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Foi Helena Meirelles quem me disse a frase do título, certa vez. Aliás, Dona Helena Meirelles. Ela mesma, a violeira, cantora, compositora, transgressora. Bicho bravo, onça, cobra de bote certeiro quando ameaçada.

Mais que isso, senhora de lógicas fortes que soltava palavrões com a mesma ênfase que agradecia a Deus por ter dado o dom de tocar viola e conceder um destino escrito em mal traçadas linhas- ao ver dos outros.

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Por que falo dela? Insistências subjetivas exigem instauração de realidades. Eu sigo sinais, meu caros. O primeiro: no meio dos arquivos impressos, mexidos dias atrás, lá estava uma reportagem que fiz com ela. Reli.

O segundo: vontade inexplicável de ouvir Dona Helena tocando “Merceditas”. Terceiro: um breve sonho. Quarto e decisivo: na locadora, meus olhos se detiveram no DVD “Dona Helena”, da diretora Dainara Toffoli.

Não conhecia o quarto e designativo sinal a mim enviado. Até então, tinha conhecimento de que a sul-mato-grossense Helena Pereira da Silva Meirelles (1924 – 2005) havia sido muito bem retratada apenas em “A Dama da Viola”, de Francisco de Paula.

Assisti ao documentário em 2005, durante o Festival América do Sul, realizado em Corumbá (MS). Fiquei comovido ao ver Dona Helena – o próprio cineasta também a tratava com essa reverência – sem retoques na tela de cinema. “Encontrei a personagem pronta”, disse Francisco de Paula, na época.

“A Dama da Viola”, rodado todo no Mato Grosso do Sul, exigência da protagonista, estreou oficialmente em setembro de 2004, no FestRio. No mítico Cine Odeon. Na platéia, críticos, jornalistas, atores e a própria Helena que, vejam só, entrou pela primeira vez num cinema para assistir a filme sobre sua vida.

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Quis saber o que ela achou sobre aquilo tudo? Ela me respondeu com aquele jeitão cativante: “O filme me retratou muito bem, sim. Olha, estou pra te dizer que foi a maior alegria da minha vida. Imagina logo eu, que me criei no sertão do Mato Grosso vendo todo mundo famoso, aqueles atores famosos batendo palma pra mim”.

Foi a última vez que conversei com Dona Helena Meirelles. Maio de 2005. Quatro meses depois, ela morreria aos 81 anos. Doeu tanto em mim.

Ao contrário de “A Dama da Viola”, “Dona Helena”, da diretora gaúcha Dainara Toffoli, produção de 2005, está disponível em DVD. Filme igualmente sincero sobre a senhora violeira do pantanal que desenvolveu uma técnica fantástica de tocar e solar, de fazer falar a viola de 6, 8, 10 ou 12 cordas.

Reconhecimento: a revista norte-americana Guitar Player a colocou, em 1993, entre os 100 melhores guitarristas do mundo, ao lado de monstros pesados como Eric Clapton, Roger Walter, George Benson, Jimi Hendrix, B. B. King, só para citar alguns.

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A produção também reconta a história de Dona Helena, que desde criança sabia que a viola era melhor que as letras – ela aprendeu escrever apenas o nome – e que para moldar sua alma libertária teria que passar – e passou – por cima de convenções e os cambaus. “Eu tenho sangue de tudo quanto é bicho perigoso e venenoso. Eu já fui cobra, viu?”, alerta no início do documentário, dourando ainda mais sua figura mítica

Largou filhos (11, todos paridos por ela mesma), deixou maridos ouvindo o vento por conta da viola, que tocava onde havia ouvidos por troca de alguns trocados e comida. Nos bordéis, fez seu nome. Tocou, bebeu, fumou, se “advertiu” muito, se atracou com homens, inclusive quando desacatada.Fêmea brava! O pau comeu muitas vezes. Literalmente.

As filmagens – captadas basicamente em Presidente Epitácio, interior paulista – começaram em 2002. Retomadas dois anos depois. Depoimentos interessantes e importantes, como o sobrinho Mário de Araújo (produtor do primeiro disco) que enviou o material à revista Guitar Player e Inezita Barroso, a primeira a abrir espaço para Helena se apresentar num programa de televisão.

As duas produções – e aqui não cabem menções comparativistas – eternizam em áudio e som a incrível trajetória pessoal e profissional de Helena Meirelles. Mostram a quem souber merecer uma pedra bruta e preciosa do Brasil.

Claro, a oralidade espontânea e espirituosa – impossível não rir – de Dona Helena é fascinante. Os casos e causos pelos quais viu e, principalmente, protagonizou são incríveis. Roteiro pronto.

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No entanto, os dois documentários se preocuparam – e muito – em valorizar a arte sonora da senhora. Não há didatismo, só Helena dominando a viola – a segurança de quem de explora timbres improváveis e reproduções de sons de pássaros nas cordas.

Já ouviram “Guaxo”?. Pois ela solou o som do vôo desse pássaro apaixonado por laranjeiras. Autodidata, toques virtuosos. Sonoridade com acentuado sotaque paraguaio, tradução perfeita da música fronteiriça .

Quatro discos apenas, o primeiro gravado aos 69 anos. E dois documentários para que o Brasil veja uma de suas faces mais fortes e sonoras. Raízes profundas.

“Vamos conversar logo” – Data exata não me lembro, nem mesmo o antiquado periódico da cidade tem notícias – tudo lá está tão perdido, sem rumo, sem condução adequada, sem memória, nem gosto dá mais em falar o nome, uma judiação!!! Mas nunca vou me esquecer a primeira entrevista com Dona Helena, em meados de 90, que lá foi publicada, num tempo de cultura e gente sóbria. A recomendação: chegar devagar porque o o pavio dela era curto. Tá!

Cheguei, me apresentei. Ela me lançou olhos frios, tesos. Poucas palavras e um “então, vamos conversar logo”. Recontou – sempre com novas cores – tudo o que lhe ocorreu até chegar à consagração nacional e internacional. Sempre com comentários espirituosos.

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Foi se soltando até que surgiu o primeiro de uma série de palavrões que soavam como vírgulas. Na soavam ofensivos, eram próprios de seu vocabulário. Eu ria! Ela também ria de si mesma. A conversa foi longe… Deliciosa.

Dona Helena era um doce. Fui dar um beijo de despedida, ela quase se esquivou. Acabou cedendo. Eu a abracei. Correspondência. Beijei suas mãos, disse que ela era uma força da natureza. Soltou um “puta que pariu” no ar em forma de agradecimento porque ela se sentia aquilo mesmo: uma força da natureza. Disse também que não dava mole para a tristeza, não se ocupava muito com isso, tinha que viver!

Ah, Dona Helena… Viver intensamente é o melhor sinal. Reaprendi após noites sem luas, sem Deus, sem nada. Eu num canto qualquer do meu esquecimento. Momentos tão tristes. A vida indo e eu ficando… Alguém já se viu pelo avesso? Eu me vi.

Refeito de temores, eu agora quero também pintar o sete. Com as melhores cores! Cores vivas!

Vivas!

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SERVIÇO:

HELENA MEIRELLES, A DAMA DA VIOLA. Documentário do diretor Francisco de Paula. Narração do ator Rubens de Falco. Ano de lançamento: 2004. Duração: 75 minutos. Não está disponível em DVD

DONA HELENA. Documentário da diretora Dainara Toffoli. Ano de lançamento: 2004. Duração: 55 minutos, além de extras. Distribuição: Europa Filmes

DISCOGRAFIA

HELENA MEIRELLES (1994), FLOR DE GUAVIRA (1996), RAIZ PANTANEIRA (1997),DE VOLTA AO PANTANAL (2003).

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