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Moacyr Luz é um homem gentil e atencioso. Entrevista marcada para um domingo, às 14h30. Ligo. “Rapaz, estava esperando você ligar, não tinha como me comunicar com você”, diz ele um pouco ansioso.

Estava almoçando com um amigo e queria remarcar o bate papo para mais tarde, se fosse possível. Em comum acordo, deixamos para o dia seguinte. No mesmo horário.

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Toca o telefone antes do combinado e, para minha surpresa, era Moacyr Luz. Pede desculpas por qualquer transtorno que poderia ter causado no dia anterior. Nenhum! Imagina!

Olha só a simplicidade desse senhor cantor, compositor e exímio violonista de 50 anos pertencente há muito tempo ao primeiro escalão da música popular brasileira. Atitude rara a dele. Ainda mais nos dias de hoje.

Falamos sobre “Batucando”, nono álbum recém lançado pela Biscoito Fino, composto por 12 músicas inéditas. Registrado em outubro do ano passado, tem convidados especiais: Zeca Pagodinho, Wilson das Neves, Beth Carvalho, Martinho da Vila, Ivan Lins, Alcione, Tantinho da Mangueira, Luiz Melodia e Mart´nália.

Muita gente do samba que Moacyr Luz convidou para comemorar 50 anos de idade e 20 anos de carreira. “Batucando” ilumina-se com as bênçãos de São Jorge, santo de devoção de Moacyr. Paulão 7 Cordas na direção musical e co-autor da maioria dos arranjos; Cristóvão Bastos assina quatro faixas.

Moacyr exercita-se mais como letrista. Inspirado, diga-se. “Vida da minha vida”, uma das três canções feitas em parceria com Sereno, tem Zeca Pagodinho dividindo o microfone. Samba em tom menor, reflexivo. “Vida da minha vida/ peço ao meu protetor/ se for pra ser vivida/siga pra onde eu vou/Vida da minha vida/ se eu fosse sabedor/deixava mais aquecida/ a chama que me queimou”

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Há dolência e contornos de maxixe em “Samba dos passarinhos”, feito com Martinho da Vila, assim como no canto “chorado” de Ivan Lins em “Clareou” (composta juntamente com Aldir Blanc, que assina outra faixa apenas, a sincopada “Samba pro Geraldo”.).

Do elenco feminino – incrível como as intérpretes engrandecem as obras de Moacyr -, Alcione dá show à parte em “Meu Nego”, letra bem construída por Hermínio Bello de Carvalho.

Canta a Marrom: “Meu nego quando me beija/ me enche a boca de estrelas/ enquanto se põe a comê-las/é um lusco-fusco num céu de azul de metileno”, diz um trecho. O desfecho: “E sai o serelepe, o esponja/nos braços de uma vadia/ Esbanjando noutra esquina/ a merreca que eu ganhei/ tomara que broche com a mina/ Rapina que agora o entretém” Maravilha!

Beth Carvalho defende, como sempre bem, com garra e cor “Divina Mangueira” (em parceria com Paulo César Pinheiro). A grande senhora do samba, majestade Elizabeth, sabe imprimir nobreza com seu canto. Mart´nália faz o que pode em “Beleza diamante”, se sai bem.

Como cantor, Moacyr está cada vez apurado. Bom ouvi-lo em “Daquela mulher” (outra parceria com Hermínio), samba-canção de desamor – os acordes iniciais do piano de Cristóvão Bastos parecem evocar o bolero “La puerta”.

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“Batucando” tem intrigantes confecções harmônicas e, no entanto, assimiláveis. Duas ou três audições e qualquer um sai cantarolando ou assobiando essa ou aquela faixa. Ou seja, um disco para cair no gosto popular cujo conteúdo não resvala – eis a diferença impressa por Moacyr – em clichês sonoros e/ou literários. Para bom entendedor…

Compositor com identidade – Ser popular sem “baratear” é o que Moacyr da Luz Silva vem fazendo desde 1979, quando Lana Bittencourt gravou sua primeira composição: “Eu me descubro”.

Reconhecido nas rodas de samba – ele conduz todas as segundas-feiras o “Samba do trabalhador”, no Renascença, Rio de Janeiro – o artista carioca não se afina com o rótulo de sambista. É compositor e ponto final. Com Aldir Blanc desenhou uma identidade própria.

A parceria iniciada em 1984 é das mais felizes na música brasileira. Nasceram clássicos como “Coração do agreste” (Fafá de Belém fez leitura definitiva), “Saudades da Guanabara” (Beth Carvalho registrou, Leny Andrade também), “Mico preto” (gravada por Gilberto Gil para abertura de uma novela), “Medalha de São Jorge” (Bethânia ajudou a eternizar), entre outras. Tenho apreço muito grande por “Só dói quando eu rio”, na voz quente e grave de Selma Reis.

Negócio é o seguinte: o nome de Moacyr está inscrito na lista dos grandes da MPB como compositor, violonista (influência maior vem de Hélio Belmiro) e, principalmente, por ser um apaixonado pelo seu ofício. Ah, sim, e por ser gente boníssima.

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Gosto muito do seu disco!

Ah, que bom ouvir isso! Eu estou muito empolgado com o disco. Tenho falado para todo mundo que eu pensava assim: quando fizesse um disco para os meus 50 anos, seria de músicas inéditas, voltado para a ousadia… Quer dizer, que tivesse músicas eternas e não simplesmente inéditas só para ter inéditas.

Bacana no seu modo de compor é que todas as músicas têm condições de tocar no rádio, cair na boca do povo e, melhor de tudo, há boas elaborações harmônicas.

Fico orgulhoso de você perceber isso porque é uma coisa que venho trabalhando minha vida inteira, que é esse limite que vai ao popular sem baratear. Sem ficar uma coisa apelativa, sem fugir de todo um passado meu. As pessoas me tratam como sambista, mas até 89, 90 eu fiz muitas canções. Fui gravado por Nana Caymmi, Fafá de Belém, Elba Ramalho, Leila Pinheiro e outras pessoas distantes do samba.

Interessante dizer que não é um sambista e sim um compositor. No entanto, foi no samba que você se firmou né, Moacyr?
Eu sou compositor. Eu tenho adoração pelo samba, minha vida hoje é samba o tempo todo. Tem roda de samba que freqüento, tenho as parcerias, as convivências. Por exemplo, o Zeca Pagodinho me convidou para o aniversário dele, estive com a Beth Carvalho semana passada, com o Martinho da Vila também, com o Sereno, meu parceiro que é do Fundo de Quintal, e por aí vai.

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Com “Batucando” você comemora 50 anos de idade e 21 anos de carreira discográfica. Há uma lista grande de convidados para a comemoração. Ficou alguém de fora, hein?

Ah, poderiam ter vindo muitas pessoas. Eu queria muito que o Paulinho da Viola tivesse gravado. Cheguei a mostrar uma música pra ele, que gostou muito. Só não afinamos a agenda. E o tempo do Paulinho é mais devagar na absorção da música, além de a gravação acontecer num período que não dava… Mas o Paulinho é uma pessoa que gostaria muito de estar próximo. Outro é o Elton Medeiros, um cara que confio muito mesmo. E tem uma cantora que não é samba e eu adoro: a Zélia Duncan, minha amiga de muito tempo.

Bem, a Zélia está em todas. É chamar e ela vai…

Ela é maravilhosa.

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A parceria com o Aldir rendeu muita coisa boa e até sucessos nas rádios. É verdade que você batizou seu apartamento de “Coração do agreste”, em função do sucesso que fez com a Fafá?

(risos). É verdade. Eu tinha também um carro que se chamava “Tieta”… Na realidade, eu fiz uma reforma no apartamento e coloquei ardósia que se chamou “Ardósia do agreste”. Essa música funciona muito bem até hoje. Fui fazer shows recentemente em Maceió e em Fortaleza e era um show de samba. No meio do show alguém me pediu essa música. Eu cantei, todo mundo cantou. É muito interessante isso. E também muito honesto da minha parte porque falo do “Coração do agreste” como falo de “Saudades da Guanabara”, assim como “Cabô meu pai”, que o Zeca Pagodinho gravou no disco “Gafiera”.

Você vislumbrava que um dia seria um cantor e compositor? Ou ser compositor já estaria de bom tamanho?

Compositor, modestamente falando, eu achava que iria ser sim. Bem, eu pegava o violão para estudar uma coisa qualquer de música e, no meio do estudo, entre frases e harpejos, parava e vinha uma música. Era um troço, sei lá, espiritual… Não gosto de falar esse tipo de coisa não, mas a música saia, entende?

O cantor veio na extensão?

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O cantor é um aspecto da vida da gente que trabalha com música no Brasil. Eu tenho quase 200 músicas gravadas, o direito autoral é muito pouco. Então, aquele sonho que eu tinha de ser o Paulo César Pinheiro ou o Aldir Blanc não funcionou muito. Pensei: “vou ter que cantar também, né?” Hoje eu estou mais preocupado com o canto porque se é mais cobrado, o nível de relacionamento vai aumentando. Antes eu não abria mão, às vezes, de mexer no tom por causa de um acordezinho de nada, entendeu? Hoje eu reflito um pouco melhor para que o tom se encaixe melhor na música que eu vou gravar.

Mais preocupado com o canto mesmo, certo?

Olha, se você pegar o “Vitória da ilusão”, de 94, vai perceber que eu cantei muitas músicas fora do tom que deveria, dei alguns agudos que não tinha condições de dar. Hoje não! Hoje escolho melhor os tons que vou gravar. Acho que é coisa dos 50 anos de idade, do amadurecimento.

Você oferece músicas aos cantores ou eles vêm buscar? Como funciona?

Eu sou um compositor como qualquer outro. Estou batalhando meu espaço, estou sempre mandando música para alguém. Estive com a Alcione na apresentação da nova Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro e ela me disse: “estou gravando um disco novo”. Eu sai de lá pensando: “Meu Deus, eu preciso fazer uma música para entregar a Alcione”. Tem uma juventude que está vindo aí, bem disposta, honesta e eu estou sempre disposto a mostrar alguma coisa minha. Gosto de mandar músicas novas, sim.

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Você falou em gente disposta, honesta. Mas tem muita gente que não passa verdade, sabemos. O que você não gosta de ouvir?

O que eu não ouço é, por exemplo, é uma letra que parece que o compositor recorreu ao dicionário de rimas. Essas músicas: “cama com semana, me chama na cama”. Não é possível que isso seja inspiração! A música fica parecendo uma aritmética, uma fórmula. Isso acontece em todos os tipos de música: samba, sertanejo, bolero, qualquer coisa. Se for muito clichê eu não perco tempo.

“Delírio da baixa gastronomia” é uma das faixas, com o perdão do trocadilho, deliciosas. Aliás, você tem dois livros nessa linha, né?

É. Um é “Manual de sobrevivência nos botequins mais vagabundos”(Editoria Senac), com ilustração do Jaguar, em que falo sobre comportamento em bar, com capítulos que vão do guardanapo, o pendura, o cheque até o choro da bebida. E no ano passado lancei pela (Editora) Desiderata o “Botequim de bêbado tem dono”, uma homenagem aos camaradas mal humorados que ficam atrás do balcão. A música “Delírio da baixa gastronomia” eu considero inédita porque fiz para um evento em São Paulo ( no Tom Brasil). O público comprava o ingresso e ganhava o CD (com texto de Ruy Castro) com essa música, que jamais foi tocada ou entrou em algum disco.

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Seu santo padroeiro é São Jorge, certo?

Muito!

Sua religiosidade entra no terreiro do sincretismo?

Eu freqüento tudo. Vou à igreja e se me convidarem para ir a um centro, eu vou também. Tenho o devido respeito por todos os tipos de manifestações religiosas desde que te dêem uma energia boa, entende? No fundo, cada um tem um Deus interior muito forte, uma crença. Se você vai a um lugar que interprete melhor esse sentimento, acho válido. Vou a uma igreja, me ajoelho e rezo para São Jorge. Mas também vou ao candomblé, escuto bater o tambor. Sempre admirando e sempre acreditando. Essa é minha receita pessoal de religião.