“DEUS É SAMBA, SAMBA É DEUS”
(RIACHÃO)
Telefono: “Estou aqui, cheguei”. Exatamente às 18 horas – conforme o combinado – o grande portão azul se abre numa residência da rua Prediliano Pita, no tradicional e antigo bairro Garcia, em Salvador. Bahia!!! Entro na residência ampla e bonita e observo a parede vermelha da sala de estar, por onde estão espalhados porta-retratos e condecorações. “Sente-se, fique à vontade, é só um minuto”, diz Jacson, sobrinho e empresário.
De repente, a alegria chega! Cheio de ginga, camisa colorida, boné, lenços nos bolsos da camisa e da calça, correntes, anéis e uma toalha sobre o pescoço. É Riachão, não há duvidas. Sambista maior da Bahia,a lenda vivíssima vem em minha direção com um sorriso imenso. “Salve, mestre”, saúdo com indisfarçável orgulho. Riachão me abraça como se velhos camaradas fôssemos. Oba!
Ele é deste tamanho – como cabe tanta alegria nesse homem de 87 anos? Mito do samba baiano, tema de documentário (“Samba Riachão”, 2001, de Jorge Alfredo), popularíssimo em Salvador, verbete sublinhado da cultura brasileira. A parede vermelha não é mais vibrante que ele: “Você é jornalista do Paraná, do frio, é?”
Sim senhor, sou norte-paranaense, londrinense por adoção. O baianês dele se instaura fortemente: “`Muitcho´ obrigado pela admiração. O artista só é artista depois de Deus, do público e da imprensa”, responde. Então, tá!
Clementino Rodrigues, nome de batismo. Riachão sinônimo de samba, apelido dado na infância por ser briguento, metido a valentão. A primeira composição feita aos 12 anos, sem título até hoje (“Eu sei que sou moleque, eu sei / conheço o meu proceder / deixe o dia raiar que a minha turma / é boa para batucar”).
Começou aos 23 anos na Rádio Sociedade da Bahia cantando músicas sertanejas. Um trio, que virou dupla, que virou Riachão apenas. Os companheiros se fizeram mais presentes na birita. Antes da música, foi aprendiz de alfaiate, gráfico, teve barracas, se virou.
Foi Antônio Maria – o próprio, outro ícone da MPB – quem botou gosto na verve sambista. Apenas três discos – um deles com Batatinha (Oscar da Penha, 1924-1997) e Panela -, o mais recente, um CD (“Humanenochum”), de 2001.
Quinhentas e tantas composições, entre elas a clássica “Cada macaco no seu galho (Chô, chuá)” defendida por Caetano Veloso e Gilberto Gil, num compacto de 1972, no retorno do exílio (regravada em 1993 no “Tropicália 2″); e “Vá morar com o diabo”, resgatada por Cássia Eller em 2001.
No entanto, foi Jackson do Pandeiro o primeiro artista de renome a gravar Riachão: entre 1957 e 1962 colocou na boca do povo “Meu patrão”, “Saia rota” e “Queima Judas”. Outros: Trio Nordestino, Roberto Ribeiro, Marinês, Gal Costa e Beth Carvalho. Sucessos: “Baleia da Sé (ou Umbigada da baleia”., “A morte do alfaiate”, “A tartaruga”, “Pitada de tabaco”, “Ousado é mosquisto”, entre outras.
Riachão vive bem, não depende dos direitos autorais, poucos, aliás. Voltou a fazer shows depois de se recuperar da morte da companheira Dalva, com quem viveu duas décadas, vítima de um acidente automobilístico no Rio de Janeiro, no começo do ano passado.
Senhor da própria felicidade, temente a Deus e malandro por natureza e no melhor sentido. Malandro dos bons, cronista do bom humor, da irreverência que me serviu um suco de umbu e disse baixinho: “Olha o que tomo agora”.
Eita, Riachão! Que felicidade, homem!
Você começou a cantar em rádio, certo?
Eu entrei no rádio com um trio cantando música sertaneja. Aliás, minha alma é sertaneja. Comecei na Rádio Sociedade da Bahia, empregado pelo(diretor artístico) Motta Neto. O primeiro diretor não me aceitou e cai fora mais meus companheiros. Eu cantei pra o Motta Neto, que era de São Paulo, e ele ficou encantado e perguntou se eu era da Bahia. Respondi que nasci no Garcia (bairro de Salvador), na Língua de Vaca.
Língua de Vaca?
É um bairrozinho, uma localidade onde tinha muita Língua de Vaca, uma folha usada para fazer efó (comida típica baiana) que é servido nas festas de São Cosme e São Damião. Até hoje dá no meu quintal.
Olha, só! Mas voltando ao rádio…
Era um trio, depois uma dupla e cantamos muitas músicas sertanejas. Eu tomava muita cachaça, mas era responsável, como sou até hoje. Mas meus companheiros bebiam cachaça e não tinham muita responsabilidade, não deu certo. Depois do Motta Neto veio o Antônio Maria para a rádio.
Antônio Maria, claro!
Grande figura. Até chegar a hora de o programa iniciar, eu ficava cantando meus sambas junto com o pessoal da rádio. Antônio Maria ficava nos cantos prestando atenção. Um dia, um companheiro meu falhou porque tomou muita cachaça. Fui buscar ele em casa, na Baixa do Sapateiro, e encontrei ele escornado.
Escornado?
No chão mesmo! Voltei e falei para Antônio Maria que não ia abrir o programa porque meu companheiro não tinha condições. Ele disse: “Não se importe, você a partir de hoje não trabalha mais com sertanejo. Você tem capacidade para trabalhar sozinho no rádio”. Deixei o sertanejo e passei a cantar meus sambas.
Tornou-se o sambista Riachão!
Bom, eu gosto do samba, toda a vida cantei samba.Quem gosta de samba, quem canta samba já tem felicidade na terra. O samba nasceu na Bahia porque o Brasil nasceu na Bahia e quem trouxe o samba foram os negros. Eles trouxeram o samba de roda, o samba de chula que é pai de todos os sambas. Meus sambas são filhos do samba de chula. Agora, do samba de roda veio a transformação. Sempre respondo: o samba nasceu na Bahia, mas quem lapidou e prosperou o samba foi o Rio de Janeiro.
Quantas músicas ao todo, Riachão?
Não tenho condições de lhe dizer exatamente… Já contei mais de quinhentas e tantas músicas entre sertanejo, samba e tango.
Tango?
Eu fiz tango sim… Ah, mais de 500 músicas no total
Você vive de direitos autorais?
Não. São coisas que não tenho condições de dizer: “estou feliz, ganho dinheiro”.
A sua convivência com Batatinha foi boa? Ele com os sambas tristes e você com a irreverência, como era?
Eu era o oposto do Batatinha, que foi meu grande amigo, a gente se dava muito bem. Ele trabalhava em jornal, era gráfico, e disse uma vez que era macaco de auditório meu. Mas Batatinha tinha a idéia de samba, cantou para nosso querido Antônio Maria que gostou e incluiu ele também como cantor na Rádio Sociedade da Bahia. Ficamos amigos, muito amigos.
Você sempre foi bem-humorado, Riachão?
Sou sempre assim! Você sempre vai me ver cantando porque tristeza não me abala.
Com qual música você gostaria de ser lembrado para sempre, Riachão?
(risos) “Somente ela”, gravada em homenagem à minha esposa Dalvinha,que morreu de acidente no Rio de Janeiro. Canta: “Somente ela, se estou com ela, minha vida é um paraíso/ somente ela, se estou sem ela, desassossego meu juízo/ De manhã é ela, no meio-dia é ela, de tarde é ela, de noite é ela, madrugada é ela. Amanhece o dia, eu e ela”.
O apelido Riachão é porque você era briguento?
(risos) Menino, eu era criança e eu ouvia os mais velhos falarem que os homens valentes, que brigavam muito, eram chamados de Riachão. Quando criança fui muito brigão. Respeitador, mas brigão. Quando um coleguinha não andava direito eu brigava mesmo! Resultado: quando estava brigando, os pais dos meninos vinham e diziam: “não brigue com ele, ele é um riachão”. Eu, menino, fiquei entusiasmado com isso.
Eu acho que você só brigava para ter o apelido de Riachão…
(risos). Não… Eu brigava com os meninos dos bairros… Por exemplo: quando estava jogando bola e via uma pessoa mais velha querendo atravessar eu mandava parar a bola. Depois que passava, mandava continuar a bola.
E ai se não parasse a bola, né?
(risos) Briguei muito, nego não! Joguei um pouco de capoeira…
Você usa muito o termo “malandro”, que hoje tomou um outro sentido. Você é um bom malandro?
Eu continuo sendo um bom malandro porque a palavra leva mais para uma pessoa que tem sabedoria no que faz, sem fazer mal. Tem uma música, não minha, que aprendi no Rio de Janeiro que diz: “Vou lhe dizer qual é a diferença/ que tem do malandro para o vagabundo/É que o malandro vive na cidade levando alegria”. Não me lembro direito, cantei muito. Gostaria que o rádio tocasse essa música porque malandro não é o que muita gente pensa. Malandro que é malandro não faz o mal.
O estilo é sempre assim? Camisa florida, boné, correntes, anéis e a toalha no pescoço?
É. A toalha vem da velha guarda porque todo bom malandro usava uma toalha ou um lenço no pescoço. Tenho várias toalhas.
Pra ser sambista precisa ter dom ou praticando se aprende?
Eu acredito que precisa ter dom, coisa dada por Deus. Eu não me preocupo em fazer música: a música desce assim, Deus manda.
Você compõe ao violão?
Não! A música vem às vezes no batuque, às vezes não. Pelejei pra tocar cavaquinho e violão, mas não deu certo. Comprei não sei quantos cavaquinhos e violões, não adiantou nada. (risos)
E o que você fez com os instrumentos? Plantou flores neles?
(gargalhada) Ficou por aí até se acabar. Meu violão é a boca mesmo (faz sons vocais)
Você gosta da axé-music?
Eu não tenho nada a dizer sobre esses jovens que fazem esse tipo de música. Eu cuido da minha música. Os outros ritmos que estão aí que têm valor porque tem muita gente gosta. Deixa o outro cantar o que quiser e cada macaco no seu galho.
Você fala muito em Deus também. Você é religioso? Católico, evangélico, do candomblé?
Vou lhe ser franco. Nasci na linha católica, de meus pais. Hoje, meu amigo, minha religião é a terra, o sol, a lua, as estrelas, o vento, o mar, relâmpago, trovão, tudo representa Jesus e Nosso Pai. Não me apego a nenhuma religião porque eu me apego mesmo ao Nosso Pai Celestial e só. E estou me dando muito bem.
Você tomava muitas biritas?
Ah, e como!
Esse “e como” é bom, hein?
(risos) Eu gostava da cachaça. Se tinha um elemento aqui em Salvador que tomava muita cachaça tanto quanto eu… Eu bebia demais, mas na decência, levando alegria, sem fazer ninguém triste por causa da cachaça. Há quatro anos não bebo mais a cachaça. Hoje tomo guaraná, uma cerveja Malzebier.
Você é um mestre, um sábio, uma festa! Estou emocionado diante de você…
Eu fico muito feliz pelo o que diz, pelas palavras carinhosas. Meu lema de viver é esse: querer bem aos meus irmãos, fazer bem. Sou feliz.
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