Vamos deixar uma coisa bem clara: Célia não canta, interpreta. Ocupa-se em entender o que uma canção – letra, em especial – pede para expressar melhor seus sentimentos.
É assim em discos e, principalmente, no palco onde se ampara nas marcações e toques de profissionais de teatro. ”Eu não quero a perfeição que muitas cantoras têm e que se portam como mais um músico da orquestra”, argumenta.
Ela tem razão! Quem quiser conferir o que a intérprete paulistana é capaz de fazer em cena não pode faltar ao espetáculo que fará nos dias 5, 6 e 7 de março, no Teatro Paiol, em Curitiba. Célia estará acompanhada de Cida Moreira – outra artista imensa- e das meninas do grupo O Tao do Trio.
No repertório, canções de Maysa, Dolores Duran e Sylvia Telles, num espetáculo concebido pelo produtor musical e pesquisador Thiago Marques Luiz. Anota aí na agenda!
Com quase 38 anos de trajetória e dez discos gravados, Célia é uma das artistas mais coerente da música brasileira. Nunca abriu concessões. Talvez isso explique o porquê de não ser uma cantora – no sentido amplo do termo – de hits radiofônicos.
Em compensação, aclamações positivas – de público e crítica – lustram o currículo exemplar. Nas casas noturnas e teatros paulistanos, há um público cativo sempre apto às palmas – aliás, aonde leva seus espetáculos o reconhecimento é igualmente onomatopaico.
Célia foi revelada em 1970 no programa do polêmico apresentador Flávio Cavalcanti, em quadros como “Um instante, maestro!”. Saiu vitoriosa e, de quebra, ganhou a amizade de Maysa, totem da MPB. “Ela era uma pessoa extremamente generosa”, resume.
Elis Regina era outra ilustre admiradora. O primeiro disco veio em 1971. Obteve popularidade com “Onde estão os tamborins” (Pedro Caetano), gravada quatro anos depois.
O mais recente projeto é “Faço no tempo soar minha sílaba” feito em parceria com o violonista Dino Barioni – um amplo panorama musical com canções de épocas distintas e convidados como Zélia Duncan, Dominguinhos, Lucinha Lins e Beth Carvalho. Saiu pela Lua Music. Um álbum em que a intérprete de 61 anos imprime seu timbre ora espesso, ora delicado. Tamanho!
Célia possui um bom humor admirável. Diz na lata que não gosta da música sertaneja atual (“parece que todos nasceram em dupla”), fala do aprendizado com a atriz e diretora Miriam Muniz (“a primeira coisa que ela me disse foi que parecia veado que mãe não sabe porque fazia gestos pequenos pra não dar bandeira”) e fustiga a axé music (“Da Ivete Sangalo eu gosto até a página 2”).
A intérprete estudou violão clássico e popular, harmonia, teoria e comunicação. Ou seja, fala de igual pra igual com músicos. Mas não compõe. Diz que não nasceu para a coisa. “Sou virginiana e se eu não consigo fazer músicas como Jobim e letras como o Chico, prefiro cantar o que está pronto”, diz.
Depois que fizer algumas apresentações no exterior, entra nesse ano ainda em estúdio para gravar novo disco só com composições de João Bosco e parceiros. Releituras e, provavelmente, uma ou outra inédita. Na lista de convidados deverão constar, além de Bosco, Ney Matogrosso, Emílio Santiago e um outro “amigo” com quem está conversando. Não quis revelar detalhes.
Uma coisa é certa: o quem vem dessa mulher é de qualidade. Afinal, como ela mesma diz, o grande preconceito que tem é contra o mau gosto musical. Portanto…
A seguir, trechos da entrevista que Célia concedeu ao blog Sintonia Musical.
Você foi amiga da Maysa, né?
Tive muita amizade com a Maysa. Falavam que eu era muito parecida fisicamente com ela no começo da minha carreira. Fui lançada pelo Flávio Cavalcanti no “Um instante, maestro!” e num outro programa comandado por ele. No “Um instante, maestro!” havia um júri composto pelo Denner (costureiro), Márcia de Windsor e a Maysa fez parte. Portanto, duas vezes por semana ficávamos muito juntas. A diferença dela para mim era de 15 anos, mas ela era uma mulher jovem, moderna, bonita e gostava muito de mim como cantora.
Bom começo de carreira, hein?!
Ah, sim. Maysa era uma pessoa extremamente generosa. Uma vez o Flávio Cavalcanti pediu para ela me dar uns conselhos. E ela: “Não, não, já conheço a Célia, ouvi o disco dela. Para uma cantora como ela a gente não dá conselhos, a gente pede”.
Você é uma das artistas mais coerentes. Nunca teve sucessos radiofônicos estrondosos, nunca apelou no repertório e é prestigiada. Qual a fórmula?
Eu acho que além de ser verdadeira tem que ter bom gosto musical. Não adianta eu ser incoerente com a minha verdade. Por exemplo, eu detesto música sertaneja.
Finalmente alguém assume não gostar disso…
Eu nunca gostei. Gravei “Tristeza do Jeca” e “Guacyra”… Eu gosto muito de Tonico e Tinoco e também do Renato Teixeira, que fazem músicas sertanejas verdadeiras. Ao contrário desses boleros “mariachi” que faz parecer que todo mundo nasceu em dupla. Dessas coisas não gosto não, assim como axé… Eu agüento axé até umas duas músicas.
Você é uma intérprete. Que assinatura imprime nas músicas que escolhe?
Primeiramente, eu gosto de música bem feita, mas prefiro a letra, gosto de dizer aquilo que está escrito. Gosto do subtexto, do que está nas entrelinhas. Por isso sou intérprete. A cantora que canta é aquela que vira o sexto músico da orquestra. Ou seja, há piano, baixo, bateria, guitarra, percussão e ela. Temos cantoras maravilhosas que não são intérpretes como a Leny Andrade. São cantoras que não se preocupam muito com a expressão das mãos, do rosto.
Quando você fala em mãos e rosto significa que há uma preocupação cênica?
Ah, tem que ter. Para mim, cantor e intérprete têm que ser inteiros, não podem ser dissociados. Por exemplo, a Bethânia é uma cantora que algumas pessoas dizem que ela atravessa. Mas eu prefiro ouvir uma cantora que atravessa e interpreta do que uma cantora que canta com perfeição e não me passa muita emoção. Eu posso ter até alguns defeitos como cantora, mas eu não quero essa perfeição que muitas cantoras têm e que se portam como músicos. Bom, cada um faz o que quer, eu sou uma intérprete.
Você é uma cantora que se consagrou na noite paulistana. Não quero dizer que você veio da noite paulista, foi levada ao Flávio Cavalcanti e pronto, certo?
Eu cantei em boate muito pouco. Quando eu comecei a cantar já comecei fazendo shows. Eu fiz uma espécie de curso porque não sabia nem segurar o microfone direito. Eu nunca fui crooner.
Ou seja, quando não está com show de extensão de um disco, você monta um espetáculo e leva determinados lugares. É assim que funciona?
Sim, levo para determinados lugares que podem ser, inclusive, boates, mas que tenham estrutura para show. Nunca cantei em barzinhos, que é legal, mas infelizmente não tive esse prazer. E tem uma coisa: eu só faço shows que tenham direção de alguém de teatro. Já trabalhei com a Miriam Muniz, Irene Ravache, Ademar Guerra, Osvaldo Mendes, só para citar alguns.
Bem, trabalhar com a Miriam Muniz deve ter sido um aprendizado. Ela era muito rigorosa, é verdade?
Ela era uma grande atriz. A gente ia chamá-la exatamente para que fizesse da gente uma intérprete. A primeira coisa que ela disse para mim foi: “você parece veado”
(gargalhadas) Assim, na lata?
(risos) É. Eu disse a ela: “Cobra!”. E ela: “parece veado que a mãe não sabe, então precisa fazer gestos pequenos pra não dar bandeira. Você é alta e gorda e acha que se fizer gestos grandes vai ficar maior do que é”.
Depois desse conselho…
(risos) Foi ela a pessoa que despregou meus cotovelos da cintura. Antes era aquela coisinha de mãozinhas para trás… Com o tempo fui aprendendo, por exemplo, que numa música você tem que escolher uma pessoa na platéia como se ela fosse o seu amor e estabelecer uma relação. Isso sem deixar a pessoa sem jeito. Tem que passar o sentimento certo da música.
O que você acha dessa geração que está aí? Sei que você gosta, por exemplo, da Zélia Duncan…
A Zélia é minha irmã, minha estrelinha, sou apaixonada por ela. Tem uma moça chamada Fabiana Cozza, que diz ser minha filha musical e me chama de mãe às vezes. Ela canta muito parecido comigo, o gestual é muito parecido com o meu. Isso já foi declarado em alto e bom som que ela é minha seguidora.
E do eletrônico, essa fusão do samba com eletrônico, por exemplo?
Eu acho ótimo. Eu adoro o Marcelo D2
Olha só!
Adoro, adoro, acho o máximo o D2. Gosto do Jota Quest, dos Titãs… Ora, eu comecei cantando rocks do Ivan Lins. Eu tenho um preconceito só: o mau gosto.
Para mim, mau gosto está muito ligado ao que se chama de música sertaneja atual…
Não gosto dessas coisas breganejas (ela imposta a voz para cantar), dessas coisas horrorosas. Se vejo na televisão, mudo de canal, tenho essa opção através do controle remoto. Da Ivete Sangalo eu gosto até a página 2 porque depois fica tudo igual. Ela canta bem? Canta. Ela se comunica? Claro que se comunica. Ela é maravilhosa? Não, não é. Vamos ver se ela faz outra coisa. Porque esse tipo de música qualquer um canta, até minha filha que é desafinada (risos).
Agora, você estudou violão clássico e popular, harmonia, teoria, composição e não compõe. Não é fim da picada?
Sou virginiana além de tudo isso que você falou. Se eu não fizer músicas iguais ao Jobim e letras como o Chico Buarque prefiro só cantar porque já está bom (risos)
Aí também é apelar, né?
Não tenho essa capacidade de compor. O máximo que eu iria fazer era um “Arerê”. Prefiro ser uma intérprete, a uma cantora e compositora. E como intérprete tomo muito cuidado com os exageros. Sou contra essa coisa de sair rasgando, cortar os pulsos. Não faço essa linha.
O fato de ser gorda alguma vez a incomodou?
Claro que se eu fosse magrinha teria mais agilidade. Mas já que não sou, vou ser gorda e que bom. Sou uma gorda saudável, não tenho grandes problemas de saúde. Eu tinha obesidade mórbida, atualmente não. Tenho que ter todo um cuidado com alimentação, alongamento, natação.
Fala sobre a música para mim.
A música me proporcionou tudo de bom. Existem duas coisas que eu não viveria sem: minha filha e a música. O resto eu passo batido. Gosto muito dos meus amigos, gosto de ficar com eles, mas amo minha filha e minha música.
Quando se está apaixonado se canta melhor, hein?!
Paixão pela música você passa pra um todo, a várias pessoas. Agora, quando se está apaixonado a paixão é exclusiva para uma pessoa. Você demonstra, faz amor legal, é feliz. Mas primeiro tem que se amar aquilo que você faz. Eu prefiro a música a um grande amor porque a música é um grande amor. Uma vez tive que escolher entre o casamento e a música, escolhi a música. E não me arrependi
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