Chego ao hotel para a entrevista e a encontro dentro de um terninho preto básico e com espetaculares sombras nas pálpebras. Há traços evidentes da persona artística. Está na cara! No entanto, Maria Alcina faz questão de frisar que na vida real nem todo dia é dia de fortes pinceladas. “No dia a dia eu sou uma bagaça. Pode escrever aí”, diz ela bem-humorada para deixar bem claro que o carregado visual exótico fica restrito mesmo ao habitat natural, o palco.
Um pouco tímida, aos poucos Alcina vai se soltando e falando sobre sua trajetória artística iniciada em 1972 quando arrebatou o Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, com “Fio Maravilha” (do então Jorge Ben). Não ganhou o Festival Internacional da Canção, mas a performance memorável arrebatou meio mundo. Tornou-se uma das cantoras mais populares do Brasil.
Em compensação, incomodou um bocado os censores da ditadura militar, que viam nela algo de subversivo. Sofreu pressão, respondeu a processo por atentado ao pudor – pode? – e assim mesmo contornou a situação. Prosseguiu rumo ao próprio canto – intransferível – das figuras latentes do imaginário popular. Uma musa pós-tropicalista que tem Carmen Miranda como uma das principais referências. Alcina é o Brasil em sorriso largo e alegre. Multicolorido.
Pois bem, a voz grave e o jogo cênico particular – e claro, muitos brilhos e irreverências mil invadiram o palco no Bar Valentino, em Londrina, na sexta-feira (30.10.09. A tradicional e mais democrática casa noturna celebra 30 anos de existência com Maria Alcina – tinha que ser alguém à altura, certo? A cantora apresentou o show “Confete e Serpetina” , nome do celebrado disco vencedor do Prêmio da Música Brasileira 2009 na Categoria Popular (Melhor Álbum e Melhor Cantora).
No palco, a intérprete mostrou canções gravadas recentemente como a marchinha “Espaço Sideral”, “Não Para”, “Colapso”, além de hits como “Kid Cavaquinho” e “Fio Maravilha”. Houve tributo a Carmen Miranda e canções de imediata empatia como “Prenda o Tadeu”, ‘É mais embaixo” e “Bacurinha” – duplo sentido sim, extraídas do Pastoril, manifestação folclórica de Pernambuco. Para acompanhá-la, foram escalados três músicos locais: Ricardo Penha (baixo), Clécio Borici (teclado), Paulinho Saca (bateria), além do seu diretor musical e violonista Sérgio Arara.
Aos 60 anos de idade e 38 anos de carreira, Maria Alcina não sabe exatamente quantos títulos (entre elepês, compactos e Cds) constituem sua discografia. Poucos, avisa. “Não gravei um disco por ano e, por isso, minha carreira não obedece à lógica. Fiquei muito tempo sem gravadora”, informa a mineira de Cataguases. Quando não podia colocar voz em estúdio, atuou como juradas de programas de auditório. Havia verdade artística, garante.
Mais que verdadeira, Alcina é sobretudo uma pessoa bem resolvida – seja nos clássicos cravados, nas canções de duplo sentido ou mesmo nas incursões eletrônicas com as quais se reinventou em 2002 e que resultaram nos CDs “Agora” e “Confete e Serpentina”.
Ora, ora, um mito não sucumbe facilmente. Ela aí está: firme e forte. Brilhante em todos os sentidos.
A seguir trechos da entrevista que Maria Alcina concedeu ao blog Sintonia Musical em que fala de sua trajetória com direito a passagens pitorescas e muito bom humor.
Fiquei passado quando soube que a ditadura militar achava que você tinha comportamento subversivo. O que você fazia aos olhos daqueles canalhas?
Pois é! Na década de 70, todas as pessoas que ofereciam alegria eram consideradas subversivas. A alegria é subversiva! Minha carreira aconteceu no pior período da ditadura. Então, o jeito que eu cantava, o jeito que eu falava parecia incomodar.
Você recebia ordens expressas, havia perseguição?
Eu tive um acompanhamento básico (risos). Numa época fui acusada de comportamento subversivo e fui tirada do ar durante 20 dias. Não podia cantar em lugar nenhum, aparecer em lugar nenhum. E ainda respondi a processo por atentado ao pudor e à moral.
Que coisa! Apesar dos pesares, você está ligada à memória coletiva. A que se deve isso?
À minha verdade. O que tenho de verdades artísticas eu chego e falo: “é isso”. Havia verdade, inclusive, quando eu participava na televisão como jurada de programas do Raul Gil, Bolinha, Ney Gonçalves Dias e Barros de Alencar.
Você passou uma temporada fazendo circos, certo?
Eu passei três anos e meio fazendo circos. Havia as atrações circenses e depois eu entrava fazendo meu show.
A platéia de circo é diferente?
Para mim não existe esse negócio de “a melhor platéia do mundo”. Mas a platéia de circo parece saber a hora das coisas acontecerem; tem um ritmo do acontecimento do palco. O show em circo tem uma outra pegada e o público responde no tempo. O que quero dizer que sou querida por várias platéias.
Foi nesta época de circos que você começou a gravar músicas de duplo sentido como “Prenda o Tadeu”?
Não, não. Aliás, quando em apresentava em um circo vim a saber que “Prenda do Tadeu” era uma comédia. Pegaram a música e fizeram uma historinha. Aí eu falei: “Ah, por isso eu estou aqui” (risos). “Prenda o Tadeu”, “Bacurinha” e “É mais embaixo” eu tinha gravado antes. Fui fazer shows em circo porque por dois motivos. O primeiro: ouvia alguns colegas falando que iam cantar em circo e eu ficava fascinada. Segunda coisa: todos os grandes artistas brasileiros, principalmente os de rádio, passaram pelo circo. E eu disse pra mim: “Não sou artista, não passei pelo circo”. E acabou que o circo passou a ser mais um espaço pra eu trabalhar.
Entre “Fio Maravilha” e as músicas de duplo sentido há uma distância grande. Você se enveredou por esse caminho para ampliar público?
Não, não foi nada disso. Um dia, li na Folha de São Paulo uma matéria sobre o “Pastoril do Velho Faceta”… O pastoril á uma manifestação folclórica de Pernambuco onde há figuras como o Velho Faceta, Velho Quiabo, Velho Guerreiro – o Chacrinha trouxe muito dessa figura do folclore. Li na matéria sobre um elepê do Pastoril do Velho Faceta e fiquei fascinada. Fui atrás do disco. Fiquei louca com o trabalho que é muito interessante. Eu estava fazendo um show em São Paulo e precisava de uma música com a qual pudesse interagir com a platéia porque eu era uma vedete. Falei: “caralho, é o pastoril” E daí veio o “É mais embaixo”.
Não foi, então, uma apelação pura e simples pra ganhar dinheiro. Mas você foi acusada de oportunista por alguns críticos quando começou a gravar essas canções.
Gente… Outro dia tive um problema com uma pessoa que veio me dizer que um jornalista teria dito isso. Falei: “Caralho, me larga, me deixa em paz, me solta”. O que aconteceu? O dono da gravadora, a Copacabana, viu esse espetáculo e, claro, ouviu a música. Eu estava gravando para essa gravadora o “Plenitude” (1979), um trabalho muito bonito. E o “É mais embaixo” entrou no disco. E estourou. Fizeram um compacto simples e a música explodiu mais ainda. Aí pensei: “esse negócio tá é bom”. Aí veio “A bacurinha” e depois “A espiga”. Pastoril é bom demais. (risos)
Alcina, me responda: você é filha da Chiquita Bacana? (risos)
(gargalhada) Ah, eu sou. Com certeza! Tem horas que paro e falo: “eu sou realmente a filha da Chiquita Bacana”. Daqui a pouco vou ser a avó da Chiquita.
(risos) Pergunto isso porque você é pós-tropicalista, né?
Sou sim!
Carmen Miranda seria sua principal referência?
Tem primeiro o Brasil e Carmen Miranda representa muito bem o Brasil, no canto, na imagem. Quando eu comecei a cantar “Fio Maravilha” eu trouxe a memória da Carmen Miranda à canção, mesmo sendo diferente dela na pele, na voz. Carmen é muito brasileira na maneira de cantar.
Seu mais recente disco, “Maria Alcina Confete e Serpetina”, ao contrário do que sugere o título, não é essencialmente carnavalesco, né?
Não é mesmo. O disco ele tem esse título porque o Adalberto Rabelo Filho fez uma música com esse nome. O Adalberto é um músico de um grupo chamado “Numismata”, que é um pessoal com um modo maravilhoso de fazer música brasileira e que pertence à cena independente de São Paulo. E é uma cena que está fervendo.
Você é independente?
Eu sou uma pessoa independente. Sei lá, me deram um “corre”, um “passa” e eu aproveitei o “passa” (risos). Não dizem que se te derem um limão você faz uma limonada? Comigo me deram um “passa” e eu aproveitei.
Você tem uma identificação muito grande com o público GLS, né?
Tenho sim. Desde que eu comecei há essa identificação. Pra você ter uma idéia, eu me apresentei com o Zuraio, transformista carioca, em programas de televisão. Fizemos o programa do Flávio Cavalcanti vestidos iguais. Meu primeiro espetáculo de teatro… Bem, não tem a “Carmen”, de Bizet? Eu “fazia a “Carmen”, de Bidê” (risos). Isso nos anos 70. Tinha a figura do touro, né? Pois o Aron fazia um touro gay. E a gente corria da polícia….
(risos) Vocês também provocavam, né?
Não, nada disso. Se tínhamos oportunidade de fazer um espetáculo, fazíamos. Eu Não tenho barreiras e isso é da minha natureza.
Você é transgressora, então?
Naquele momento do “Fio Maravilha” parecia que eu era transgressora porque cheguei ao Maracanãzinho cantando daquela maneira…
Marcante, de fato!
Mas tem uma coisa interessante, que marcou muito. Um dia, um espetáculo não aconteceu porque a Leila Diniz não podia se apresentar. E eu estava toda noite com a companhia porque queria fazer parte do grupo. Foi último espetáculo com a Dalva de Oliveira.
Olha, só!
Nesse espetáculo, que se chamava “Vem de ré que eu estou de primeira”, do jornalista Tarso de Castro, havia um ator- transformista, o Silvio Lamenha. Nesse dia que não houve apresentação, o pessoal improvisou um show e me chamou para cantar. Foi no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro. Foi legal, o pessoal gostou. Depois fomos para a boate Number One dar uma canja. O dono da boate ficou sabendo que o transformista, integrante do grupo, estava na casa. E eu estava cantando. O cara achou que quem estava cantando era o transformista.
(risos) Nossa! E daí?
(risos) E daí que quando ele soube que era uma mulher que estava cantando e me contratou na hora. Eu era magrinha com voz grave, parecia um menino.
Criam-se lendas em volta de determinados artistas. No seu caso, você lidou bem com o fato de algumas pessoas falarem, numa época, que você não era mulher? Incomodou?
Não… Eu chegava na minha casa, em Minas, e sabia que uma tia minha havia brigado com não sei quem (risos). Sabe aquela coisa falada entre os dentes? Mas acabou dando tudo certo, nem me lembro muito disso. Se bem que é divertido contar essa passagem da boate Number One porque fui contratada pela casa. Fiquei seis meses cantando. O Solano Ribeiro, do Festival Internacional da Canção, me viu e ouviu e me convidou para ir ao Maracanãzinho. É uma história de estrela! (risos)
Dá filme!
Tudo dava certo para mim, tudo brilhava. E o mito se fez. Tem gente até hoje que acha que sou homem operado. Homem operado é bonito, né? (gargalhada)
Alcina, você recebe a reverência merecida no Brasil?
Olha, a música sempre me deu o tom. Estou com 60 anos, sou mineira de Cataguases, saí de lá aos 17 anos, fui para o Rio de Janeiro guiada pela música. Minha vida pessoal acompanhou muito minha vida profissional. Uma interferiu na outra. Então, ninguém deve nada a ninguém. Tudo quites! O artista tem obrigação de fazer um bom trabalho porque o público está ali pra vê-lo. Sinto que posso fazer muita coisa ainda. Portanto, não reclamo de nada não!
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