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Ao contrário da gula e da luxúria, e mesmo da preguiça, há vícios que ninguém tem coragem – ou, deveríamos dizer, suficiente humildade – de confessar abertamente: são humilhantes, deixam-nos constrangidos, rebaixam-nos. Faz parte da sua própria dinâmica viciosa fazer-nos sentir mal e piores, e fazer-nos tentar compensar de algum modo nossa autoimagem, ou a imagem que temos para os outros. Falo hoje da inveja. Falo não exatamente do desejo desordenado de possuir algo, nem tanto do desejo de possuir um bem alheio, duas coisas que aproximaríamos mais propriamente da categoria da avareza. Falo da tristeza, da torturante agonia, maior ou menor, que o invejoso sente quando vê o bem que outra pessoa possui ou vivencia.
Agora repare: quando digo “o invejoso”, nossa tendência é pensar num outro, em alguém, coitado!, ou malvado!, que sente inveja dos outros, coisa feia... É difícil observarmos, com valentia, que essa inclinação viciosa existe em todos nós, em mim, em você. Aqueles sentimentos ruins que temos pelo sucesso do outro, pela sorte do outro, aquele impulso que temos de falar mal de alguém, tudo isso nós classificamos como justiça, como dever, como preza pela verdade – “porque, afinal...”. Mas não é bem assim. Esses sentimentos, que à primeira vista parecem inofensivos, quando analisados em profundidade revelam-se capazes de corroer relações e valores. Vejamos do início, e em seguida pensemos de que modo podemos ajudar nossos filhos a se desenredarem dessa tendência, e a viverem seu lado positivo: a admiração daquilo que é bom, e a gratidão.
A inveja nasce de um apetite sensível e, nesse sentido, neutro: o desejo de possuir algo que consideramos valioso. Ao observarmos o outro – sua alegria, suas conquistas ou mesmo seus atributos –, podemos ser despertados por uma vontade de imitá-lo. Quando essa inclinação ocorre de forma saudável, chamamos isso de emulação. Inspirados pela virtude ou pela felicidade alheias, buscamos melhorias em nossa própria vida, sem desejar o mal ao outro.
Por exemplo, ao testemunhar a alegria de uma mãe que descobre uma nova gestação, alguém pode sentir-se movido a também desejar essa experiência — não por cobiçar ou querer privar a mãe de sua felicidade, mas por reconhecer o valor e o significado dessa experiência. Nesse caso, a emulação desperta um desejo adormecido, conduzindo à busca de algo bom para si e para os outros.
Em vez de surgir de uma perda ou de um mal sofrido, a inveja nasce do sucesso ou da felicidade do outro
A inveja, por sua vez, é marcada pela tristeza diante de um bem alheio. É uma tristeza paradoxal: em vez de surgir de uma perda ou de um mal sofrido, ela nasce do sucesso ou da felicidade do outro. Este sentimento distorce a percepção do bem – o que deveria inspirar transforma-se em motivo de amargura. Assim, a inveja se expressa como um lamento interior: “Por que não eu?”, “Por que esse bem está com ele, e não comigo?”
Quase todos os aspectos da vida alheia podem se tornar objeto de inveja: beleza, inteligência, carisma, habilidades, riquezas materiais, status ou mesmo felicidade conjugal. Imagine uma jovem que, insatisfeita com sua aparência, se entristece ao ver a beleza de outra mulher, ou um profissional que se ressente ao observar o êxito de um colega: essa tristeza é alimentada pela comparação constante, levando a uma percepção de inferioridade e de falta. É como se os bens do outro diminuíssem a própria dignidade.
A inveja carrega consigo um fardo pesado, cujas consequências podem ser devastadoras. A primeira é o pessimismo e o complexo de inferioridade. O invejoso olha para os outros e vê apenas o que lhe falta. Ele acredita ser desfavorecido pelo destino, sorteado com as piores circunstâncias. Esse olhar negativo o impede de reconhecer suas próprias qualidades e de valorizar o que possui. Outra manifestação comum é a competitividade desenfreada. Diferente da emulação, onde o desejo de melhorar nasce de uma inspiração positiva, a competitividade advinda da inveja leva à obsessão de superar o outro a qualquer custo. Essa comparação constante faz o invejoso agir de forma precipitada, colocando esforços desmedidos em objetivos vazios, simplesmente para não ficar “por baixo”. Nas crianças, isso pode se manifestar em comportamentos como exigir que os pais comprem brinquedos e outros bens que os amiguinhos possuem, mesmo que isso ultrapasse as possibilidades financeiras da família.
Com o tempo, a inveja pode evoluir para sentimentos ainda mais sombrios, como raiva e ódio. Nesse estágio, o invejoso não apenas deseja o que o outro possui, mas anseia pela queda ou sofrimento alheio. Ele sente satisfação ao testemunhar a desgraça do outro e desapontamento ao vê-lo prosperar. Essa amargura pode levar a atos de maledicência, difamação ou sabotagem, na tentativa de manchar a reputação do invejado. A maledicência, em especial, é um fruto típico e generalizado da inveja – e que, como disse há pouco, pode ser disfarçada e maquiada por afetações de “justiça” e “verdade”. Ora, mesmo quando uma pessoa comete erros (o que acontece com todo mundo, sem exceção), ela tem direito à boa fama. Espalhar críticas ou fofocas destrutivas não apenas prejudica o outro, mas também revela a pobreza interior de quem o faz. A inveja, assim, age como um veneno que contamina tanto o invejoso quanto o alvo de sua hostilidade. O invejoso, ao falar mal de outra pessoa, busca criar uma perspectiva que diminua as virtudes ou qualidades alheias. Frases irônicas disfarçadas de brincadeira são frequentemente carregadas de intenções maliciosas. Essa atitude não apenas alimenta a inveja em si, mas também tenta cooptar os outros para que compartilhem dessa visão distorcida. Ao criticar e apontar supostos defeitos, o invejoso tenta reduzir o brilho alheio, buscando assim elevar-se às custas da queda alheia. O que não consegue destruir na realidade, ele tenta demolir com a língua.
Essa dinâmica pode se infiltrar nas relações familiares, especialmente entre irmãos, ou no convívio social, onde a competição muitas vezes substitui a colaboração. Como pais, educadores ou cuidadores, nossa responsabilidade é identificar esses comportamentos e intervir, promovendo um diálogo construtivo. Quando uma criança ou jovem faz piadas que diminuem o outro, é essencial mostrar que esse tipo de brincadeira não é aceitável. É preciso evidenciar que respeitar o outro é um valor inegociável.
Para prevenir que a inveja crie raízes, precisamos investir em algumas práticas fundamentais. A primeira delas é evitar comparações. Cada filho, cada aluno, cada pessoa possui uma combinação única de qualidades e desafios. É comum ver pais que, sem intencionar, comparam os filhos, destacando uma qualidade de um como exemplo para os outros. Mas isso pode ser contraproducente, especialmente quando a qualidade destacada não resulta de um esforço consciente, mas de uma inclinação natural. Por exemplo, uma criança que é naturalmente carinhosa ou organizada não deve ser colocada como referência para as outras. Afinal, não se trata de uma virtude alcançada por mérito próprio, mas de um traço de sua personalidade. Virtude é o esforço consciente para agir de maneira justa, generosa e amorosa, independentemente das inclinações naturais. Por isso, ao reforçar comportamentos positivos, precisamos fazer isso de forma personalizada, valorizando o progresso individual sem criar um ambiente de comparação.
Outro ponto crucial é tratar os filhos com justiça, não necessariamente com igualdade. A igualdade absoluta pode ser injusta quando desconsidera as necessidades específicas de cada um. Um filho pode precisar de mais apoio nos estudos, enquanto outro necessita de mais incentivo para desenvolver habilidades sociais. Reconhecer essas diferenças e agir com sensibilidade demonstra respeito à individualidade de cada um. Essa abordagem também ajuda as crianças a compreenderem que a vida não distribui oportunidades e recursos de maneira uniforme, mas que isso não diminui o valor de cada pessoa. Exemplo, pode ser que um filho não receba uma festa de aniversário em um ano difícil financeiramente para a família, enquanto outro receba quando as circunstâncias melhorarem. Explicar as razões para essas diferenças ajuda a construir um senso de empatia e compreensão sobre como as situações da vida variam, e é fundamental mostrar que cada decisão tomada é baseada no que é melhor para todos naquele momento, e não em favoritismos.
A construção de um espírito generoso e grato nas crianças é um dos pilares para prevenir a inveja e os comportamentos correlatos
Esse cuidado também se estende à maneira como lidamos com a distribuição de responsabilidades e atenção. Assim como Deus distribui dons e oportunidades de acordo com um plano maior que muitas vezes não compreendemos de imediato, nós também precisamos atuar com uma visão ampla e intencional na formação de nossos filhos. Eles precisam entender que, assim como na vida, cada um receberá o que for necessário para o seu crescimento e bem-estar. Por fim, cabe a nós cultivar um ambiente de aceitação e incentivo, onde cada indivíduo seja valorizado por quem é, sem a pressão de se comparar ou competir com os demais. Ao agir assim, ajudamos a transformar a inveja em gratidão e a tristeza em alegria pelo bem do outro. Esse é o caminho para formar pessoas inteiras, capazes de viver com dignidade e generosidade em um mundo cheio de desafios e diferenças.
A construção de um espírito generoso e grato nas crianças é um dos pilares para prevenir a inveja e os comportamentos correlatos. Nesse sentido, é crucial ensinar aos nossos filhos que a felicidade não depende de circunstâncias externas, mas de uma disposição interior. A ideia de que a alegria está em algo que nos falta é uma armadilha que pode aprisionar até mesmo adultos, mas que precisa ser enfrentada na formação dos pequenos. A felicidade não está na conquista de bens materiais, na beleza ou na inteligência, mas na capacidade de acolher a própria realidade e responder aos desafios que ela impõe. Não adianta desejarmos aquilo que pertence ao outro: o verdadeiro contentamento vem de uma postura de gratidão e engajamento para com aquilo que temos em mãos. Por isso, devemos estimular em nossos filhos a ideia de que a vida é um chamado à responsabilidade e à correspondência às graças recebidas.
Uma das bases para essa educação é ensinar a diferença entre justiça e generosidade. Enquanto a justiça consiste em dar a cada um o que é devido, a generosidade vai além, oferecendo mais do que o necessário, e é por meio dela que se constrói uma noção de gratidão. Contudo, uma criança que recebe tudo sem esforço tende a não valorizar os gestos de generosidade, confundindo-os com uma obrigatoriedade. Para evitar isso, é essencial fomentar a autonomia. Deixe que seus filhos realizem pequenas tarefas e experimentem as dificuldades do cotidiano. Quando percebem o esforço necessário para algo ser realizado, eles valorizam muito mais os gestos alheios. Por exemplo, uma cama arrumada por outra pessoa ganha mais significado se a criança já teve a experiência de arrumá-la sozinha.
Esse princípio também vale para presentes e recompensas. Se há datas específicas para dar presentes, como aniversários ou Natal, um presente fora de época gera gratidão genuína. Do contrário, um fluxo constante de mimos pode levar à indiferença. Até mesmo gestos simples, como preparar uma sobremesa especial, podem ser ocasiões para demonstrar generosidade e ensinam a criança a reconhecer e apreciar aquilo que lhes é dado. A gratidão é um antídoto poderoso contra a inveja. Incentive seus filhos a reconhecer o que os outros fazem por eles, como as pequenas gentilezas entre irmãos ou os sacrifícios feitos pelos pais. Frases simples como: “Seu irmão ajudou você, agradeça a ele”, ou “Olha que bacana, seu pai trouxe algo que você gosta!”, podem fazer toda a diferença.
Também é vital cortar a murmuração pela raiz. Reclamar constantemente da comida, do calor ou de qualquer outro desconforto cria uma mentalidade insatisfeita e ingrata. Em vez disso, ensine seus filhos a reconhecer as bênçãos em suas vidas, mesmo nos pequenos detalhes. Por exemplo, diante de queixas sobre a refeição, você pode dizer: “Ainda bem que temos comida. Há muitos que não têm o que comer hoje”. E, se necessário, tome atitudes que reforcem essa lição, como permitir que a criança experimente uma leve ausência de lanches caso recuse a comida principal. Esse tipo de intervenção prática ajuda a reconhecer o valor do que possuímos e a consolidar o sentido da gratidão.
Outro aprendizado essencial é ensinar os filhos a celebrarem as conquistas e alegrias dos outros. Isso pode ser feito dentro de casa, nos aniversários, por exemplo. Quando um irmão recebe presentes ou é o centro das atenções, estimule os outros a participarem dessa alegria. Antecipe as reações, especialmente se perceber que algum filho tem tendências à inveja. Você pode dizer: “Amanhã é o aniversário do seu irmão. Vamos fazer uma festa bonita para ele, e quero que você o ajude a aproveitar o dia dele. Se você se sentir triste, me avise, e vamos trabalhar nisso juntos”. Gestos simples também são eficazes, como envolver os filhos na entrega de presentes uns aos outros. Por exemplo, ao comprar algo para um, convide os outros a participarem da surpresa: “Olha, comprei essa chuteira para o José. Que tal ajudarmos a embrulhar?” Esses momentos incentivam a solidariedade e a alegria compartilhada.
Por fim, lembre-se de equilibrar a atenção e o cuidado com cada filho. Certifique-se de que todos se sintam amados e valorizados de forma única. Assim, eles aprendem a esperar pacientemente por sua vez e a valorizar as conquistas dos outros.
Reconhecer e combater a inveja requer muita coragem, muita lucidez. O primeiro passo é diferenciar a inspiração, que gera o desejo de emulação, e a comparação destrutiva. Isso se faz alimentando a gratidão pelo que se tem e cultivando a humildade para aprender com o sucesso alheio. Assim, transformamos o que poderia ser um motivo de tristeza em uma oportunidade de crescimento e virtude. A inveja, como qualquer inclinação, pode ser mitigada por meio de uma educação que promova a justiça, a generosidade, a gratidão e a capacidade de alegrar-se com o bem alheio. Cada gesto, cada palavra e cada lição são tijolos na construção de um caráter que valorize o outro sem se sentir diminuído. Assim, formamos filhos que não apenas convivem bem com os demais, mas que também iluminam a vida ao seu redor.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos