Aqui nesta coluna, bem como em todas as outras mídias nas quais atuo, o meu tema, que ronda ou perpassa as realidades da família, da criação dos filhos e do relacionamento conjugal – realidades estas que estão mergulhadas no adverso contexto da cultura contemporânea –, nunca é outro a não ser o nosso progresso, o caminho de cada um de nós em direção a uma melhora, a um aprimoramento de nós próprios enquanto as pessoas humanas que somos. Esse aprimoramento, deixo sempre muito claro, não tem a ver essencialmente com adquirir habilidades, aprender macetes e fórmulas de sucesso, que nos deixem mais eficientes ou mais tranquilos, embora isso às vezes esteja incluso. Quando estão presentes, essas coisas devem se inserir no quadro mais amplo, que é o do próprio sentido da vida e da busca pela genuína e verdadeira felicidade, que é a felicidade do ser humano enquanto tal, considerando todas as suas dimensões, e não apenas uma ou outra. Não é autoajuda; é que uma felicidade falsa, provisória, que hora ou outra vai se transmutar em desespero, não nos basta nem nos serve.
Recentemente, tratei aqui de dois temas que são, por assim dizer, um tanto “impopulares”, contrariados pela doutrina imperante que prega o amor-próprio, a autopreservação e a satisfação dos desejos, e até mesmo das perversões, como caminho para a felicidade. Falamos da humildade, isto é, do esforço por relativizar a própria opinião e a apreciação que fazemos de nós mesmos, certamente enviesada a nosso favor, em busca de uma verdade mais objetiva; e falamos da paciência, leia-se, da capacidade de padecer os reveses da vida com dignidade, e de assim expressar, no suportar esses pequenos sofrimentos, o rosto cotidiano do amor. Esses esforços e capacidades – com outra palavra, essas forças adquiridas – estão voltados sempre para o centro da questão, que é a edificação da nossa personalidade, que por sua vez se dá, em aparente contradição, na entrega que fazemos de nós mesmos. Reside, na verdade, numa negação de nós mesmos – mas de um “nós mesmos” que não é tão “nós mesmos” assim, não tanto quanto realmente podemos ser; em suma, de um eu inferior que é sacrificado por um eu superior, que brota, luminoso, da morte do primeiro. O nome tradicional que se dá a essas forças é virtudes – palavra que vem do latim virtus, e que significa mesmo “força”, ou “excelência”. Mas em que consiste, exatamente, uma virtude?
A definição mais simples de virtude seria dizer que ela é um bom hábito, ou seja, uma qualidade que a pessoa tem e que se manifesta em suas atitudes e reações já de maneira habitual, de maneira continuada em sua conduta. Entretanto, essa definição pode ser melindrosa, porque existem em nós alguns “hábitos bons”, ou aparentemente bons, que não são exatamente virtudes. Por quê? Porque alguns desses hábitos externamente bons podem ter, na verdade, uma raiz na vaidade: podem ser “virtudes vaidosas”, que nós colocamos em prática não com o fim que aquela ação deveria ter por si, mas com a finalidade extrínseca de atrair a admiração dos outros, ou de nós mesmos nos deleitarmos conosco próprios, com o quanto somos lindos e maravilhosos. Ou, mesmo que não tenham essa segunda intenção, podem ser nada mais que hábitos rotineiros, que nós executamos simplesmente por estarmos acostumados, mas de um jeito morno, sem sentido: por inércia, e não por opção, tendo o nosso coração engajado. Pode não passar de um entediado cumprimento das obrigações, motivado por razões de acomodação.
A busca pela temperança deve ser o nosso ponto de partida. É, sem dúvida, a virtude mais modesta, aparentemente simplória ao olhar desatento. E justamente por isso é que devemos começar por aí
Ou, ainda, não sendo por costume, alguns hábitos podem advir simplesmente de nossas inclinações temperamentais. Embora isso tenha serventia em muitas ocasiões, e embora também seja uma arte fazer bom uso de nossas próprias tendências, ainda não se trata propriamente de virtudes: são apenas nossas propensões naturais em ação. Do mesmo modo, gestos de rompante, ocasionais, ainda que possam ser corretos na ocasião, não correspondem a uma virtude na pessoa que age: sejam febres efêmeras, que têm origem na emoção ou nas paixões, e que, tão logo passe o furor, somem como fogo de palha, sejam ações realmente boas, mas isoladas, em nenhum dos casos trata-se ainda do que se chama, propriamente, de uma virtude.
A virtude, ensina-nos lá o Catecismo, é “uma disposição habitual e firme para fazer o bem. (...) São atitudes firmes, disposições estáveis, perfeições habituais da inteligência e da vontade que regulam nossos atos”. Ora, a virtude é uma força constante, adquirida e já solidificada; é uma prática já arraigada de escolher o bem de cada situação. Então a definição de “hábito bom” vale, de fato; mas se tivermos em conta que se trata de um hábito estável conquistado com esforço, e estabelecido, como uma estaca, no fundo da nossa alma (se nos servimos, outra vez, da comparação entre a estruturação de nossa personalidade e a construção de edifícios, as virtudes entrariam como essas estacas, dando equilíbrio e firmeza a quaisquer andares superiores). Esse hábito, para ser considerado uma virtude adquirida, precisa ter se tornado, como diziam os antigos, uma “segunda natureza” em nós. A tal ponto que essa força, como um software instalado, ou um novo mindset, como está na moda dizer, passa a regular os nossos atos, e vai ordenar as nossas paixões, como numa orquestra: nenhum dos sons e dos instrumentos é desprezado, ou é sempre silenciado; todos eles são integrados e organizados numa harmonia, de modo a construir, a edificar algo belo e afável. Essas forças vão nos permitir praticar o bem livremente.
Agora, como cada uma das incontáveis situações dramáticas da vida humana apresenta suas dificuldades próprias, e cada uma delas exige o desenvolvimento de uma virtude especial, são muitas, por certo, as forças que precisamos adquirir, assim como são muitos os músculos a trabalhar na academia, e apenas todos em conjunto podem compor, enfim, um corpo verdadeiramente forte. Porém, para dar o primeiro passo, no primeiro dia de treino, por qual virtude devemos começar? Qual dessas forças nós devemos pensar em adquirir primeiro? Qual é a estaca que devemos fincar primeiro, para dar sequência a essa obra de edificação de nós mesmos, ou por que exercícios devemos começar, de modo a galgar avanços consistentes? Para responder a essa pergunta com precisão, é necessário fazer uma boa investigação, um trabalho de voltar-se sobre si próprio para se observar. Há que examinar-se e, idealmente, ter o auxílio de um diretor espiritual qualificado. Isso para que identifique, em você, muito especificamente, seus principais pontos fortes e pontos fracos, e comece a buscar a virtude correspondente ao seu defeito dominante.
Mas, antes mesmo de enveredar por esse trabalho, existe o esquema, a estrutura comum do caminho a trilhar, coerente com a estrutura da natureza humana, que é a mesma para todos. O esquema tradicional remonta pelo menos a Platão, atravessou os séculos e traz quatro virtudes humanas principais; principais por serem as mais gerais, e abarcarem as virtudes menores: são como as “cabeças de chave” do esquema das virtudes, ou como as dobradiças de todas as outras – e por causa disso foram chamadas de “cardeais” ou “cardinais”, de cardo, cardinis, que é “dobradiça” em latim. São elas, na ordem, a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança. Muito resumidamente, a prudência é a força habitual de discernir o bem de cada situação, e por isso ela é a primeira, pois é a guia das demais virtudes; a justiça é o hábito adquirido de dar a cada um o que lhe é de direito; a fortaleza é a força de perseverar nas dificuldades e de superar os obstáculos; e a temperança, enfim, é a virtude que modera a atração pelos prazeres e busca o equilíbrio no usufruto dos bens.
Então muito bem: se nós queremos começar do início, começar do zero, o melhor mesmo é começarmos de baixo para cima, do mais fácil e mais simples. A busca pela temperança deve ser o nosso ponto de partida. É, sem dúvida, a virtude mais modesta, aparentemente simplória ao olhar desatento. E justamente por isso é que devemos começar por aí. É muito difícil conquistar humildade e paciência, por exemplo, se antes não se fortaleceu na temperança, como quem prepara um grupo de músculos para apenas ser capaz de começar a trabalhar outro, uma vez que o corpo é um todo integrado, e a alma igualmente.
“Temperança” vem do latim tempero, temperare, que é mesmo o que parece ao nosso ouvido português: temperar, isto é, assim como na culinária, encontrar a justa medida, a quantidade exata, a combinação perfeita, a mistura certa; regular, controlar, moderar. O seu sentido mais imediato, quando dizemos que alguém é “temperante” ou “moderado”, é que não abusa dos alimentos, das bebidas e dos prazeres, que não exagera na bebida alcoólica ou não se perde no uso de outros entorpecentes. E, de fato, a prática de treinamento para a aquisição dessa virtude não pode ser feita a não ser nessas circunstâncias, que se oferecem a nós dia a dia. E, embora essas atitudes de privação e regulação pareçam ter a ver inteiramente com elementos que estão fora de nós, que nos são externos, como a comida e a bebida, a sua base está, desde o princípio, dentro de nós. Pois, a cada vez que fazemos um mínimo, um imperceptível esforço por negarmos a nós mesmos um único brigadeiro, por darmos uma única dentada a menos, estamos favorecendo aquele nosso eu superior sobre o nosso eu inferior, e o que é quase nada externamente pode acumular um tesouro invisível. Não porque haja qualquer mal no nosso corpo, ou nas suas carências, desejos e paixões sensuais; não, porque a dimensão corporal segue, em si mesma, a sua própria harmonia, como se fosse uma força cega da natureza.
Pela temperança nós verdadeiramente nos possuímos, tornamo-nos senhores, e não escravos de nós mesmos. É uma virtude de ordenação muito básica, de decidir quem manda: meu estômago ou eu
O corpo busca o bem do corpo, e ele é, como dizia São Francisco, o “irmão burro”. Mas ocorre que é para o nosso eu inferior, em primeiro lugar, que o corpo reclama e apresenta essas suas carências e desejos; e, quando nós subjugamos nosso eu inferior ao superior, quando nós comandamos, com a força de nossa vontade iluminada pela inteligência, a moderação, o tempero desses impulsos, nós em nada humilhamos ou diminuímos nosso corpo; ao contrário, nós o valorizamos seriamente, pois com essa virtude nós fazemos com que ele ocupe o justo lugar que lhe pertence no nosso ser de pessoa humana. Assim nós verdadeiramente nos possuímos, tornamo-nos senhores de nós mesmos – os patamares superiores senhoreando os inferiores –, e não escravos de nós mesmos, com os patamares superiores escravizados pelos inferiores. É uma virtude de ordenação muito básica, de decidir quem manda: meu estômago ou eu. E, se o nosso grande objetivo – objetivo na família, objetivo de vida, caminho para a felicidade verdadeira e perpétua – é nos doarmos, é preciso lembrar a frase de Jacques Copeau: “Doar-se é tudo. E para doar-se, é preciso antes possuir-se”.
E como se adquire a temperança? É preciso passar meses inteiros privando-se dos alimentos de que gostamos, tornarmo-nos abstêmios perpétuos, jejuar a pão e água dias a fio? Acredito que isso, assim, sem mais nem menos, seria apenas uma bravata e uma esquisitice, e não ajudaria em nada a adquirir, como já repetimos o suficiente, um hábito firme. Portanto é preciso dar pequenos passos, mas firmes. Começa-se, na academia, com uma carga leve, que em poucas repetições já fadiga o músculo flácido, e o mesmo se dá com a força da vontade, e com o temperar dos nossos desejos de prazer e conforto. É capaz de sair da mesa um pouquinho aquém da saciedade completa? É capaz de não repetir o prato de que mais gostou? É capaz de inserir ou aumentar um pouco a porção do legume de que não gosta? E de pegar pouca sobremesa, ou pulá-la? E de pôr uma colher a menos de açúcar no café? Ficar sem carne um dia na semana? Depois aumente a carga, e aumente também as repetições, e assim, com constância, vai se adquirindo e firmando uma força, uma virtude capaz de, habitualmente, trocar um impulso do seu corpo por uma escolha sua, sua mesmo, do seu eu superior. A musculação é para valer, é um apuro ou uma luta real? Não, é um treino, como dizemos; mas é o treino que nos capacitará para a efetiva doação de nós mesmos, quando a hora chegar.
E uma palavra, apenas, sobre as crianças: Se queremos educar moralmente os nossos filhos, para que sejam pessoas de caráter, como vamos fazer com que adquiram essas virtudes? E esta, em específico? Nossos pequenos, os coitadinhos, para quem os sentidos e os afetos são tão importantes, devem ser privados dos prazeres, contrariados? Que terror! É preciso, aqui, fazer uma importantíssima distinção: somente um adulto pode perseguir, praticar e assimilar uma virtude, porque essa é uma ação que ocorre no plano das faculdades espirituais, da inteligência e da vontade, as quais, na criança, são ainda incipientes, e não operam plenamente. O que os pais podem, e devem, transmitir à criança é a prática constante, é um bom hábito, que não será mais que hábito.
Como ensino em meus cursos, os quatro hábitos fundamentais na formação da criança são o sono, a alimentação, a higiene e a ordem. Esses quatro hábitos são os sulcos iniciais da formação moral; é o seu estabelecimento que dará à criança a possibilidade de firmá-los como virtudes, quando ela transitar, na adolescência, da infância para a vida adulta e tomar posse de suas faculdades espirituais e, em suma, de si mesma. É nessa turbulenta fase de transição que o nosso filho vai pôr à prova os hábitos que tiver vivido na infância: ele vai, é claro, questioná-los, e negá-los para testar sua consistência, para sentir o seu valor. Se quiser, ele poderá assumi-los em primeira pessoa, poderá optar por confirmar o que nós lhe demos quando ele ainda não podia optar – assim como a fé, no batismo que damos aos nossos bebês, os quais, quando chegarem às portas da juventude, poderão confirmá-la. Assim se transmutam os hábitos em virtudes. Sem esse gesto, eles apenas continuariam a executar bons costumes de maneira morna, como falamos no início.
O que podemos fazer às crianças pequenas, para dar-lhes como que uma semente de temperança, é insistir em ofertar todos os tipos de alimentos, insistir em que comam ao menos um grão, ao menos uma bocada daquilo de que não gostam, porque não se come apenas o que se gosta; come-se de tudo, e a saúde, por exemplo, vale mais que o prazer do sabor. Devemos também, certamente, afastar deles as tentações, e não exigir que fujam por si mesmos, com a força de vontade que ainda não opera neles, das guloseimas e das desordenadas extravagâncias que praticarmos na frente deles. Contudo, se não tivermos fornecido a eles a solidez desses hábitos estabelecidos, o que terão para negar e testar na adolescência? Se quiserem firmar uma virtude, terão de começar tudo sozinhos, do zero, a essa altura? Por isso repito, também incansavelmente, que a formação moral é a principal educação, porque trata-se, de certo modo, de educar a criança para que o adulto possa continuar educando-se a si próprio.
Não é impossível que este seja o seu caso, como é o de muita gente. Não recebemos dos nossos pais esses hábitos com suficiente firmeza, com solidez satisfatória, para que os pudéssemos apenas endossar e revivificar como virtudes, e assim progredir. Ou então, tragédia!, pode ser que, arrastados por ideias tortas, por maus conselheiros ou falta de orientação, tenhamos jogado fora na adolescência a nossa educação da infância. Ou um pouco mais tarde: pode ser que tenhamos, aos poucos, afrouxado, e, sem o devido cuidado de regar e podar, feito da nossa alma um jardim abandonado. E quantas vezes os pais não se põem à caça de um método para que suas crianças obedeçam, de qual seja a punição mais adequada, ou de como fazer o filho seguir determinadas diretrizes, sem perceber a grande contradição, e a impossibilidade de a criança fazer o que não conhece, e nunca viu. A virtude correspondente àquele hábito que ela precisa adquirir está completamente ausente do lar, e é o filho quem ganha a aparência de malcriado, ou de desobediente. Não precisamos ser perfeitos antes de ensinar o bem aos nossos filhos, não; na verdade, os encargos que vêm com os filhos são chamados e oportunidades para que aumentemos nossas forças e alarguemos nosso coração. Então comecemos pelo básico, e eduquemos as crianças, todas elas: que não só os nossos filhinhos, mas os nossos próprios corpos mimados, comecem a comer de tudo um pouco.
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