Na última quarta-feira, dia 27, meu dia no Senado começou com a visita, em meu gabinete, de representantes das cidades de Guaíra e de Terra Roxa no Estado do Paraná. Estavam apavorados com a rejeição pelo Supremo Tribunal Federal do marco temporal para a demarcação das terras indígenas. Eles me apresentaram dados e mapas, apontando que o município de Guaíra teria 14,42% de seu território demarcado, cerca de 8,2 mil hectares, e o município de Terra Roxa, 17,93% de seu território demarcado, cerca de 14,3 mil hectares. Situações similares repetem-se em todo o território nacional. O fim do marco temporal sujeitaria áreas extensas a demarcações e os que elas já ocupam ficariam sujeitos à desapropriação.
As reinvindicações das populações indígenas às suas terras são relevantes e legítimas. A descoberta e a colonização do Brasil foram cruéis com elas, misturando extermínio com expulsão.
A Constituição Federal de 1988 garantiu aos índios as terras que tradicionalmente ocupam, atribuindo à União Federal o dever de demarcá-las. O PL 2903/2023 buscou melhor esclarecer a questão, estabelecendo que o direito abrangeria somente as terras ocupadas pelas populações indígenas na data da promulgação da Constituição. O direito não se estenderia às terras que teriam ocupado no passado, mas que não estariam em sua posse nessa data.
Em posição oposta, o STF decidiu, em julgamento finalizado na última semana, que os direitos da população indígena iriam além e abrangeriam terras que teriam também ocupado no passado, sendo indiferente a posse na promulgação da Constituição de 1988.
Embora a posição mais generosa do STF soe politicamente mais simpática, cabe aqui um pragmatismo. Não é possível voltar o relógio para 1500 e devolver às populações indígenas toda a terra da qual foram expulsos. Existem cidades que foram nelas construídas e terras no campo que foram ocupadas e cultivadas há centenas de anos por grandes ou pequenos proprietários rurais.
Doutro lado, a triste realidade é que boa parte das comunidades indígenas, mesmo as que têm terras demarcadas, vive em condições de pobreza. O acesso à terra não é equivalente à prosperidade.
Tem que ser garantido às populações indígenas a manutenção de sua cultura e tradição, com a adoção concomitante de políticas públicas que lhes permitam o acesso à educação, à saúde e a oportunidades de desenvolvimento econômico. A proteção do Estado deve ser direcionada a proibir discriminação e a garantir a sua autonomia, inclusive para decidir como devem explorar as suas terras. Colocá-las sob tutela, sem poder decidir o seu futuro, significa condená-las à pobreza e à dependência permanente dos favores do Estado.
Não é possível voltar o relógio para 1500 e devolver às populações indígenas toda a terra da qual foram expulsos
O fato é que a solução cogitada pelo STF é inviável na prática e gera situação de insegurança jurídica para o direito de propriedade no Brasil. Por isso, votei a favor do PL 2093/2023, aprovado no Senado, fixando o marco temporal para as demarcações.
Diante do conflito, surgiu nova dúvida: o que prevalece, a decisão do STF ou a lei do Congresso?
O texto da constituição é ambíguo. Não determina ele uma única interpretação. Na ausência de lei, o STF, com o julgamento, fez uma escolha interpretativa possível. Entretanto, essa interpretação precisa passar por revisão a partir do momento em que o Congresso fez a sua. Não é o Congresso que precisa demonstrar que a sua escolha é compatível com a Constituição. A lei presume-se inconstitucional. O ônus de demonstrar que ela é inconstitucional é do STF.
Não há qualquer afronta ao STF. Vários Ministros do STF já se pronunciaram afirmando que a Corte decidia essas questões polêmicas porque o Congresso não o fazia. Pois bem, a Câmara e agora o Senado decidiram a questão, fazendo a sua escolha para regulação do texto constitucional. Cabe ao STF postura de deferência em relação a ela, sendo possível a censura como inconstitucional apenas se for demonstrada a incompatibilidade com o texto, o que até o momento não foi feito.
Tenho dito que a responsabilidade primária para a elaboração de políticas públicas complexas cabe às autoridades eleitas, notadamente ao Congresso. Magistrados do STF não são melhores ou piores do que parlamentares ou vice-versa. Mas os parlamentares têm uma vantagem institucional que os magistrados não têm: eles podem ser substituídos periodicamente pela soberania popular. Se legislarem mal, podem ser demitidos. Já ministros do STF são vitalícios, seus erros de última instância são de difícil revisão. Em uma democracia, a possibilidade do eleitor de participar da definição das políticas públicas está diretamente relacionada ao seu poder de escolher e destituir os seus representantes eleitos. Entregar as escolhas a magistrados vitalícios equivale a retirá-las dos eleitores.
Tudo isso recomendaria ao STF cautela e prudência na análise do marco temporal votado no Congresso. Cabe aqui lembrar as memoráveis palavras do Justice Robert Jackson que serviu na Suprema Corte norte-americana na primeira metade do século passado: “Nós não damos a última palavra porque nós somos infalíveis, mas nós somos infalíveis somente porque nós damos a última palavra”. O alerta para autocontenção institucional referia-se à Suprema Corte que ele ocupava, mas ele bem serve para o Supremo Tribunal brasileiro.
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