“POBRE DE QUEM ACREDITA NA GLÓRIA E NO DINHEIRO PARA SER FELIZ”
(DORIVAL CAYMMI)
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Foi Júlio, taxista e homem de impressionante sensibilidade musical, quem deu a notícia tão logo entrei no carro. Era de manhã, pensamentos se reordenando, cabelos molhados, sono ainda. Mais um dia de trabalho pela frente. O motorista esperou eu colocar o cinto de segurança, raro silêncio de meia quadra… Sinal fechado! Baixou o volume do rádio.
– Você soube que o Caymmi morreu? Por qual caminho nos vamos?
– Dorival Caymmi morreu? Quando foi que ele morreu?
– Vou pegar a Espírito Santo, pode ser?
– Caymmi morreu?
– Morreu…
– Sério, Júlio? Meu Deus! Jesus!
– Ouvi agora há pouco… Chato, né?
– Triste… Posso acender um cigarro?
– Pode.
Tragadas vigorosas. Uma vontade de chorar, aquela coisa de “me deu um negócio estranho por dentro”. Eu tão entregue às coisas que a vida vem me remetendo em série ultimamente. A cidade vinha. Fui ficando num silêncio absurdo. Não refleti sobre a vida e morte, algo comum a essas situações de pavor. Outro sinal fechado. Joguei os olhos fora.
– Pega a Castro Alves, Júlio!
– Nossa, Júnior, cê está triste?
Estava triste. Estou Triste. Não abalado, triste. Não desesperado, triste. Tristeza não pede acréscimos. Triste! Cheguei ao trabalho, um café – raramente tomo -, outro cigarro e a pergunta aos primeiros: “Dorival Caymmi morreu, vocês viram?”. Viram na televisão. Nenhum comentário sentido ou comovente. Nem um “putz” ou “pois é”. Morreu. A morte dói mais próxima.
Talvez Lufã me falasse palavras mais ou menos sentidas. Torpedo: “Tô triste! O mar perdeu seu cantador: Caymmi”. Retorno, voz.
– Não entendi o que você escreveu
– Caymmi morreu!
-…
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”Ioiô falou de mim?”, recordou Dona Maria dos Palcos! “Meus companheiros também vão voltar”. Rosa. Ventos.
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Dorival Caymmi, carne do Brasil, músculo do Bahia. De todos os Santos. Aiyê/ Orun. Sábado, dia de Oxum e Iemanjá – águas dourada e verdazuis-sal -, 16 de agosto de 2008. 94 anos. Sinhozinho (Solange lembrou esse termo) das singelezas, olhos de tantas ondas. Canções praieiras, urbanas. Ori ungido por Xangô e Iemanjá. Kawó Kabyesilé, Odô iyá. Oba de Xangô, título da roça Axé Opó Afonjá. Irmão de esteira de Carybé e Jorge Amado.
Vamos chamar o vento?
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Buda Nagô. “Gosto desse título. É um misto de África, Bahia e Índia, ou seja, aquele sorriso, aquela sabedoria… Eu tenho muito disso”, comentou com candura sobre a música que Gil fez em sua homenagem. Dorival é impar, Dorival é par. A voz de Caymmi ao telefone.
Fato: Stella Caymmi estava escrevendo a biografia do avô (“Dorival Caymmi – o mar e o tempo”, Editoria 34, primeira edição em 2001). Em Salvador, 1999, comentei com um colega jornalista o fato. Contou-me que demorou um bocado para entrevistar Dorival. Que estava passando uma temporada numa casa em Pequeri, Minas Gerais, por conta da recuperação de sua mulher, Dona Stella Maris.
– Me dá o contato dele, você tem?
Tinha. Passou o telefone de uma senhora muito amiga da família Caymmi mediante a recomendação de que fosse bem discreto na abordagem. Fui. Liguei. A senhora – cujo nome sinceramente não me lembro – falou que Dorival e Stella eram amáveis, que os conhecia há muito tempo, que isso e aquilo e que e que e que… tinham retornado ao Rio de Janeiro.
– A senhora poderia me passar o telefone?
– Será? Olha lá, hein!?
Falei para Célia, minha editora, sobre o fato.
– Vamos fazer essa matéria para domingo?
Liguei. O telefone chama, chama, chama: “Alô”. Apresento-me à empregada, digo o que quero, que falaria rapidamente e que e que e que e que… “Um momento”
O momento:
– Alô?
– Dorival?
– Sim…
Nova apresentação.
– Prometo não tomar muito seu tempo…
– Fique à vontade…. Você é de Londrina?
– Sou sim. A Bahia está viva ainda lá?
– Ah, essa frase é minha, por isso, desculpe o excesso de vaidade… A Bahia está viva ainda lá, com a graça de Deus ainda lá.
Caymmi em prosa. Quase uma hora de entrevista. Esperava um “não” ou algumas “ palavrinhas” . Palavrinhas? Hum, volumes de reflexão. No final da entrevista, me pediu:
– Você poderia me mandar um xérox do sua reportagem? Anote meu endereço…
Achei tão simples a palavra xérox. No envelope, alguns exemplares. E agradecimentos. Amor!
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Entrevista emoldurada. Na parede. Vira e mexe passo o dedo indicador e a leio.
Existe uma fórmula para o homem se feliz?
Não existe uma fórmula. Você tem que condensar uma porção de coisas e eliminar da mente, de preferência na meditação noturna ou no amanhecer ou numa caminhada solitária, os pensamentos marrons. É preciso eliminar os pensamentos escuros; tem que ficar com a mente no azul, no verde claro, no branco, na paz. Tem que usar todos os sentidos para ver a beleza, sentir a beleza. Tem que definir bem o que cheira bem e o que não cheira bem. Ir sempre para o lado da rosa.
A morte lhe assusta?
Não, não me assusta porque a morte é condição natural como o nascimento. A gente adquire o conhecimento de que vai morrer um dia. Nascer para mim é que continua sendo um mistério por mais que a ciência explique. Agora, sempre chega aquele dia em que você sabe que está ruim mesmo, fecha os olhos e vai. E vai com plena consciência de que está indo.
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É noite em Londrina. José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski – pescadores de pérolas. Aos poucos. Ribalta do Teatro Ouro Verde iluminada; público respeitoso; poesia nas letras das canções. Muito silêncio. O silêncio das noites de luto cheias.
Wisnik interrompe o transcurso natural do roteiro:
– 16 de agosto de 2008. O dia em que Dorival Caymmi se tornou, definitivamente, música: “Coqueiro de Itapuã, coqueiro… “
Hai-kai de Buda Nagô. Pouquíssimas palavras evocando turbilhão de imagens- sensações: coqueiro, areia, morena, vento, flor. Águas (salgadas). Eu nunca tive saudade igual, Caymmi. A jangada voltou só no mar dos meus pensamentos. Cantei com Wisnik o réquiem que brotou de seus dedos, no sagrado violão. Quem nos trará notícias daquela terra? Eu nunca fui à Bahia, meu nego. Foi ioiô – homem de bom peito; pra cantar não tinha vez – quem me trouxe todos os cheiros, gostos e visões desta gente morena.
No bis , “ Maracangalha”. Londrinenses em coro. Caymmi em domínio público. Wisnik de uniforme branco. Diz a lenda que ele demorou sete anos para finalizar “Maracangalha”. O que se faz com tempo, o tempo respeita, sim. Dorival sabe exatamente a extensão do eterno. Pouquíssimas canções ao longo da vida: todas para sempre.
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“E assim adormece esse homem
Que nunca precisa dormir pra sonhar
Porque não há sonho mais lindo do que sua terra
Não há.”
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“Se sabe que muda o tempo, sabe que o tempo vira, aí o tempo virou”
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O Brasil todo – até aquela parcela afeita a obituários e comoções voláteis – já sabe que Caymmi fechou os olhos, deixou 120 músicas registradas em 20 discos solos. É por aí… Minha casa em silêncio está; sem disco, sem som, sem harmonia.
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Dorival, eu sinto muito…
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(Colaborou o jornalista Renato Forin Jr.)
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