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Samia Marsili

Samia Marsili

Vícios capitais

A arma da cólera

Pais que não controlam a ira diante dos filhos dão péssimo exemplo.
Pais que não controlam a ira diante dos filhos dão péssimo exemplo. (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

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“O Senhor deu-nos por arma a cólera, não para que estocássemos com a espada nossos próprios corpos, mas para que batizássemos a lâmina inteira no seio do demônio.” É o que disse uma vez São João Crisóstomo (ca. 347–407), o grande bispo de Constantinopla, pregando aos seus. Nesse sermão, o “boca de ouro” fala de tal movimento da alma humana não como algo a ser erradicado, mas como uma arma que nos foi dada – e, como toda arma, representa um poder, e carece de bom uso. De fato, entre as emoções humanas mais poderosas e complexas, a ira ocupa um lugar de destaque. Para muitos, ela é sinônimo de perda de controle, de explosões impulsivas que destroem relacionamentos, trabalhos e sonhos. Mas, quando analisamos com atenção, é possível compreender que a ira, ou a “cólera”, é na verdade uma força bruta, uma força cega; portanto, quer dizer, ela é uma arma, como diz o santo padre grego, que pode causar o mal tanto quanto causar o bem: depende da destreza de quem a emprega, e sobretudo do alvo contra o qual ela é posta a operar.

Ora, quando bem canalizada, a nossa ira pode ser uma ferramenta de transformação. Ela é, por excelência, a paixão que tanto pode impulsionar grandes feitos quanto arruinar vidas se não for devidamente compreendida e dirigida. A ira é uma paixão universal, um impulso que surge em resposta a contrariedades, sofrimentos ou injustiças, sejam elas físicas ou morais. E, ao contrário do que se costuma crer, ela não é uma emoção exclusivamente negativa. No âmago da ira, existe uma força de resistência e também de defesa. Quando algo ou alguém viola os nossos princípios, nossos direitos ou os valores pelos quais prezamos, a ira é o ardor, o fogo, aquela chama que nos faz reagir. A questão fundamental, nessa seara, é a seguinte: Como se controla o fogo – digo, sem se queimar, ou sem deixar que ele se alastre para além dos limites desejados?

A emoção é, em si mesma, neutra. Não somos nós que a causamos; ela é o efeito, em nós, desencadeado por causas externas. O que determina se a ira será destrutiva ou construtiva é a maneira como escolhemos expressá-la, isto é, não como nos sentimos, mas sim a maneira como, sentindo-nos daquele modo, nós escolhemos agir. Quando a ira transborda para ações de vingança ou de ódio, ela se torna uma arma perigosa, que não apenas fere os outros, mas destrói o próprio indivíduo. No entanto, quando essa mesma energia é redirecionada para causas justas, para a defesa de valores e de pessoas vulneráveis, ela se transforma em uma força positiva, em uma paixão nobre.

Todos nós, em algum momento, já experimentamos o calor da ira. Talvez fosse um dia em que o cansaço físico se somou a uma situação de injustiça no trabalho; ou talvez fosse uma discussão em família, em que o orgulho ferido e o desentendimento abriram espaço para explosões. Em muitos casos, a ira surge quando nos sentimos impotentes diante de algo que consideramos errado. Ela é um reflexo natural de nossa paixão por aquilo que julgamos ser correto e justo.

A ira é uma força bruta, uma força cega; é uma arma que pode causar o mal tanto quanto causar o bem: depende da destreza de quem a emprega, e do alvo contra o qual ela é posta a operar

Pessoas de temperamento colérico em geral experimentam essa emoção de maneira ainda mais intensa. Para elas, a sensação é de que o sangue ferve, e o impulso da cólera neles é como o leite no fogo, que, no instante em que ferve, transborda de repente e se esparrama. Se não for devidamente trabalhada, essa ira pode se manifestar de maneiras destrutivas. No entanto, é importante ressaltar que o temperamento não determina o destino emocional de ninguém. Mesmo as pessoas mais inclinadas à irritabilidade podem, com esforço e prática, aprender a canalizar suas emoções para o bem. E mais: elas são chamadas, convidadas, pela sua própria natureza, a “fazer render um talento”: são vocacionadas a gestos de bravura e justiça.

Há uma distinção fundamental entre a ira boa e a ira ruim. A ira boa, muitas vezes chamada de “santa indignação”, é aquela que surge diante de injustiças sociais, morais ou pessoais, e que nos impele a agir de maneira ética e construtiva. É a indignação que sentimos ao ver uma criança sendo maltratada, ou ao testemunhar uma violação da dignidade do ser humano. Esse tipo de ira é motivado pelo zelo, pelo desejo de proteger o que é justo e de lutar pelo bem. Por outro lado, a ira ruim é aquela que nos cega, transformando nossas ações em vingança. É a raiva que alimenta a memória do mal e nos leva a desejar o sofrimento do outro como forma de retribuição. A vingança, nesse contexto, torna-se uma armadilha emocional, envenenando nossa alma.

O exemplo clássico dessa distinção é, muito infelizmente, o que se observa em tantas discussões familiares: quando conflitam as gerações, ou quando pessoas muito diferentes se embatem numa questão, em vez de dialogarmos ou de corrigirmos o outro com amor e respeito, muitas vezes agimos com dureza e sem consideração pelas consequências emocionais que aquilo vai gerar na outra pessoa, e assim uma simples peça de roupa, um pedaço de pudim, uma escova de cabelo ou um programa de tevê tornam-se uma pequena guerra, um desgaste pessoal e duradouro, uma triste memória, um passo firme na direção contrária ao amor. A justiça sem caridade, que muitas vezes surge da ira descontrolada, não é verdadeira justiça. Ela se transforma em uma arma que fere, em vez de defender, em vez de proteger ou curar. O que deveria ser um impulso para corrigir o erro se torna uma oportunidade de descarregar frustrações e punir além do necessário.

Ao longo da história, grandes figuras souberam usar a ira de maneira construtiva. E Nosso Senhor Jesus Cristo, que é o exemplo dos exemplos, nos oferece um modelo perfeito da ira santa. Quando expulsou os vendilhões do Templo (Jo 2, 13 ss.), não o fez por vaidade ou orgulho, mas por um profundo zelo pela casa de Deus. Ele agiu em defesa de algo maior, algo sagrado. Sua ira não era dirigida contra as pessoas em si, mas contra o erro que elas estavam cometendo. Da mesma forma, quando confrontou os fariseus, Jesus se deixava mover pelo amor à verdade e pelo desejo de proteger os inocentes da hipocrisia. A arma da cólera deve ser “cravada no seio do demônio”, como se disse.

Ademais, o Senhor nos mostra a importância de saber quando não agir com ira. Diante das ofensas pessoais, dos insultos e das injustiças cometidas contra Ele, permaneceu em silêncio. Não buscou vingança por suas feridas, pois compreendia que a verdadeira força está em saber quando conter a ira e quando utilizá-la para defender o bem maior.

No cotidiano das famílias, a ira pode e deve ser vista sob essa luz. Quantas vezes, no afã de corrigir um filho, acabamos agindo de maneira desproporcional? Quantas vezes, em nome de uma justiça imediata, punimos nossos filhos sem considerar o impacto emocional dessas ações? Em muitos casos, a correção feita com ira cega só aumenta o ressentimento e afasta de nós os nossos filhos, em vez de educá-los. No fim das contas, aquilo que, no calor do momento, nos parece “zelo”, nos parece correto e justo, acaba acarretando exatamente no contrário do que desejávamos – ou parecíamos desejar. Em vez de instruí-los no bem, nós contribuímos para que tenham raiva de nós, e os tornamos ressentidos, rancorosos, vingativos em seus corações.

Quando não controlada, a ira tem o poder de corroer lentamente as relações. Nas famílias, ela muitas vezes se manifesta de maneira sutil, em “microexplosões” instantâneas, que não fazem grande estardalhaço, mas condicionam as expectativas de modo negativo e deixam marcas profundas. Um pai ou uma mãe que reage com ira constante aos erros de um filho acaba criando um ambiente de medo e insegurança, onde o amor e a confiança são substituídos pela ansiedade e pela necessidade de agradar a qualquer custo.

Essa distorção da ira também se reflete nas amizades, nos casamentos e, em grau elevado, nos ambientes de trabalho. A ira cega nossa percepção da realidade, fazendo com que vejamos os outros apenas através do prisma do erro e da injustiça. Começamos a rotular as pessoas, reduzindo-as aos seus deslizes e esquecendo de suas qualidades e potenciais, e assim a ira gera uma cadeia de mágoas e ressentimentos, que dificilmente se desfaz sem um esforço consciente de perdão e reconciliação.

Ajudar os filhos a reconhecerem que suas ações impulsivas têm consequências é um passo crucial para que eles possam, no futuro, evitar comportamentos destrutivos

Um dos aspectos mais destrutivos da ira é sua tendência a exagerar as situações. Pequenas contrariedades se transformam em grandes conflitos, simples desentendimentos viram batalhas emocionais, e o que poderia ser resolvido com uma conversa calma e honesta torna-se uma guerra de nervos. Essa é a essência da ira má: ela distorce a realidade e nos impede de enxergar com clareza. “Enxergamos vermelho”, como é o dito popular.

Com todos esses perigos que se nos apresentam no manejo da “arma da cólera”, estamos diante de um aprendizado difícil e obrigatório: como dominá-la, como domá-la, e bem utilizá-la? O remédio eficaz contra a cólera é a mansidão; este é o nome da virtude contrária à ira, que tempera os nossos impulsos irascíveis e nos ensina a reagir com calma e serenidade, mesmo diante das maiores provocações, e a empregarmos nossa força contra o mal, mas por motivo de amor à justiça, e não por raiva: por obrigação, e não por paixão. No entanto, a mansidão não deve ser confundida com passividade ou omissão. Ela não nos pede que deixemos de agir diante do mal, mas que o façamos, enfim, com sabedoria e moderação.

A mansidão está profundamente enraizada na humildade. Ser manso é reconhecer as próprias limitações, erros e fraquezas. Quando percebemos que também somos falíveis, tornamo-nos mais compreensivos em relação aos outros. A humildade nos ajuda a enxergar que, muitas vezes, reagimos de maneira exagerada porque nos sentimos ameaçados ou inseguros. Ao cultivarmos essa virtude, desenvolvemos uma postura mais compassiva e equilibrada diante das falhas alheias.

Nas famílias, o papel dos pais é fundamental para ajudar os filhos a compreender e controlar a ira. Desde cedo, é importante ensinar as crianças a nomear seus sentimentos, a entender o que é a raiva e como ela surge: explicar que a ira, quando descontrolada, pode levar ao desejo de vingança, e que essa vingança só traz dor e destruição.

Uma das lições mais importantes que podemos transmitir é que agir no calor da ira quase sempre resulta em arrependimento. Quantas vezes, depois de uma explosão de raiva, nos sentimos mal por aquilo que dissemos ou fizemos? Ajudar os filhos a reconhecerem que suas ações impulsivas têm consequências é um passo crucial para que eles possam, no futuro, evitar comportamentos destrutivos.

Além disso, é importante ensinar as crianças a não se deixarem dominar pela ira nos momentos de tensão. A vingança envenena a alma, diz o velho provérbio (e admitam todos que ninguém esquece do pobre e sábio Chaves, recitando “A vingança nunca é plena, mata a alma e envenena”, com comovente pureza), e essa é uma verdade que precisamos lembrar constantemente. Em vez de incentivar uma atitude vingativa, devemos promover a ideia de que a calma e a paciência são sempre o caminho mais sábio.

Uma das práticas mais importantes no combate à ira é o ato de perdoar. Perdoar significa reconhecer que o outro errou, mas que esse erro não define toda a sua pessoa. É entender que todos nós cometemos falhas e que, assim como desejamos ser perdoados, devemos oferecer o perdão aos outros. O perdão, sim, é um ato de justiça, mas também de caridade, pois ele nos liberta do peso do rancor e nos permite recomeçar.

É claro que o perdão não exclui a necessidade de reparação. Quando a ira leva alguém a ferir ou prejudicar outra pessoa, é importante que haja uma reparação do erro. Ensinar nossos filhos a consertarem o que foi quebrado, a genuinamente pedirem desculpas e a fazerem as pazes com aqueles que foram ofendidos é uma lição de vida que molda o caráter e fortalece os relacionamentos.

Uma das práticas mais importantes no combate à ira é o ato de perdoar

Uma prática recomendada tanto para nós, pais, como para os filhos, e na qual nós devemos dar exemplo e ensinar, é o exame de consciência regular. Ao fim do dia, refletir sobre as atitudes, reconhecer momentos de impaciência, irritação ou raiva, e avaliar como esses sentimentos foram geridos pode ser uma ferramenta poderosa para o autoconhecimento e para a melhoria contínua. Esse hábito permite que tanto adultos quanto crianças observem suas próprias falhas e se comprometam a corrigi-las no futuro. Isto é analisar as situações “friamente” no bom sentido, quero dizer, longe do calor do momento, objetivamente, e não com a vista distorcida pela cólera. Por meio dessa prática, percebemos que muitas vezes somos injustos, que julgamos mal os outros ou que reagimos de maneira desproporcional. Ao nos conscientizarmos desses padrões, podemos começar a mudar nossas atitudes, substituindo a ira pelo diálogo, o ressentimento pelo perdão, e a vingança pela reconciliação.

Não devemos nunca esquecer, não obstante, que a ira, quando canalizada de maneira correta, é uma força poderosa, uma arma usada em defesa do bem. A indignação diante da injustiça é o que nos impulsiona a lutar pela virtude. O zelo pelas pessoas que amamos nos motiva a defendê-las e protegê-las em momentos de perigo. A chave está em saber transformar essa paixão num combustível para ações deliberadas e pensadas: em uma força criativa e positiva, que construa em vez de arrasar e destruir. Acompanhada de caridade, humildade e mansidão, a arma da cólera torna-se uma santa cólera, um zelo pela casa – pela de Deus, mas também pela nossa casa, pelo nosso lar.

Prossigamos, na próxima edição desta coluna, com os demais vícios capitais que se debatem em nossa alma.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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