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“Todas as crianças crescem, menos uma.” Assim começa o clássico inesquecível de J. M. Barrie – num dos inícios de livro mais sintéticos e bem-sucedidos já escritos, diga-se de passagem. Tal frase, entretanto, conjugada na primeira pessoa, cabe bem, e até com gosto, na boca de muita gente grande ao nosso redor, que com isso pretende afetar autenticidade, e louvar uma sacrossanta loucura, inimiga da caretice obtusa: “Todas as crianças crescem, menos... eu!” Tanto que, a bem da verdade, podemos dizer que a nossa geração ecoa uma estranha, uma terrível corruptela dessa frase: “Nenhuma criança cresce, com raras exceções”. E, mais que por uma vivaz originalidade, o nosso tempo é marcado, com efeito, pela imaturidade.
A imaturidade se define, muito resumidamente, por uma espécie de fixação, ou de paralisação do sujeito numa determinada época da vida, de modo a retardar o desenvolvimento normal de sua personalidade. É como se houvesse uma trava interior que, por assim dizer, neutralizasse o trabalho do tempo que passa, e as experiências que vão acontecendo no decorrer dos anos não fossem absorvidas, processadas, sedimentando o seu conhecimento, e assim passasse a haver um descompasso de vida, um desconcerto entre a idade cronológica e a idade psicológica.
Diz-se que uma fruta está madura, e portanto pronta para ser colhida e comida, exatamente quando está no tempo certo, quando já se desenvolveu até o ponto mais alto de sua perfeição possível, isto é, quando já sintetizou todo o seu passado num presente, e tornou-se a fruta que deveria ser. Se não for colhida neste tempo, porém, vai passar, vai iniciar seu declínio, e não se aproveitará ao máximo o que ela tinha a oferecer. Vale o mesmo para vinhos e queijos. É tudo questão de timing, e cada idade deve ornar com uma qualidade.
A criança bem pequena, quando quer obter o que deseja, é levada espontaneamente a chorar, gritar, bater o pé, jogar-se no chão e fazer que engasga. O adulto infantilizado buscará soluções análogas para suas dificuldades
O mesmo há de valer para a personalidade humana. A cada idade cronológica, que se expressa num grau de perfeição biológica, de maturidade corporal, corresponde uma maturidade psicológica, ou vital – com a interessante diferença de que a maturidade vital do ser humano não começa a declinar com a do corpo, mas alça voo para zonas ainda mais excelentes quando este deixa seu ápice para decair.
Cada circunstância, cada situação dramática, cada tipo de problema referente a cada idade pede que a pessoa encontre soluções compatíveis. Um adulto infantil, porém, continuará a procurar soluções infantis para seus problemas adultos, e ficará muito desajustado. Assim também um velho que ainda queira ser jovem tentará solucionar os problemas de sua idade com arremedos de bravata e rebeldia, e o constrangedor desalinho sempre impedirá que os conflitos sejam efetivamente solucionados.
A criança bem pequena, quando quer obter o que deseja, é levada espontaneamente a chorar, gritar, bater o pé, jogar-se no chão e fazer que engasga. O adulto infantilizado buscará soluções análogas para suas dificuldades: terá explosões, reagirá às dificuldades de relacionamento e de trabalho como se fossem ofensas pessoais, tentará mostrar que está magoado, esperando que lhe deem atenção e, se não derem, ficará emburrado e ressentido.
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E o adolescente, que busca definir a sua identidade descolando-se dos pais ou das referências de autoridade, arriscando-se em fúteis perigos para sentir que pode tudo, que se entrega e não tem medo de perder-se? Do mesmo modo o imaturo que emperrou sua personalidade nessa camada continuará a fazer papel de ridículo e deslocado, a tentar aparecer e talvez ser engraçado a qualquer custo, dando ideias absurdas com ar de seriedade, conseguindo com isso apenas atrair olhares compassivos... O descompasso é o núcleo da imaturidade.
E é o orgulho o que dá liga, o que fixa esse descompasso, que cimenta dentro de nós esse impedimento de crescer. Por isso é tão difícil ouvir que somos imaturos, e tão difícil assumir isto. Na verdade, assumi-lo seria o primeiro passo imprescindível para superá-lo, pois seria um primeiro gesto de humildade. E o que falta ao imaturo, porque falta à mentalidade infantil e adolescente, é justamente a humildade, que se reflete em objetividade, e em seguida em prudência. Ora, as características da imaturidade são justamente o subjetivismo, a idolatria das próprias emoções, o egoísmo e o hedonismo. E, num segundo momento, que vem para defender o primeiro, estão o relativismo moral, o imediatismo e o materialismo entorpecedor, a frivolidade perpétua. A pessoa imatura é individualista, impulsiva, emocionalmente instável, irracional, desequilibrada, impaciente, irresponsável, com pouca empatia verdadeira.
Reparem que não é estranho notar essas características nas crianças, pois elas são coerentes com seu grau principiante de desenvolvimento humano. Nós sabemos que ainda é tempo de elas aprenderem essas coisas. Mas no jovem crescido, no adulto, nos senhores e nos velhos, essas características adquirem um aspecto repulsivo e aterrorizante. A dissonância entre o esperado e o efetivo chega a enfastiar. O que se espera deles – digo, de nós – é maturidade: firmeza interior, serenidade adquirida, harmonização dos sentimentos com os pensamentos, ou mesmo submissão das emoções às resoluções elegidas; senso de proporções, conhecimento sóbrio das dificuldades humanas, que se sedimentou da experiência, abertura para o outro, e mais, capacidade de se responsabilizar pelo outro, de cuidar do outro, além de si próprio – coroa singular da maturidade.
Os pais desta nossa geração não mandam seus filhos fazerem nada, têm receio de lhes dar ordens, de lhes fazer pedidos, de lhes botar para ajudar. Não lhes dão pequenas responsabilidades, que seriam pequenos degraus de maturidade
E se ao ler essas listas nós nos identificamos, muito infelizmente, mais com o retrato do imaturo que com o da pessoa madura – felizmente reconhecemos nos identificar, é já o primeiro passo –, imagine o que será das crianças educadas pela nossa geração, ou deseducadas, para melhor dizer, fadadas à imaturidade, aprisionadas à sua condição de criança, como enviadas para a Terra do Nunca de Peter Pan.
A “educação” que uma boa parte dos pais oferece hoje aos seus filhos não tem uma consistência positiva, não consiste de um plano educativo esclarecido e coerente, e não passa de uma educação da “contenção de danos”: manter a criança quieta, calada, entretida; ou então ocupada, em alguma agitação cerceada, extravasando energia para ficar cansada e dormir à noite – entretida, de outro modo. Essas crianças são treinadas, rigorosamente, para fortalecer a cada dia suas características de imaturidade. São acostumadas a se guiar pelo prazer e pelos estímulos sensoriais – visuais, tácteis, gustativos, pela contínua música dispersiva, pelas bolas coloridas que pingam e explodem na televisão indesligável, que é um ininterrupto anestésico sonoro para o ambiente, um protetor vigilante contra o silêncio. Tudo é para elas, tudo é feito pensando nelas, sempre postas no centro, e protegidas – do frio, do calor, do tédio, da frustração, da menor contrariedade.
Essa geração de crianças quase não ouve “não” de seus pais, o que seria uma experiência concreta e sintética do limite, um exercício diminuto de diferenciação entre o meramente gostoso e o realmente bom: uma hierarquização de valores no caso concreto. Os pais desta nossa geração não mandam seus filhos fazerem nada, têm receio de lhes dar ordens, de lhes fazer pedidos, de lhes botar para ajudar. Não lhes dão pequenas responsabilidades, que seriam pequenos degraus de maturidade, pois que os faria exercitarem-se paulatinamente em fazer coisas para os outros (observando, no revés, quantas coisas são feitas por eles, pelas quais deveriam ser gratos). Eles têm, apenas, o direito inalienável de se divertir, e nenhum dever a cumprir. Se encontram dificuldade nos deveres de casa, num esporte ou no aprendizado de um instrumento, devem mesmo é abandonar, e são aplaudidos por nada.
Pois é exatamente isso que os adultos, que são também imaturos, crianças grandes, de barba ou salto alto, lhes ensinam às vezes literalmente: “Aproveite enquanto pode, e divirta-se ao máximo, antes que você cresça e venham os problemas”. A vida adulta, com responsabilidades, é ruim, é sinônimo de problemas, dizem a ela. E quem vai querer crescer com uma perspectiva dessas? Assim se planta, no maquinismo interior da personalidade, aquela ferragem que trava o funcionamento, uma tranca que manterá intacta a criança egoísta, querendo apenas se sentir bem e se divertir, enquanto cresce o resto do corpo e vêm os chatos papéis sociais. Por que assumir compromisso com alguém, casar-se? Por que ter filhos? Por que se responsabilizar pelo cuidado de um outro, que demanda tanto (aqui entram, além dos filhos que não terão, os pais idosos)? Melhor é ter um emprego fácil, ganhar bem, viajar bastante, ir a boas baladas, se embriagar e usar drogas, ter amigos convenientes, conseguir sexo fácil e inconsequente, morar sozinho. É a vida moderna! O que há com os jovens de hoje em dia? Por que será que não querem aquelas coisas que dissemos que eram horríveis e sem sentido, e cujo valor não lhes mostramos?
Como foram sempre servidos e tratados como o centro do mundo, é a isso que estão acostumados, e é isso que continuarão sempre a buscar. E se não admiram nem são devotados aos seus velhos pais, é porque ninguém admira servos bajuladores. Reparem que os Meninos Perdidos, da Terra do Nunca, também não se lembram de seus pais. Tudo o que fazem aqueles pequenos selvagens é buscar “pensamentos felizes”, e voar. Essas crianças só têm mesmo como sair da infância ainda imaturas, e tornarem-se adolescentes imaturos, presas fáceis para qualquer discurso manipulador.
Não sabendo nem um pouco o que é a vida, e não crendo tampouco que seus pais o saibam, não conseguem perceber as incoerências entre discurso e vida: compreendendo o significado das palavras, acreditam terem compreendido as coisas mesmas, uma vez que nunca travaram contato com elas. Assim são domadas pelos pares, e a influência do grupo pode arrastá-las para ermos sombrios – para muito além das drogas: para o aborto, o suicídio.
Temos de ajudar nossos filhos a trocar as impressões vagas por um genuíno apreço pela objetividade, e a ansiedade de atender aos próprios desejos pelo esforço perseverante, que ao fim premia com a conquista de riquezas mais perenes
Toda essa deseducação mantém as crianças sufocadas numa infantilidade prolongada, que é uma passividade prolongada. Não lhes são fornecidos os recursos para crescer, para ir aos poucos saindo de si mesmas para fora, que é o sentido mais primário de educação. E isso faz com que se sintam mais e mais ansiosas, pois não se tornaram capazes de nada, não têm confiança em si mesmas porque de fato não sabem fazer nada sozinhas, não são responsáveis por nada, não devem nada a ninguém. São crianças criadas para serem crianças, e por isso crianças se mantêm, cristalizadas; ao passo que, na verdade, a infância deveria ser uma passagem, uma etapa dentro da trajetória da vida: devemos criar as crianças para que sejam capazes de se fazer adultas. Isso não quer dizer tratar as crianças como se fossem pequenos adultos, mas sim tratar as crianças como se elas tivessem um futuro, que é ser um adulto maduro – íntegro, de caráter, aberto para os outros, centrado nos outros mais do que em si.
Ter em vista esse ideal, esse alvo no porvir, fará com que cada uma das nossas ações no dia a dia com elas seja direcionada, orientada pelo seu sentido. Cada gesto pequeno será um degrau, adequado à medida, na escalada da maturidade, na busca por melhor possuir-se para ser capaz de doar-se. Isso não se faz de outro modo a não ser ajudando os nossos filhos a trocarem as compensações imediatas dos prazeres e do egoísmo por outras compensações, interiores, por prazeres de outra ordem – as delícias de amar de verdade, que no início são sutis, e carecem de atenção para serem notadas. Temos de ajudá-los a trocar as impressões vagas por um genuíno apreço pela objetividade, e a ansiedade de atender aos próprios desejos pelo esforço perseverante, que ao fim premia com a conquista de riquezas mais perenes. Isso se dá, num primeiro momento, estabelecendo para eles bons hábitos, especialmente de sono, alimentação, higiene e ordem, criando trilhas firmes que eles possam percorrer. Seremos para eles uma vontade auxiliar, até que essa faculdade brote neles, para que então possamos ajudá-los a treiná-la, dando-lhes desafios e responsabilidades progressivamente maiores, conformes ao seu desenvolvimento, ao seu amadurecimento, e colhendo os frutos saborosos e suculentos de uma personalidade integrada e feliz.
E nós, crianças? Que podemos fazer para recuperar o prejuízo, destravar os mecanismos de nosso crescimento interior, para que o nosso caráter mirrado venha logo alcançar o nosso corpo robusto, e eles enfim se ajustem? – Não desesperar, e começar uma longa paciência, sendo fiel no pouco. Superar pequenos desafios, os mais banais, que contrariem o nosso gosto, nossos planos, nossas preferências e opiniões, que podem ser tão pequenos que ninguém nem perceba nem fique sabendo. Ser fiel em pequenas disciplinas, pequenos compromissos e objetivos colocados para si mesmo. Serão pequenos exercícios de autodomínio, para que, de grão em grão, nossa franzina vontade vá engordando e tomando posse de si mesma, e tornando-se capaz de doar-se, enfim. E essa longa paciência só pode ser sustentada pela meditação, pela rememoração diária de nossos valores, convicções, deveres e missões assumidas, que irão tomando o lugar, em nosso coração, das ilusões, euforias e depressões. Devemos aos poucos ordenar nossa imaginação, para que, em vez de nos arrastar para onde não queremos ir, seja um auxílio a figurar para nós o que realmente desejamos, e logo conseguiremos temperar as paixões, de modo a, em vez de reagir com automatismos, sermos capazes de absorver em nós a circunstância e darmos a ela uma resposta positiva: a agir da maneira como nós escolhemos agir, custe o que custar. E assim começamos nossa longa viagem de volta da Terra do Nunca...
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos