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Dois filmes têm como ponto em comum o magnetismo e segurança da grande senhora da canção popular

Ponta de caneta esferográfica a rasgar o lacre do estojo. Minhas urgências sensoriais. DVD duplo de Maria Bethânia, lançado pelo próprio selo (Quitanda).Começo pelo mais recente. Miudezas do cotidiano, registros corriqueiros e/ou familiares feitos por Andrucha Waddington em “Pedrinha de Aruanda”.

O mote é a comemoraçao dos 60 anos da cantora – ou intérprete como gosta de ser chamada – com um show na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador. 17.06.2005. Bastidores, concentração, rezas, rituais antes de pisar descalça o palco.

“A nossa queridíssima atriz, Mariaaaaaa Bethâniaaaaaaaa”. anuncia um empolgado casal de locutores. Uia!!!! Lá vai Maria. Canta Maria. Agradece Maria. Volta Maria ao camarim. De lá, ouve uma banda marcial tocando “Parabéns a Você”. Dissipa-se a concentraçao. Gargalhada. Volta Maria à galera. Desculpe, ao público.

Corte. Aliás, a câmera oscila e capta algumas imagens levemente desfocadas. Tá, vamos editar essa conversa.

Vai Maria para Santo Amaro da Purificação (onde nasceu) e, coisa rara, deixa muitas vezes de ser o centro das atenções por conta, obra e doçura da agora centenária Dona Canô. Frágil senhora que carrega seu tempo sem reclamar e mantém tesas idéias e lucidez e recordações.

O nome do documentário justifica-se a partir desse momento. “Pedrinha de Aruanda” mostra Maria Bethânia desarmada, longe dos rigores cênicos. O cotidiano sem maquiagem. Sem retoques.Da missa celebrada aos 60 anos, das histórias engraçadas (como a de João Gilberto ao volante do carro, dirigindo “tão bem quanto canta”), da saudação às águas doces, onde rege um de seus orixás, da voz cantando “Motriz”… Comovente!

O documentário não obedece a uma ordenada cronologia. Liga-se através de idéias, de comentários ingênuos até. Como o de outro filho de Dona Canô. Caetano e Bethânia conversando ao carro, a caminho da terra natal. “Você sabe como Fernando Pessoa chamava a lua?”, pergunta Bethânia. Caetano solta: “Ele náo chamava de lua não?” “Chamava. Mas em alguns momentos ele chamava de Nossa Senhora do Silêncio”, rebate.”Essa é expressão linda”. Por aí vai.

Seresta com Dona Canô cantando. Muitas vezes os olhos dessa senhora fixam o longe. O passado. O que era. O que é. Nunca o talvez. “Música velha é que é musica boa”, diz ela. Vai se perfilando um punhado de canções “velhas” “Chuá, chuá”, “Exemplo” e “Oração de Mãe Menininha “, do velho Caymmi. Jaime Alem, maestro de Bethânia, tudo acompanha ao violão.

“Pedrinha de Aruanda” também remete a fatos já difundidos por Dona Canô e por Maria Bethânia. Ou alguém nunca viu/ouviu a matriarca contando que foi “seu” Caetano quem colocou o nome na irmã? Ou Bethânia comparando seu ofício a de um trapezista sem o auxílio das redes de proteção?

“Ultimatum”, texto de Álvaro de Campos, dá o tom político ao final (confira fragmento do texto abaixo). Contundente. Lajedo tão grande….


Ultimatum

De perto mesmo – A firmeza de propósitos de uma intérprete – ainda em estado bruto, de formação ao ponto de ironizar Roberto Carlos, mora?! – foi captada por Júlio Bressane e Eduardo Escorel em “Bethânia Bem de Perto”.

Registro em preto-e-branco, 1966. Trinta minutos. Tinha Maria 20 anos. A notoriedade conquistada três anos antes com “Carcará” (Joáo do Vale – José Cândido), no Teatro Opinião. Aquela lenda da cantora baiana que substituiu Nara Leão no Teatro Opinião, lembram-se?

Bethânia faz por onde se desvencilhar do rótulo de cantora de protesto e deixa bem claro que poderia dar – e dá – voz a outras canções e refrões que náo apenas ao “pega, mata e come”.

E canta Vinicius, Baden Powell, Paulinho da Viola, Luiz Gonzaga (acompanha-se ao violão, com andamento mais vagoroso, em “Olha pro céu”, com a corda Mi desafinada).

Closes mostram gestos grandes e jugular estufada de quem, aos berros, pretende demarcar sua área de atuação. Conseguiu! Quarenta anos depois, a voz ganhou densidade, vibratos vigorosos e, sobretudo, afinação.

A performance cênica evoluiu nas mãos de diretores teatrais – Fauzi Arap, o configurador – e a transformou na grande senhora dos palcos. Atriz? Cantriz? Intérprete, não se esqueçam.

O filme tem participações de Jards Macalé, Rosinha de Valença, Susana de Moraes e Caetano Veloso. A se observar: proposta para Bethânia se apresentar no exterior.

Susana mediando as negociações em inglês. Bethânia olha para cá, pra lá, não entende, lê uma revista, faz graça, fica alheia ao que se passa. Close.

Os dois filmes – “Pedrinha de Aruanda” e “Bem de Perto” – não se complementam. Apenas roçam-se. O de Andrucha é singelo. O de Bressane/Escorel, histórico.

A convergência está no magnetismo de uma cantora que soube impor suas vontades e traçar uma bem-sucedida trajetória sem perder a coerência em momento algum. Impossível não ver os dois DVDs com olhos interessados e cúmplices…

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