondinhas do mar, que logo se desfazem. Mas com a raiz profunda, o peso e a seriedade necessárias, bebendo, quem sabe, de um mistério mais sério do que um simples marco na contagem do tempo — como é o mistério do Natal.
Há poucas coisas tão salutares para os seres humanos como uma retrospectiva, uma anamnese, esse esforço de recompor, da maneira mais viva e completa possível, tudo aquilo que vivemos
Vejam, não é preciso ter fé para ser beneficiado pelo mistério do Natal. Ele vale para todos, pois mesmo quem não crê na sua verdade, objetiva e concreta, acaba tendo a vida moldada por este símbolo primordial, que impõe sua força soberana em cada um dos nossos modestos lares. Mesmo os que não crêem que Deus tenha se feito homem, e nascido pobre no meio de nós, são submergidos pela verdade ineludível de que o espírito, de que a imaginação da espécie humana concebeu essa possibilidade, e que muitos a adoram e vivem por ela, e que essa louca imaginação, esse sonho das eras, enche as nossas ruas de luzes e as casas de alegria.
O grande drama do Natal é, para a nossa vida, especialmente a nossa vida em família, um grande farol, uma luz que pode guiar a nossa compreensão, como o foi para os magos a estrela de Belém — e digo drama porque ele não é um presépio estático, mas sim, como queremos que a nossa vida também seja, uma vitória da alegria sobre a aflição. Este mistério começa pelo fato de que o próprio Deus quis para si uma família. Não apenas criou o homem e a mulher como uma família, como é narrado no Gênesis, mas quis uma para si na sua Encarnação: nasceu da Virgem e escolheu José por legítimo pai perante os homens. Além disso, Deus se fez bebê, se fez menino, recebeu de seus pais educação, adolesceu e cresceu e, para salvar o homem — leia-se, o homem e a mulher —, passou por todos os estágios da vida humana até à maturidade. E assim cada passo e cada aprendizado dos nossos filhos ganhou um valor espiritual, adquiriu uma relevância eterna, pois foram vestidos por dentro, foram preenchidos, e neste ato redimidos, pelo Cristo.
E nós, como pais, revivemos o mesmo papel de seus pais, e essa nossa trajetória ganhou, também, a mesma dignidade e o mesmo valor. E se nós nos afligimos, erramos e, por vezes, “os perdemos”, também José e Maria, embora tão santos e escolhidos por Deus, se afligiram em busca de um lugar na cidade e não o encontraram, e o receberam no mundo na mais rude pobreza; e também fugiram com ele, mais que preocupados, agoniados, para longe das espadas assassinas de Herodes; e o perderam de fato, naquela caravana de Jerusalém, para só o reencontrarem no terceiro dia. Nesta última ocasião, da boca do próprio Menino, ouviram “por que me buscáveis? Não sabíeis...?”, o que pode ecoar em nós, quando pensamos sobre a nossa família, nossos filhos e nossas dores: por que nos desesperamos?... Por que nos afligimos com tantas coisas? Será que não sabemos que quem cuida de tudo é o Pai?
Este mistério começa pelo fato de que o próprio Deus quis para si uma família. Não apenas criou o homem e a mulher como uma família, como é narrado no Gênesis, mas quis uma para si na sua Encarnação
É sob essa luz, viva e cálida, como na noite azul de Belém, sob a luz do mistério singelo da natividade de Jesus que devemos examinar nossa conduta e depurar nossos valores e propósitos, seja para mudá-los radicalmente, seja para reafirmá-los ou aprofundá-los ainda mais. Mesmo as coisas mais concretas que há em nossa família e no cuidado dos nossos filhos — tarefas domésticas como a limpeza disso ou daquilo, e o horário das refeições, do sono e toda a rotina, os maus costumes — de intimidade, convivência, de uso de eletrônicos ou respeito entre irmãos —, e os bons hábitos, de ordem, de leitura, de diálogo —, nada disso é bobo, ou prático demais, ou concreto demais para ser repensado numa retrospectiva de Natal, não. Nada é mais concreto do que o Natal, em cujo cenário há um burro e um asno, e pastores cheirando a ovelha, e palha, e ouro. É no Natal que vemos revelar-se a nós, mesmo na noite mais escura em que esteja a nossa vida, o valor eterno de embalar nos braços um delicado bebê.
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