Longos vestidos – brancos, de preferência –colares, contas bentas, ori por vezes coberto, pulseiras, canto volumoso, a ginga dos braços e quadril. Samba! Baiana estilizada, persona artística? Talvez. Mineira com forte sotaque carioca, os “esses” sibilados. No canto e no pescoço os desígnios afros, a mitologia do candomblé, sua religião. Filha de Ogum com Iansã. Forte junção.
Clara Nunes foi – continua sendo ainda – uma grande verdade da música brasileira. Converteu-se ao samba, embora achasse reducionista o rótulo de sambista. Gostava de ser chamada de intérprete. Eu a via como uma espécie de divindade quando, na tela da televisão, aparecia toda em babados e contas e pés descalços ou sobre enormes plataformas.
As vestimentas, as mãos orquestrando o próprio canto… A sala emudecia quando ela saltava para dentro das casas, nas noites de domingo, em performances que promoviam comentários dos mais desiguais; e ninguém tirava os olhos dela. A viagem ao tempo de Clara Nunes é possível através do DVD “Os musicais do Fantástico das décadas de 70 e 80” (Globo Marcas/Emi Music).
São 21 clipes resgatados de programas exibidos entre 1974 e 1983. Digitalizados, editados. Boa amostragem mesmo que os efeitos especiais – disponíveis na época – resvalem no kitsch aqui ou ali. Clara Nunes dublava-se em cenários datados, vistos com olhos de agora. A maioria dos clipes ao ar livre.
Os sambas de Clara caiam no gosto popular pelas belezas melódica e literária – revestidas em camadas leves – e dotes interpretativos, o grande trunfo. “Conto de areia” abre os trabalhos. Vem do disco “Alvorecer” (1974), com o qual Clara se afirmou como sambista com norte certo. Nos primeiros álbuns, em que pesem obras de Tom, Chico, Noel Rosa, Aldir Blanc, Caymmi, Nelson Cavaquinho, entre outros notáveis, havia indefinições estilísticas e arranjos robustos. Vieram a público com títulos singelos como “A voz adorável de Clara Nunes” (1966) ou mesmo “A beleza que canta” (1969).
Compilação valiosa – O DVD centra-se em sambas por ela popularizados, mas abre-se à cadência menos ostensiva na caymminiana “É doce morrer no mar”, na melancólica “À flor da pele (raríssima composição em parceria com Maurício Tapajós e com o então marido Paulo César Pinheiro; os créditos foram subtraídos) ou mesmo em “Sagarana” (viola pontuada dos Gerais), “Viola de penedo” e “Oricuri – segredo dos sertanejos” com levadas nordestinas. Adoniran Barbosa lá está em “Abrigo de vabagundo” em que mal canta…
Há imagens fortes – alguns absurdos também como ela cantando num rio onde “correm” fumaças” – que valem ser revistas. Em “Guerreira” o zoom busca toda a expressividade do rosto de Clara e braços erguidos, saravá! Outro momento bonito: em “Nação” está, num dos takes, sentada num trono com vasta cabeleira adornada com flores – uma divindade, velas ao redor.
Sempre bem vestida – aos padrões dos anos 70, lembremos- e adornada com patuás e guias, os penteados milimetricamente confeccionados até o “encrespamento” dos cabelos, Clara era a mestiçagem que o Brasil adorava ver. Aliás, o visual e os cantos de trabalho ajudaram a retirar um pouco o preconceito contra a estética afro-brasileira, conforme frisa Vagner Fernandes, autor da biografia “Clara Nunes – guerreira da utopia”.
“Clara Nunes – Os musicais do fantástico…” é uma abrangente compilação. Mostra o crescimento de Clara Nunes como intérprete, que ia do samba- canção, passava pelo samba – exaltação e sambas com citações afros e ijexás. Sorridente sempre, o primeiro DVD de Clara Nunes ilumina a memória.
“Muito batom e muitas pulseiras” – Clara pôs terra abaixo a máxima de que cantora não vendia discos no Brasil – os 15 projetos lançados em 18 anos de carreira discográfica ultrapassaram 10 milhões de cópias. Além de Maria Bethânia, foi a primeira intérprete a atingir a casa do um milhão de unidades comercializadas: “Guerreira” (1978) e, na seqüência , “Brasil mestiço” (1980). Mesmo refutando o rótulo de sambista era, ao lado de Alcione e Beth Carvalho, apontada como uma das rainhas do gênero mais popular o Brasil – a “Marrom” descambou, o cetro ficou com Elizabeth.
A falha do DVD está em não contextualizar a importância de Clara Francisca Gonçalves Pinheiro, nome de batismo. Não há entrevistas, depoimentos (o próprio biógrafo, por exemplo, poderia ter dado o ar da graça), um “a” da cantora. As imagens dão dimensão do talento, mas no país do registro audiovisual uma breve apresentação, que fosse, a quem tanto “ancorou” o Fantástico, seria muito bem-vinda.
Disse ela numa entrevista: “Sinto Deus no momento de cantar. Antes de entrar em cena, tenho um friozinho na barriga. Convoco todos os santos e depois vem aquele prazer de ver a reação estampada no rosto das pessoas. Cantar para mim é como respirar, eu não saberia viver sem isso”.
Também declarou: “Sou feminista apenas pela emancipação da mulher, mas pelo amor de Deus, vamos manter a feminilidade”.
Mais: “Minha mãe morreu de amor, eu também seria capaz disso”.
Também: “Não tenho medo de morrer e muito menos de envelhecer. Quero ficar uma velha da pesada, rosto corado de rouge, participando de tudo, com muito batom e muitas pulseiras”.
As pulseiras de Clara pararam de tilintar na madrugada de 2 abril de 1983, após uma malsucedida cirurgia. Tinha 41 anos incompletos. O corpo foi velado na quadra da Portela, uma de suas paixões. A guerreira que não temia quebrantos mitificou-se!
……………….
Sugestão para comentários:
– Qual ou quais músicas de Clara Nunes você guarda na memória?
………………..
REPERTÓRIO DO DVD
* Conto de areia (Romildo- Toninho), 1974
*É doce morrer no mar (Dorival Caymmi), 1974
*Você passa eu acho graça (Ataulfo Alves – Carlos Imperial), 1975
*Macunaíma (Norival Reis –David Corrêa), 1975
*A deusa dos orixás (Romildo – Toninho), 1975
*O mar serenou (Candeia), 1975
*Coisa da antiga (Wilson Moreira –Nei Lopes),1977
* À flor da pele (Paulo César Pinheiro – Clara Nunes – Maurício Tapajós), 1977
*Sagarana (Paulo César Pinheiro – João de Aquino), 1978
*Guerreira (Paulo César Pinheiro – João Nogueira), 1978
*Banho de manjericão (Paulo César Pinheiro – João Nogueira), 1979
*Na linha do mar (Paulinho da Viola), 1979
Abrigo de vagabundo (Adoniran Barbosa), 1979
*Feira de mangaio (Sivuca – Glorinha Gadelha), 1979
*Viola de penedo (Luiz Bandeira), 1980
*Morena de Angola (Chico Buarque), 1980
*Oricuri – segredos do sertanejo (João do Vale-José Cândido), 1980
*Portela na avenida (Mauro Duarte-Paulo César Pinheiro), 1981
*Como é grande e bonita natureza (Sivuca – Glorinha Gadelha), 1982
*Nação (João Bosco- Paulo Emílio – Aldir Blanc), 1982
*Ijexá-Filhos de Gandhi (Edil Pacheco), 1983
Moraes eleva confusão de papéis ao ápice em investigação sobre suposto golpe
Indiciamento de Bolsonaro é novo teste para a democracia
Países da Europa estão se preparando para lidar com eventual avanço de Putin sobre o continente
Em rota contra Musk, Lula amplia laços com a China e fecha acordo com concorrente da Starlink