Um velho curvado, com o pescoço para frente; o quadril para cima, e as mãozinhas nervosas, como garras, os dedos lépidos a procurar... Não é difícil pintar um avarento. Aliás, na literatura e no teatro, eles se parecem sempre. Lembrem-se de Ebenezer Scrooge, famoso sovina do Conto de Natal de Dickens; ou de Shylock, o usurário veneziano de Shakespeare; do Harpagon de Molière; do Pantalone da Commedia dell’Arte italiana; ou, então, do velho Potter de A felicidade não se compra. Lembrem-se do Tio Patinhas. Todos secos, desconfortáveis, consumidos por uma espécie de fome insaciável de possuir, mas incapazes de desfrutar da própria riqueza – como o rei Midas, o avarento mitológico. A avareza invade a alma daquele que se deixa dominar por ela. E, como diz o mesmo Shakespeare (em outra peça, pela boca do MacDuff de Macbeth), “A avareza penetra mais, emite raízes mais nocivas que a luxúria transitória do estio” (ato IV, cena III). Mas será que todos os avarentos são assim, fáceis de reconhecer? Esse vício, por acaso, não está presente em todos nós, sem que, por isso, nos tornemos exteriormente reconhecíveis?
No contexto desta nossa pequena trajetória pelos vícios capitais – que estão presentes na alma de todos nós, inclusive na de nossos filhos, aos quais devemos fornecer as ferramentas psicológicas e morais para lutarem contra eles –, falarei hoje sobre a avareza, uma inclinação que, de forma sutil, encontra espaço na vida de muitos, especialmente porque vivemos em uma sociedade profundamente materialista. Ora, as preocupações com os bens materiais são inevitáveis; estamos inseridos em um mundo físico, e precisamos de recursos para viver. No entanto, o perigo reside em elevarmos esses bens à condição de essenciais, depositando neles uma esperança exagerada. Esse erro pode nos conduzir a consequências graves.
O desejo de oferecer o melhor para os filhos é natural. Muitos pais dizem: “Hoje eu dou aos meus filhos tudo o que não tive, porque minha infância foi difícil, e não quero que eles passem pelas mesmas privações”. Mas é essencial refletirmos sobre os efeitos dessa atitude. A relação que estamos promovendo entre nossos filhos e o mundo material pode, no futuro, resultar em sérios problemas, como se os deixássemos desprotegidos para enfrentar depois, sozinhos, as constantes investidas do ambiente, os convites insistentes do mundo. Um exemplo trivial (ou nem tanto): a moda. Algo que inicialmente nos parecia irrelevante pode, de repente, se tornar desejável. Se antes achávamos um determinado acessório estranho, basta que ele se torne tendência para que passemos a achá-lo atraente. O mesmo ocorre com objetos de consumo mais sofisticados: ninguém sentia necessidade de um iPhone antes que ele fosse inventado. No entanto, uma vez que conhecemos suas funcionalidades, passamos a considerá-lo indispensável. Assim também é com as crianças – elas desejam o que veem, e o mundo ao redor é uma vitrine constante.
Diferentemente dos animais, que não ambicionam bens materiais, o ser humano é o único capaz de desejar e acumular além do necessário. Isso revela que a avareza não é uma questão de instinto, mas de vontade
Quantas vezes as crianças não se mostram plenamente satisfeitas até que surja a sugestão do desejo, o convite do mundo? Como quando estamos à mesa e alguém menciona “sobremesa”. Imediatamente, o menorzinho se agita, insistindo até conseguir. Às vezes, a solução é nem deixar que a ideia surja: em casa, já estabelecemos que termos como “sobremesa” ou “suco” são quase proibidos durante a refeição, pois, uma vez mencionados, provocam um caos de pedidos incessantes.
Esse tipo de desejo – a ânsia por possuir o que está ao alcance dos olhos – revela o cerne da avareza. Não se trata apenas do acúmulo de bens, mas do apego ao que é material. E é claro que não se trata de um problema exclusivo das crianças; é uma inclinação humana que nos acompanha ao longo da vida. Nosso desafio é ensinar que esses bens devem ser meios para algo maior, e não fins em si mesmos. Devemos ajudar nossos filhos a entender que os bens materiais existem para nos ajudar a crescer como pessoas, em amor e virtude.
O dinheiro, mesmo – que é o símbolo máximo da riqueza material, quase pura –, pode ser uma ferramenta para fazer o bem. Se ele é acumulado sem propósito, gera estagnação e egoísmo. Não se trata de ignorar as finanças: é claro que a prudência é necessária. Mas o que acontece quando comparamos o valor de uma criança ao saldo da conta bancária? Já vivi tempos difíceis; até o nascimento de nosso sexto filho, nossas finanças eram modestas e, ainda assim, nunca deixamos que o medo financeiro nos paralisasse. Tivemos filhos mesmo com a conta no vermelho e cartas de cobrança chegando. Víamos sobretudo o valor na vida, e não no saldo bancário. A verdadeira prudência consiste em equilibrar confiança na providência e responsabilidade. O que não podemos é atribuir peso excessivo aos bens materiais, ao ponto de paralisarmos nossas decisões. Precisamos ensinar que o valor das coisas é relativo, e o apego excessivo ao material nos impede de enxergar novas possibilidades e de tomar decisões corajosas.
Há vícios que estão enraizados na nossa natureza física, como a gula e a luxúria, que lidam com instintos primitivos. Mas a avareza não pertence a esse campo; ela é uma enfermidade da alma. Como citei acima, daquela linha do guerreiro MacDuff da peça de Shakespeare, “a avareza penetra mais, emite raízes mais nocivas que a luxúria transitória do estio”. Quer dizer, a luxúria, e também a gula, são transitórias, acompanham os movimentos naturais e são apenas distorções das necessidades do corpo e da espécie. Já a avareza “penetra mais” e lança “raízes mais nocivas”. Diferentemente dos animais, que não ambicionam bens materiais, o ser humano é o único capaz de desejar e acumular além do necessário. Isso revela que a avareza não é uma questão de instinto, mas de vontade. Quando nossa vontade está doente, passamos a ver o dinheiro e os bens como fins em si mesmos, perdendo a noção de que eles deveriam estar a serviço do bem maior.
Uma alma saudável é aquela que sabe usar os bens materiais para amar e servir. Quando colocamos o que possuímos a serviço dos outros, transformamos nossas posses em instrumentos de generosidade. Uma casa pode ser um espaço de acolhimento para amigos e familiares, um lugar onde promovemos a convivência e o aprendizado, vivendo bem tanto na abundância quanto na escassez, sem nos deixarmos aprisionar pelas circunstâncias. A avareza nos rouba a capacidade de viver plenamente o presente, aprisionando-nos na preocupação constante com o futuro. Ensinar nossos filhos a lidar com o que possuem e a compartilhar é fundamental para formar pessoas generosas e equilibradas, capazes de viver de forma serena, independentemente das posses materiais.
Viver na abundância requer sabedoria. O desafio é usar o que temos para o bem dos outros, colocando nossas posses a serviço da generosidade, e não do status ou da vaidade. É uma questão de equilíbrio: que nossos bens nos sirvam para atrair outras pessoas ao que é verdadeiro, belo e justo – e não para inflar nosso orgulho. No entanto, o caminho é estreito. Se não tomarmos cuidado, podemos facilmente cair na falsa prudência, acumulando bens e dinheiro com o argumento de que estamos nos preparando para o futuro: “E se algo der errado? É melhor guardar para garantir”. Essa forma de avareza nos aprisiona, fechando nossos corações à generosidade. Impede-nos de ajudar quem precisa, de emprestar a quem pede, por medo de que um dia nós mesmos precisemos. E, por outro lado, mas que complementa o primeiro, a avareza é capaz de roubar de nós a alegria de viver plenamente. Ao priorizar prazeres imediatos – como viagens ou conforto pessoal –, podemos nos ver evitando compromissos que exigem sacrifícios, como ter filhos ou acolher quem necessita de cuidado. Esse tipo de apego ao prazer imediato é igualmente uma forma de avareza, porque reduz a vida a uma busca incessante por satisfação pessoal, ignorando o chamado a algo maior.
A avareza nos transforma em prisioneiros de nossas próprias posses, roubando nossa capacidade de escolher o bem
O acúmulo de bens materiais pode nos afastar de nossa verdadeira missão. A avareza é uma doença da alma que obscurece nossa visão do que realmente importa. Ela nos faz esquecer que um dia morreremos e que nada do que acumulamos poderá ser levado conosco. Cada dia pode ser o último, e a reflexão sobre isso deveria nos fazer questionar: estamos vivendo de maneira a deixar um legado de amor e generosidade, ou estamos presos ao desejo de acumular coisas efêmeras? Precisamos manter nossas prioridades bem ordenadas, para que os bens materiais nunca se sobreponham às pessoas. Trabalhar é essencial, sim, mas nosso trabalho deve servir ao bem dos outros – à família, aos amigos e à sociedade. Se o trabalho se transforma em uma desculpa para negligenciarmos os relacionamentos, estamos caindo na armadilha da avareza.
Curiosamente, a avareza não se limita a quem tem muito. Muitas vezes, ela se manifesta em pessoas que pouco possuem. Um monge, por exemplo, que renunciou a todos os bens materiais, pode ser avarento ao se apegar obstinadamente aos poucos objetos que tem – um livro ou uma cruz que não empresta a ninguém. Assim também um homem pobre pode ser avarento ao se fixar em sua única colher, lustrando-a como se sua vida dependesse dela (e aqui a literatura e o cinema também nos dão exemplos icônicos, fáceis de reconhecer). Ao mesmo tempo, há pessoas abastadas que não se apegam ao que possuem, vivendo com simplicidade e generosidade.
A verdadeira liberdade está em não permitir que nossos bens nos possuam. A avareza nos transforma em prisioneiros de nossas próprias posses, roubando nossa capacidade de escolher o bem. Ao fazer dos objetos um fetiche, perdemos a habilidade de nos desapegar e de servir aos outros. Tornamo-nos obcecados por aquilo que temos, como se tudo dependesse exclusivamente de nós. Ora, o apego desordenado aos bens cria uma mentalidade mesquinha, que nos faz calcular o custo de tudo e impedir que as pessoas ao nosso redor usufruam do que temos. E esse apego pode distorcer nossos afetos, voltando-os mais para os objetos do que para as pessoas. Quando uma peça de roupa é danificada ou um objeto se quebra, reagimos de forma exagerada, como se aquilo fosse irreparável. O que deveria ser uma inconveniência se transforma em um drama pessoal, revelando o quanto estamos presos às nossas posses. Ser senhor dos nossos bens significa usá-los com responsabilidade, colocando-os a serviço dos outros e não de nós mesmos. Tudo o que temos é fruto do esforço conjunto de muitas pessoas – nada conquistamos sozinhos.
A avareza nos cega, fazendo-nos acreditar que tudo o que possuímos é mérito exclusivo nosso e que estamos constantemente em risco de perder tudo. Isso nos rouba a paz e nos prende a preocupações incessantes com o futuro. O avarento vive em constante ansiedade, como se precisasse garantir que tudo ao seu redor permaneça sob controle. E esse apego é uma ilusão, porque a vida é cheia de reveses e imprevistos. Simples assim: colocar nossa esperança exclusivamente nos bens materiais é uma insensatez. A vida pode ser interrompida a qualquer momento, e nada do que acumulamos nos acompanhará além da morte. A verdadeira segurança está em viver cada dia com generosidade e amor, construindo um legado que não pode ser corroído pelo tempo.
A avareza não é apenas uma questão financeira; é uma mentalidade, que mina nossa fé e nos faz acreditar que somos os únicos responsáveis por nossa segurança e bem-estar. Ensinamos nossos filhos a viver nessa lógica quando os condicionamos a valorizar mais os bens do que as pessoas, mais o status do que a verdade. O risco é que cresçam acreditando que o valor de suas vidas está nas posses que acumulam, e não na capacidade de amar e servir.
Quando estamos em um momento de abundância, temos a capacidade de escolher o que comprar e de direcionar nossos recursos para o bem do próximo. O ideal seria que as pessoas não olhassem apenas para as nossas posses, mas também para as nossas ações e para o que falamos. Isso pode inspirá-las a buscar o bem que enxergamos. Entretanto, essa linha é tênue. A avareza se infiltra na nossa vida de forma disfarçada, fazendo-nos acumular bens, não para partilhar, mas para nos proteger. A avareza leva a uma constante comparação com os outros, um desejo de estar à frente, de não ficar para trás. Isso se manifesta em situações cotidianas: “Se eu tiver um filho, como será a educação dele? Como será o custo do colégio?” Esses medos podem nos paralisar e nos impedir de tomar decisões corajosas. A maternidade, por exemplo, é uma entrega, e não uma coisificação das crianças.
O antídoto para o vício da avareza é a virtude da liberalidade: dar aos outros não o que é deles, ou o que lhes é devido, como pede a justiça, mas o que é nosso – e não com pesar, mas com alegria
Ademais – e este ponto é sensível para nos examinarmos –, a avareza gera uma tristeza profunda. É uma ânsia sem fim, uma busca constante por acumular coisas que, no fim, não trazem verdadeira felicidade. O avarento fica obcecado com o que possui, incapaz de perceber o valor das relações humanas. Essa condição leva a uma comparação incessante e um desejo do que é do outro – gerando ciúmes e inseguranças. A avareza se traduz em um apego excessivo, não apenas aos bens, mas também a pessoas e situações. A avareza é uma condição interna, uma doença da alma, que leva muito naturalmente a desordens emocionais patentes, pois os afetos, em vez de serem direcionados para as pessoas em si mesmas, se voltam para as posses, tornando-se uma obsessão.
O antídoto para esse vício é a virtude da liberalidade. Isso significa dar aos outros não o que é deles, ou o que lhes é devido, como pede a justiça, mas o que é nosso – e não com pesar, mas com alegria. Esse ensinamento deve começar em casa, mostrando aos nossos filhos que compartilhar é mais importante do que acumular. O desapego aos bens materiais deve ser uma prática cotidiana, ensinando que as coisas são apenas ferramentas para facilitar a vida em comunidade.
Quando o brinquedo de uma criança se quebra, ou ela o perde, devemos ajudá-la a estabelecer uma perspectiva saudável, um devido senso das proporções. Nesses pequenos gestos, e nessas situações quase singelas, ensinamos que os bens não definem o nosso valor, nem o valor da vida. A avareza pode ser um comportamento aprendido e estimulado, mas também é uma mentalidade que podemos desmantelar com amor e compreensão. Devemos colocar nossas posses a serviço dos outros. Um irmão está brincando de Lego e o outro, de repente, destrói toda a construção. É nossa tarefa ensiná-los a reagir com calma e a encarar a situação de maneira positiva: “Tudo bem, eu posso reconstruir, e isso vale menos que o meu irmão” (o que não significa aprovar a conduta do irmão que destruiu). A vida é feita de altos e baixos, e, muitas vezes, aquilo que acreditamos estar firme pode ruir em um instante. O importante é aprender a lidar com essas quedas.
Encorajar os filhos a se desapegarem das coisas materiais e a viverem com generosidade é uma tarefa fundamental
Dar esmolas é uma prática valiosa. Ao fazê-lo, devemos nos desapegar da ideia de que o outro fará mau uso do dinheiro. Essa preocupação não nos compete. O ato de ajudar alguém deve ser visto como uma forma de cuidar da nossa alma, acreditando que, quem sabe, aquela doação será um impulso positivo na vida da pessoa. O mesmo vale para o tempo que oferecemos. É fácil justificar a falta de atenção: “Não tenho tempo, estou atolado de trabalho! E isso é minha responsabilidade...”. No entanto, não podemos nos permitir deixar de lado cinco minutos para ouvir alguém que precisa de nós. Às vezes, mesmo em meio à correria, uma conversa sincera pode fazer toda a diferença – e isso não é também nossa responsabilidade, de algum modo?
Quando as pessoas compartilham suas preocupações, podemos mostrar nosso cuidado ao perguntar como estão. A prática da empatia, acompanhada de uma oração, nos ajuda a manter a conexão. Também podemos usar nossa inteligência a serviço do próximo, compartilhando conhecimentos e experiências. Aliás, a avareza pode se manifestar em diversos aspectos de nossa vida, incluindo o apego a nossas opiniões. Quando nos fechamos em nossos pontos de vista, deixamos de ouvir o que os outros têm a dizer. Isso é uma forma sutil de avareza. É fundamental cultivar a sobriedade, o que significa moderar nossos desejos e compreender que a felicidade não está em acumular bens, mas em vivenciar momentos significativos.
A avareza pode nos aprisionar. Quando estamos apegados ao que temos, perdemos a capacidade de ver o que é verdadeiramente importante. Encorajar os filhos a se desapegarem das coisas materiais e a viverem com generosidade é uma tarefa fundamental. Precisamos ajudar nossos filhos a perceberem que os bens não definem o valor de uma pessoa – nem o delas próprias. Se um irmão chora porque o outro quebrou um brinquedo, devemos ensiná-los a entender a situação com maturidade. O que está por trás desse choro, tão cotidiano, tão infantil, é um desejo de posse, uma inclinação, muito humana, à avareza. E é isso que devemos observar em nossos lares. Nossas atitudes serão assim guiadas por um olhar crítico, que busque entender as motivações por trás das ações. Devemos orientar nossos filhos para que não acreditem que a felicidade reside nas posses, mas sim no amor, na generosidade e na capacidade de ver para além do material.
Sigamos, pois, nossa marcha, desvendando e elucidando esses vícios que existem em nós, mas que podem ser matéria, ser superfície de contraste para o nosso crescimento e santificação.
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