Tentei puxar pela memória – gosto de exatidões – para saber quantas vezes loquei o filme, inclusive (e principalmente) em VHS. Noves fora, muitas. Aquele quarteto fantástico em cena e nos bastidores cantando e falando e subvertendo padrões comportamentais e estéticos. Tantas vezes revi cenas, viagens boas, um peguinha de leve com amigos, há anos não mais! E “Os doces bárbaros” ainda incensa a casa…
Não faltaram críticas – as tais patrulhas ideológicas – ao suposto tom escapista no auge do chumbo grosso e ais e dores dos porões da sanguinária ditadura militar. E os quatro transgrediram às fuças e cascos dos generais e seus pôneis amestrados.
ELES: Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa e Caetano Veloso, protagonistas do filme “Os doces bárbaros”, do cineasta Jom Tob Azulay.
Trinta anos depois de dar muito o que falar – ainda são necessárias observações analíticas -, o filme está sendo relançando em DVD. Parceria da Petrobras com a Biscoito Fino. Sem cortes da censura, qualidade de áudio incrível (engenharia absoluta, remasterização em Dolby 5.1), cenas extras e incríveis revelações.
“Acabei fazendo um documentário sobre os anos 70. Na época, a gente não tinha consciência, clareza disso. E mesmo que tivesse procurava disfarçar”, conta com leve ironia o cineasta Jom Tob Azulay referindo-se às garras cruéis da repressão.
Filmado em 1976 durante a turnê dos bárbaros, o longa-metragem chegou aos cinemas dois anos depois. A linguagem da fresta foi utilizada para a liberação do filme, com cortes de cerca de 10 minutos, mas sob a classificação “boa qualidade, livre para exportação”. Censura: 14 anos. Hum!
Para “alisar” – ou sutilmente evidenciar – a burrice dos censores, Caetano Veloso narra em off o retorno de Gil aos palcos, depois da prisão numa clínica psiquiátrica para onde foi mandado por porte e uso de maconha: “O Gil recebeu autorização do juiz de voltar a trabalhar porque cantar é o trabalho dele, é a profissão de Gil. O médico que estava responsável por ele aconselhou essa volta ao trabalho, inclusive como sendo uma coisa clinicamente recomendada”.
Querem a verdade? “O Caetano nunca diria uma coisa dessas. A gente combinou que ele diria isso com vistas a facilitar a futura aprovação do filme que a gente criticava toda a repressão que vigorava no país”, revela Jom Tob Azulay, em depoimento no DVD.
Essa é boa, né?
Roteiro de ficção e, no entanto, verdade – Foi Maria Bethânia quem conclamou os baianos a celebrar 10 anos de estrada. Numa entrevista que fiz com ela, à revista portuguesa DIF, assim a intérprete avaliou o encontro:
”Foi bacana mostrar quatro artistas com carreiras e histórias bem definidas fazendo um trabalho uno, amigável, amoroso e, sobretudo, nobre para a música brasileira”.
Tem razão. O filme, com 100 minutos de duração, mostra os quatro baianos durante o processo criativo e dá uma boa amostra da personalidade de cada um. Tudo registrado com habilidade por Azulay. Que, vejam só, apenas queria fazer um documentário de no máximo 30 minutos a ser exibido em canal de televisão.
Os fatos foram se sucedendo e o projeto transformou-se numa mescla de musical, filme de tribunal, drama e até “comédia”. Um roteiro de ficção. No entanto, tudo verdade.
Caetano narra as venturas e desventuras da turma. Aliás, ele e Gil compuseram a maioria das músicas, que resultou num disco duplo de qualidade sonora ruim. Clássicos como “Esotérico”, “São João Xangô menino”, “Chuck Berry field forever”, além de outras lindas canções: “Fé cega, faca amolada” (Milton Nascimento –Ronaldo Bastos), “Um índio” e “Eu te amo” (interpretada com vigor por Gal Costa). Ao todo, 17 músicas, incluindo os extras.
A voz de Gal se sobressai – belo corpo também – até mesmo quando faz vocal de apoio aos amigos. Gil é uma estripulia cênica; genial. Caetano vai na mesma onda. Bethânia, avassaladora nas interpretações. Figurinos bonitos, excêntricos, algo de hippie, tropicália. Todos à vontade.
Nos bastidores, lances interessantes. Cabeluda, leve, linda, solta e displicentemente sentada, Gal fala sobre o sonho “castrado” com a prisão de Gil. “Sensação de frustração porque a gente estava começando um trabalho que pra gente era muito importante, pra o Brasil também”, conta.
Fala sobre o retorno aos palcos dos quatro, sem ensaio. “O show já sabia do mais”, afirma. Legal isso!
O melhor está para surgir. A entrevista de Bethânia – com birotes nos cabelos – a um repórter começa como uma conversinha de comadres. O cara perguntando e ela respondendo que não gosta de fazer televisão, que pertence à nação ketu, que não gosta de feminismo, machismo, e gradualmente vai se irritando. Aí vem a pergunta fatal do repórter:
– Em relação ao lesbianismo, sua opinião pessoal…
– É igual a você não ser. Ou você é veado ou não é veado, as duas coisas são idênticas
– Sim, mas certas pessoas têm certos preconceitos com determinadas idéias…
– Você tava perguntando a minha opinião. Minha opinião é essa.
Ai!
Os extras trazem ainda o fuzuê no camarim, no palco, amigos como Miucha abraçando Gil. As falas foram subtraídas. O que falam? O que será que Gal resmunga a Caetano? Para atiçar a imaginação.
Todos fumavam cigarros convencionais, hoje não mais. Gil e Caetano venais, “Tarasca Guidon” (Wally Salomão). Gal e Bethânia nos atabaques e vocais. Pra ver e ver e ver e ver e ver. Eis! “As Ayabás”, mitologia do candomblé. Eis também!
`Beservação´, erva maldita e lacinhos no tribunal – A turnê de “Os doces bárbaros” estreou em São Paulo, no Anhembi, no dia 24 de junho de 1976. Passaria por 10 capitais. Curitiba foi a segunda a ser visitada.
Da capital paranaense, os dulcíssimos desceram para Florianópolis. “Inicialmente não tinha sido incluída no roteiro. Mas Gil e eu gostamos muito da cidade e exigimos que fosse incluída”, conta Caetano.
Lá, o bicho pegou. A polícia apreendeu no quarto de Gil e do baterista Chiquinho Azevedo pequena quantidade de maconha, a “erva maldita” conforme relatos policiais.
“Serviço de campana, de `beservação´”, conta orgulhoso um delegado do setor de tóxicos. Risível a atuação dessa figurinha. Havia no quarto, conforme informação desse obtuso, um “baseado e um pacotinho que dava para fazer um ou dois cigarros”.
Manchetes nos jornais. Sensacionalismo impresso em preto-e-branco (“Presos Caetano e Gilberto Gil”, “Gal e Betânia (sic) com pó de pemba”). Com lacinhos e tranças nos cabelos, Gil se apresenta ao juiz. Ouve atentamente e, vez ou outra, dá risadas de canto de boca.
O promotor manda ver, quer condenar: “Contudo não foi o artista Gilberto Gil e, sim, o criminoso Gilberto Passos Gil Moreira que, em invés, de difundir sua brilhante música, encontrava-se talvez inconsciente fazendo difusão da droga tão combatida nos dias de hoje”, declara. Olha, só!
A defesa sugere e o juiz aceita que Gil, em vez de prisão, seja submetido a um tratamento para livrar-se da dependência. O juiz dita a sentença ao escrivão, outra cena hilária: “Abre aspas. Gostava de maconha e que seu uso não lhe fazia mal nem lhe levava a fazer o mal. Fecha aspas. Em juízo, Gilberto Gil declarou que o uso da maconha, abre aspas, o auxiliava sensivelmente na introspecção mística. Fecha aspas. Ponto”. A censura militar não poupou nem a fala do juiz e mandou retirar trechos.Uia!
Na clínica, Gil e Chiquinho Azevedo dão depoimentos interessantes, agora sem cortes. “A gente tá vivendo momentos em que se buscam uma descontração no mundo inteiro com relação a novos atos, a formação de novos padrões, de novos conceitos sobre atitude social, sobre comportamento particular, quer dizer, sobre privacidade, sobre respeito à vida privada das pessoas e tudo mais”, filosofa Gil.
Passado o tormento, Gil retornou ao Rio de Janeiro e o show “Os doces bárbaros” foi retomado com sucesso. Dois meses no Canecão.
No mais a história ainda conta: Gil, Bethânia, Gal e Caetano continuam rasgando a manhã vermelha!
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