Hotel de madeira, austero como convém às edificações históricas. Ranger dos tempos. O porteiro do Sol Nascente pega o telefone vermelho e se comunica com um dos hóspedes. “Ele já vem”, informa.
Veio num instante. Com passos vagarosos, olhos e falas serenos, Dominguinhos foi de uma gentileza improvável ao conceder entrevista pouco antes do show que faria, no último sábado (dia 30 de agosto.), na quarta edição da Festa Nordestina de Assai, município localizado a 36 km a leste de Londrina.
Lacônico inicialmente, o cantor, compositor, instrumentista foi se soltando aos poucos para contar um pouco da trajetória profissional de quase 60 anos.
Modesto, ele não consegue dimensionar sua importância para a Música Popular Brasileira e se esquiva quando indagado se é o herdeiro musical de Luiz Gonzaga. “Eu sou um músico e estou na luta. Todo mundo é seguidor de Gonzaga e eu sou mais um deles, o mais próximo”, diz José Domingos de Moraes, 67 anos, pernambucano de Garanhuns.
Foi naquela cidade do sertão nordestino que Dominguinhos, com sete para oito anos de idade, se apresentou junto com os irmãos Valdo e Moraes para o Rei do Baião, que se hospedava no hotel Tavares Correia. Gonzaga não só gostou como deu um dinheirinho aos pequenos músicos e também um recado e endereço por escrito destinados ao pai deles. A recomendação: se um dia fosse para o Rio de Janeiro, que o procurasse.
Sete anos depois do que o destino escreveu à mão, mestre Chicão (conhecido afinador de acordeon) aportava no Rio de Janeiro com os filhos. Onze dias de viagem em pau-de-arara. Era 1954. Procurou Luiz Gonzaga que, no ato, lhe deu uma sanfona de 80 baixos. Dali em diante, Neném do Acordeon passava a ser Dominguinhos, nome artístico mais crível ao ver de Luiz Gonzaga.
Dominguinhos sentiu o gosto da popularidade em 1973 quando Gilberto Gil, parceiro profícuo, gravou a sua “Eu só quero um xodó”. Sucesso nacional, a canção, vejam só teve 250 releituras, inclusive em inglês, holandês e italiano.
Ao todo, calcula ter composto umas “seiscentas e uns quebradinhos” canções, algumas em parceria com Chico Buarque, Djavan, Anastácia, Nando Cordel, Fausto Nilo, Climério, entre outros.
Dominguinhos foi o grande homenageado no Premio Tim de Música neste ano. Ficou no palco acompanhando os convidados que foram reverenciá-lo. Ele também é o protagonista de um documentário, em fase de produção, a cargo da cantora Mariana Aydar, do músico Duani e do cineasta Joaquim Castro.
Paralelo a isso, está preparando o 41º disco solo com músicas inéditas e algumas releituras. Há gravadora interessada, conta ele, mas o projeto virá sem pressa.
Fim da entrevista. Despede-se com docilidade e vai à luta. Em Assaí – cidade com grande concentração de nipo-descendentes e nordestinos – fez muita gente espantar “o friinho” daquela noite. Tocou, cantou, conversou, dialogou com seus músicos, arrancou manifestações espontâneas de carinho do público. Deu até para esquecer um tradicional político que não arredou o pé do palco, ao lado do músico – presença dispensável, o que estava fazendo lá entre artistas, hein?!
Como todo bom forró ao ar livre, microfonias. Bonito ver Dominguinhos exercer seu ofício. Emocionante vê-lo envolto nos afagos do povo quando desceu do palco. “Até outra hora, minha gente, com fé em Deus”.
Até sempre, mestre!
Reza a lenda que, quando você chegou ao Rio de Janeiro, Luiz Gonzaga disse: “Neném é apelido, tem que ter um nome artístico melhor!”. É verdade?
Meu apelido de músico era Neném. Desde Garanhuns, Recife e Olinda o pessoal me chamava só de Neném. E no Rio eu fui muito conhecido como Neném do Acordeon. Mas antes o Gonzaga já tinha, durante uma entrevista, falado pra mim que ele achava que Neném é apelido que mãe bota na gente, que não é uma coisa boa para artista, e aí, “já que você tem Domingos no nome, é Dominguinhos”.
Antes mesmo do Rio de Janeiro, é como se houvesse um prenúncio desse destino. Teve um recado do Gonzaga ao seu pai, né?
Eu só me lembro de ter tocado – eu e meus dois irmãos – para um cidadão lá dentro do Hotel Tavares Correia. Normalmente tocávamos na porta desse hotel em Garanhuns, que está lá até hoje. Um dia nos botaram para tocar para uma pessoa lá dentro, que era ele. Eu não sabia quem era Luiz Gonzaga, não sabia quem era artista nenhum. Aí ele nos deu dinheiro e deu, principalmente, o endereço dele e um recado: “Entregue a seu pai, se ele pender um dia para um endereço no Rio de Janeiro, pode me procurar que eu vou ajudar vocês”.
Quantos anos se passaram deste primeiro encontro até vocês irem para o Rio?
Mais de seis, sete anos.
E Gonzaga se recordou desse momento?
Ah, recordou. Nós chegamos em 1954, em Nilópolis, que é a cidade onde eu me criei, e lá o Gonzaga nos recebeu no outro dia e deu logo uma sanfona para o meu pai. No mesmo minuto.
Você quis ser músico desde pequeno?
É o que eu sabia fazer. Meu irmão Valdo tocava amelê, um instrumento de câmara de ar que meu pai fazia, que tem um som melhor do que couro. Eu tocava pandeiro. O Moraes tocava sanfoninha de oito baixos, de botão.
Você escreve partituras?
Não, sempre toquei de ouvido. Estudei e tudo, mas não me aperfeiçoei em nada, fiquei tocando mesmo. Só tocando.
Se não fosse músico, o que você faria na vida?
Acho que seria servente de pedreiro ou cortador de cana porque eu não estudei muito. O nordestino, como você pode ver aqui em Assaí, ou em qualquer canto do país, é um lutador. Vai fazendo trabalhos pesados e depois vai se acostumando, vai melhorando de vida…
Pode tornar-se até Presidente da República…
Esse aí deu sorte.
“Esse” é conterrâneo seu, como você o vê?
Eu o vejo como um homem de sorte, bem-sucedido, passou um bocado de bocado por aí. Também não sei muito da história dele não. Como Presidente da República ele é razoável
Você votou nele?
Não.
Quando você volta para Garanhuns, qual é a imagem de Lula na cidade natal?
Ele é de Caetés, não é nem de Garanhuns. É uma cidade próxima. Mas todo mundo gosta dele, acha uma pessoa boa; tomava muita cachaça com os amigos dele, e aquela coisa toda. Todo mundo fala nisso, ele é um homem muito aberto.
Você não chegou a conhecê-lo em Garanhuns?
Não, até agora. Na época em que ele estava começando a vida no ABC, eu fiz um bocado de shows com Zé Ramalho, Moraes Moreira, Beth Mendes, Gonzaguinha para a fundação do PT. Mas, depois desse tempo todo, ele nunca se lembrou de mim pra nada não. Nunca me procurou, nem nunca sequer me chamou para fazer uma música, nem pra uma festa junina que ele faz no Palácio de vez em quando. As chances que ele teve de falar da música nordestina, do Luiz Gonzaga, ele falou em Bossa Nova, de pessoas mais da elite.
O Gil é melhor como amigo do que como ministro?
Eu sempre falei quando encontrei com ele algumas vezes: “Quando tu vai sair?”. E ele: “Ah, vou ficar mais um pouquinho”. Coisas de baiano. Mas acho que ele se esforçou um pouquinho, mas depois viu que o negócio dele é fazer música e violão. Daí caiu fora, foi o certo.
Quase 60 anos de profissão. Já dá para olhar para trás e dizer se foi legal ou não foi?
Muita coisa foi boa. Outras coisas, dentro do trabalho, você poderia evitar. Tudo o que foi feito com relação à música, para mim, foi de grande valor. Fosse acompanhando as pessoas mais sem estrutura da música nordestina, que eu acompanhei demais, ou as de estrutura. Eu sei que contribui de alguma forma e contribuíram comigo também.
Você sabe que é muito querido, né?
Graças a Deus (risos).
O que te tira do sério?
Acho que covardia, gente que não tem respeito pelos outros, que não sabe o seu lugar.
Qual música que não é sua e que gostaria de ter composto?
São muitas músicas que eu gostaria de tocar, mas não de ter feito. Eu acho que cada um tem a sua veia, tem a sua forma de fazer uma música, e ninguém pode ter olho grande nessa parte não, que é um horror (risos).
E se fosse para escolher uma música sua para ser lembrada?
“Contrato de Separação” ou “Lamento Sertanejo”, gosto muito das duas
Diga o nome de uma grande cantora Brasil?
Vixe Maria. Tem que encher um balaio. Tem cantora boa que só a peste aqui. Tanto nova, como antiga. Nossa, tem muita gente boa. Tem mais que homem.
Um cantor, então…
Emílio Santiago é extraordinário. Eu gosto muito dele, como gosto de Caetano que é um grande intérprete.
Te dá mais prazer compor ou interpretar?
As duas coisas: ser um solista e fazer música. Cantar, não. Eu só canto porque é o jeito. Porque cantar, na minha opinião, é uma coisa que você precisa estar muito bem, tem que estar legal, tem que estar com bom espírito, alegre. Não pode, você estar cheio de coisas e entrar no palco e ficar todo arreganhado e não estar legal. Tocando você ainda pode esconder uma série de coisas.
Você pensa em parar um dia ou vai até o fim?
Ah, eu penso. Eu acho que a gente vai levando a vida até onde dá, né?
A sanfona está pesando?
Tá… Tem treze quilos. Chega um momento em que você não pode estar brincando com isso. Eu não quero, a certa altura, que as pessoas vejam que eu estou entojado, tocando por honra da firma. Isso é muito chato.
(Colaborou o jornalista Renato Forin Jr.)
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